Fantasmas na Guarita
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Presença indígena, formação geográfica peculiar e muita imaginação nos relatos orais desde os tempos dos jesuítas perpetuam lendas de fadas, sereias e até canibalismo na região de Torres

Se entrar na razão, a gente destrói a lenda. A frase em tom inapelável do jornalista Nelson Adams Filho antecede a apresentação de uma lista de histórias que circundam o imaginário popular dos moradores de Torres, antes mesmo de o município se tornar um dos principais centros de turismo do Litoral Norte. Os rochedos que concedem singularidade à praia – em uma orla predominantemente de mar escuro e aberto, faixa larga de areia e vento cortante – inspiram narrativas misteriosas sobre índios, sereias, duendes e outros seres fantásticos. Cada cenário com seu enredo.

Na Praia da Guarita, as histórias parecem ter ficado mais abrigadas do esquecimento. Uma delas dá conta de rituais antropofágicos, ou canibalismo puro, se assim for mais digerível ao entendimento. A prática, como fato histórico, era comum entre os índios carijós, que ocupavam parte da região litorânea. Adams Filho, que se dedica a recuperar e resguardar o passado torrense, entende que essa característica da tribo inspirou o folclore que aponta a pedra da Guarita como um antigo altar de sacrifícios humanos.

Esses indígenas, de acordo com relatos de jesuítas, tinham por hábito fazer banquetes com alguns de seus prisioneiros. Até a principal lenda de Torres, sobre a origem da Lagoa do Violão, faz referência ao canibalismo. O espelho d’água, cartão-postal da cidade, teria se formado a partir das lágrimas da índia Ocarapoti pela morte de seu amado Puiará, um marinheiro espanhol que sobreviveu a um naufrágio na Ilha dos Lobos porque conseguiu chegar à costa usando seu violão como boia. A índia e toda a tribo haviam se encantado com as canções do forasteiro, causando uma ciumeira fatal no cacique, que resolveu matá-lo e devorá-lo para adquirir seus dons musicais. Ocarapoti, então, refugiou-se na região atrás do Morro do Farol com o violão do marinheiro e ali chorou tanto que deu origem à lagoa no formato do instrumento.

Grutas que despertam o imaginário

A caminhada para adentrar o Morro das Furnas é perigosa. O que se pode encontrar chegando lá vale a pena, conforme a mitologia local

– Os índios dessa tribo acreditavam que, comendo a pessoa, incorporariam todas as suas qualidades. Isso (canibalismo), como algo que realmente aconteceu, acabou contribuindo para que a lenda do altar de sacrifícios, assim como a da Lagoa do Violão, se mantivesse – diz Adams Filho.

Em forma de pirâmide e com uma base larga que