Na comunidade de Padre Gonzales, no interior de três passos, mauro rückert criou um jardim que recupera a história genealógica da própria família, e também narra parte da história da imigração europeia que deu feição ao estado
homem tem duas mortes, diz Mauro Rückert. A primeira delas é inevitável. Na segunda, morre-se por esquecimento. O tempo apaga as histórias, leva com ele os feitos de cada um, dissipa tanto as recordações que, no fim, é como se houvesse morrido sem nunca ter existido. Só que é reversível. Quando se morre por esquecimento, existe a possibilidade de se ressuscitar com as lembranças. Basta que alguém volte a vasculhar o passado e se proponha a levá-lo para o presente.
Na comunidade de Padre Gonzales, no interior de Três Passos, noroeste do Rio Grande do Sul, Rückert, 56 anos, dedica as manhãs e as tardes ao quintal de casa. Ali, imaginou e concretizou um jardim com mais detalhes do que os de praça de cidade, com o mesmo talento daquele homem de filme que têm tesouras no lugar das mãos. Nos últimos 10 anos, conduziu plantas a metros de altura, podou-as formando palavras e desenhos, esculpiu madeiras, reproduziu personagens e objetos em cimento. Coloriu tudo e encheu cada canto com tantos detalhes que o espaço ganhou até contornos de fantasia. Só então, cheio de orgulho, cravou uma placa à beira da estrada de chão que passa logo em frente, e nessa placa entalhou as boas-vindas: Jardim Temático Genealógico Rückert-Thal.
Naqueles dois mil metros quadrados de verde, estão, na verdade, quatro jardins. Eles representam a árvore familiar que parte do próprio jardineiro e se ramifica pelas histórias e curiosidades daqueles que carregaram os sobrenomes Rückert, Swarowsky, Klein e Morgenstern. A viagem ao passado é longa. Ganharam forma as lembranças de todos: dos pais aos avós, bisavós, trisavós, tetravós, chegando até os pentavós. Os nomes de cada um, características particulares, fatos trágicos ou cômicos que viveram, tudo está na ponta da língua e contado no jardim. Ou quase tudo.
– Até os pentavós, são 122 nomes. Só que uma das minhas bisavós foi adotada e não estou conseguindo dar continuidade à pesquisa sobre a família dela. Mas não perco a esperança. Ainda tenho muita coisa para buscar e muita gente para homenagear. Tenho a sensação de que posso ficar 300 anos aqui e não vou ter terminado – conta Rückert.
O
Criador do jardim mapeou a história dos sobrenomes de seus antepassados
O amor pelas plantas e flores ele traz desde sempre. Quando comprou o terreno onde hoje mora, tudo o que ali havia era barro vermelho.
O que fez primeiro? Cuidou do quintal. Só depois, quando a área já estava colorida, é que ergueu a pequena casa de madeira no centro. Na ausência de uma horta, o vizinho questionou: mas vai comer flor? A esposa, Teresinha, fracassou quando reclamou que não havia sobrado espaço para plantar milho e mandioca. Na lógica de Rückert, o jardim sempre virá antes – primeiro como paisagismo, depois como memória.
Este foi um projeto que surgiu em 2007, aliando outras duas paixões: a marcenaria, profissão que exerceu até se aposentar com um salário mínimo, e a genealogia, cujo interesse foi despertado há quase 30 anos, logo após a morte do pai, Augusto, atingido por um raio não muito longe dali, sob uma volumosa timbaúva. Augusto não conheceu seu pai e foi criado em meio à família Hoffmeister, do novo marido da mãe. Somente tarde na vida foi saber que seu sobrenome era Rückert. Por opção ou falta de condições, não buscou os verdadeiros familiares – missão que o filho Mauro tomou para si. Ele lembra até hoje: pouco após a morte do pai, convocou Teresinha para ocupar a garupa da moto e, com as poucas informações que tinham, percorreram estradas de chão do Noroeste, comendo pó debaixo de sol forte. Era um verão terrível. Horas depois, trincados de sede, encontraram um Rückert, um tio que abriu as portas para que Mauro conhecesse vários outros e desenhasse a família que seu pai nem imaginava ter.
– Ele não chegou a conhecer tios, nenhum primo. E eu sempre tinha aquele vazio dentro de mim por causa disso. Então fui levantar esta história. Eu chorava de emoção quando encontrava as pessoas, porque parecia que eu estava dentro da pele do pai – recorda, emocionado.
Para elaborar aos ornamentos do jardim, Rückert aprendeu sozinho a arte da topiaria (de dar forma a plantas)
Foi somente bem mais tarde que o marceneiro levou para o jardim a pesquisa sobre a história de sua ascendência.
– Tudo começou quando resolvi dar forma a uma passagem que minha mãe contava sobre meu bisavô Morgenstern. O sobrenome significa “estrela da manhã” em alemão. Então ele sempre dizia que, quando morresse, iria trabalhar no céu, colocando todos os dias sua estrela a brilhar. Eu achava uma história muito bonita e resolvi homenageá-lo no jardim. Só que, logo após terminar, pensei: como é que vou homenagear somente um bisavô? E todos os outros, como ficam? – lembra Rückert, sem tirar os olhos de um boneco alto, com cerca de três metros de altura, desenhado em uma planta que ele não sabe dizer qual é.
Parte do já curto dinheiro passou a ser destinada mensalmente às pesquisas feitas a partir de correspondências e telefonemas – Rückert não é muito da internet. Ligava para os parentes mais distantes, buscava informações via cartas com paróquias de outros lugares, queria saber onde cada um havia nascido, quem eram os pais, quem foram os filhos. Nesta tarefa de conectar os pontos e reconstituir a própria árvore genealógica, ganhou a ajuda de um genealogista, Claiton Nascimento – “alguém que Deus botou no meu caminho”, como repete. O pesquisador cedeu livros e informações que buscou sobre as origens de Mauro. Não à toa, a sala que o jardineiro construiu para abrigar quadros, fotos e livros recebeu o nome “Biblioteca Claiton Nascimento”.
E assim começou. Ao lado da imagem que representa o bisavô com a estrela, Rückert colocou os nomes dos Morgestern mais antigos: os pentavôs Peter Jacob e Philipina, que se casaram em 1847 na Alemanha, chegando quatro anos depois na região de Dois Irmãos, no Vale do Sinos. Lá pelas tantas, ele ouviu dizer que os Morgenstern eram donos de embarcações na Europa. Com topiaria (técnica de dar a uma planta ou a grupo de plantas configurações e formas diversas), criou um navio – grande o suficiente para que os visitantes possam subir nele e fazer fotos do jardim.
Depois disso, Rückert descobriu que Frederico II (1792-1786) faz parte do histórico da família Morgenstern. Como o rei da Prússia morreu sem conseguir concluir a obra de um castelo, Mauro ergueu uma réplica em cimento.
– Pequeno, mas terminei – pondera.
As associações são aparentemente aleatórias, mas é por meio delas que Rückert reconhece seu passado. Assim, ele colocou umas cuias de chimarrão pelo jardim, que é porque valoriza muito a tradição gaúcha. A bisavó era Florentina Maus; Maus em alemão é rato, e ele se orgulha de ter um “parente famoso”: estruturou um Mickey e o fixou entre as plantas. Mais tarde, lembrou-se de que tem traços ruivos porque assim eram todos os Morgestern. Descobriu que o personagem bíblico Esaú nasceu ruivo e peludo. E não demorou para que dedicasse um pedaço do terreno à genealogia de Esaú. Botou lá o irmão gêmeo, Jacó, a mãe, Rebeca, e o pai, Isaac. Perto deles, uma estrela judaica para voltar a remeter ao seu próprio sobrenome: “Estrela da Manhã”. Adiante, fez a palavra A-M-O-R, que divide o jardim de duas famílias.
– Meu avô se casou com a filha do primo. O irmão dele se casou com a prima mesmo. Deu tanto casamento entre eles que têm albinos na minha família e, depois, vários nasceram com problemas. Coloquei esta palavra aí, porque deveria ter mesmo muito amor entre essas duas famílias. Depois, em cima, escrevi paz – explica, sem muitos detalhes.
Estátuas com cuias de chimarrão fazem a ligação entre a história germânica retratada no jardim e a cultura gaúcha local
uma Obra de retribuição
Rückert não aprendeu a arte da topiaria com alguém. Não usa arames ou moldes, não desenha projetos. Vai fazendo. E confessa já ter tudo em mente. É como se as coisas fossem se encaixando e cada vez fazendo mais sentido. A família Klein (pequeno, em alemão) está representada por uma vila em miniatura. Os Swarowski da Áustria são os reis dos cristais, os Swarowsky do sul do Brasil ele considera os reis da selva. Desenhou um leão. E como todos os parentes eram músicos, colocou uma tuba no leão, de onde parte uma flor – porque Rückert é jardineiro. E um jardineiro de sorte: certa vez, andando pelo quintal, anos atrás, percebeu que em um dos cantos crescia uma timbaúva, a mesma árvore debaixo da qual seu pai morreu. Ele não havia plantado, ela que nasceu sozinha. Encarou como um sinal. Nos primeiros anos, quando o caule ainda não era tão rígido, entortou a planta e fez com que ela formasse um aro antes de crescer de vez. Ficou parecendo um instrumento de sopro. Dedicou a obra ao pai.
Como ganhou a vida com a marcenaria, achava que deveria retribuir à natureza o que “ajudou a destruir”. Fez então um caracol com 650 árvores, quase todo de árvores nativas – as mudas foram buscadas no meio do mato. Atrás do labirinto de árvores, que com o passar do tempo vai se fechando, há ainda homenagens a pessoas que não são da família, mas que fizeram parte de sua trajetória pessoal.
– Reservei um espaço a todos aqueles que merecem ser lembrados por terem me ajudado de alguma maneira, com ações, com gestos, com o que podiam. Fiz também um farrapo por entender que somente os grandões são citados, como Garibaldi, Bento Gonçalves... O farrapo (uma figura alta, em cimento, colocada em um ponto mais elevado do terreno) tem uma espada na mão. Se tu subir ao lado dele e olhar na direção que aponta a espada e imaginar uma linha reta, formada por mais 2,5 mil espadas, verás o lugar onde eu nasci. Lá onde estão aqueles eucaliptos – diz.
Em meio a elementos e decorações que remetem à colonização europeia, há também a figura de um farrapo
Entre nomes, sobrenomes, datas, fatos e associações pitorescas, a verdade é que Rückert criou um vale (que é o que significa “Thal”) onde passa os dias escondido. Acorda às 6h, faz um chimarrão e sai a caminhar pelo quintal de casa, vendo o que precisa ser podado, planejando novas esculturas e todo o trabalho que será feito ao longo do dia. À noite, para acrescentar a renda de dois salários mínimos – o dele e o da esposa, costureira aposentada –, ele faz alguns objetos entalhados, como troféus para festivais e campeonatos, que lhe tomam tempo e dedicação, mas pelos quais não cobra muito mais do que R$ 50. Pelo talento que tem, o pessoal da cidade segue procurando o marceneiro para produção de móveis. Ele evita o máximo que pode:
– Não adianta trabalhar, estar com o corpo em outro lugar e a cabeça no jardim. Aqui pelo menos vou deixar alguma coisa. Nem que para isso eu precise passar o dia com uma laranja, ou uma fruta. Mas eu quero estar aqui. Muitos trabalham para ficarem ricos. Depois, quando ficam ricos, morrem. Qual é o futuro de morrer rico? – pergunta-se.
A mulher apoia a paixão do jardineiro, mas não sem contestar os exageros. Mauro dedica todo o seu presente pelo futuro do seu passado. É isso o que a família pensa.
– Nunca fui contra. Só que às vezes é demais. É uma vida dedicada às coisas antigas, parece que se esquece do presente. Mas eu torço para que o projeto dele dê certo, que de repente a prefeitura se interesse e ajude a dar o valor que a obra dele merece – resume Teresinha.
Jardim ocupa área de mais de 2 mil quilômetros no interior de Três Passos
O plano de Rückert é terminar um imponente galpão em madeira, que vem construindo sozinho nos fundos do terreno. Lá, com a pequena biblioteca que já está aberta para pesquisas, ele pretende fazer uma cantina em pedra, além de uma loja de artesanato. Quer vender os produtos de moradores da região. Será um atrativo a mais para o seu jardim no dia em que ele virar um movimentado ponto turístico. Enquanto não é, ele segue aparando as plantas, sempre envolvido com novas ideias. Já não tem mais espaço no quintal de casa, mas o que falta mesmo, segundo Rückert, é um puxão de orelha na administração municipal e também nos moradores de Três Passos, que não valorizam o seu trabalho. No livro de visitas, há mais gente de fora do que da região. Um dos poucos nomes de visitantes locais era o de Paulo Correa, dono de um restaurante no centro da cidade.
– Eu já tinha ouvido falar do lugar, todo mundo comenta. Só que a gente sempre deixava para outro dia. Até que tiramos uma tarde para ir ao jardim com toda a família. E valeu muito a pena a visita. Às vezes a gente viaja quilômetros para ver coisas bonitas e não se dá conta do que tem por perto, debaixo da nossa vista. É uma obra de arte – comenta o empresário.
O espaço está quase sempre aberto aos visitantes – nos domingos, no entanto, Rückert afirma preferir sair para jogar bocha 48 na comunidade. Mas se a esposa ou a filha mais nova (que fez curso de turismo rural para incrementar o projeto do pai) estiverem em casa, o passeio está garantido. Do outro lado da rua, mora ainda a afilhada Michele, seis anos, a maior fã que Rückert tem.
Na ausência dele, ela também ajuda a explicar por que o “dindo” fez isso e aquilo e aquela coisa.
A família não cobra um valor estipulado para quem quiser conhecer o jardim, deixa que a contribuição seja espontânea. E aí o que acontece com certa frequência é não receberem nenhum tostão pela quase uma hora acompanhando os interessados pelos caminhos do jardim. Mas Rückert, na verdade, não dá muita bola para isso. Plantou ali a sua árvore genealógica por outras razões.
– Você tem de pesquisar a sua origem, saber a história dos seus avós, bisavós e trisavós por sentir orgulho deles, não só para conseguir uma dupla cidadania, ou de repente ganhar dinheiro com isso. O meu jardim eu faço é para evitar a segunda morte.
TEXTO
Bruna Scirea
bruna.scirea@zerohora.com.br
IMAGENS
Carlos Macedo
carlos.macedo@zerohora.com.br
EDIÇÃO
Carlos André Moreira
carlos.moreira@zerohora.com.br
DESIGN
Amanda Souza
amanda.souza@zerohora.com.br
Paola Gandolfo
paola.gandolfo@zerohora.com.br
Rafael Ocaña
rafael.ocana@zerohora.com.br
O homem tem duas mortes, diz Mauro Rückert. A primeira delas é inevitável. Na segunda, morre-se por esquecimento. O tempo apaga as histórias, leva com ele os feitos de cada um, dissipa tanto as recordações que, no fim, é como se houvesse morrido sem nunca ter existido. Só que é reversível. Quando se morre por esquecimento, existe a possibilidade de se ressuscitar com as lembranças. Basta que alguém volte a vasculhar o passado e se proponha a levá-lo para o presente.
Na comunidade de Padre Gonzales, no interior de Três Passos, noroeste do Rio Grande do Sul, Rückert, 56 anos, dedica as manhãs e as tardes ao quintal de casa. Ali, imaginou e concretizou um jardim com mais detalhes do que os de praça de cidade, com o mesmo talento daquele homem de filme que têm tesouras no lugar das mãos. Nos últimos 10 anos, conduziu plantas a metros de altura, podou-as formando palavras e desenhos, esculpiu madeiras, reproduziu personagens e objetos em cimento. Coloriu tudo e encheu cada canto com tantos detalhes que o espaço ganhou até contornos de fantasia. Só então, cheio de orgulho, cravou uma placa à beira da estrada de chão que passa logo em frente, e nessa placa entalhou as boas-vindas: Jardim Temático Genealógico Rückert-Thal.
Naqueles dois mil metros quadrados de verde, estão, na verdade, quatro jardins. Eles representam a árvore familiar que parte do próprio jardineiro e se ramifica pelas histórias e curiosidades daqueles que carregaram os sobrenomes Rückert, Swarowsky, Klein e Morgenstern. A viagem ao passado é longa. Ganharam forma as lembranças de todos: dos pais aos avós, bisavós, trisavós, tetravós, chegando até os pentavós. Os nomes de cada um, características particulares, fatos trágicos ou cômicos que viveram, tudo está na ponta da língua e contado no jardim. Ou quase tudo.
– Até os pentavós, são 122 nomes. Só que uma das minhas bisavós foi adotada e não estou conseguindo dar continuidade à pesquisa sobre a família dela. Mas não perco a esperança. Ainda tenho muita coisa para buscar e muita gente para homenagear. Tenho a sensação de que posso ficar 300 anos aqui e não vou ter terminado – conta Rückert.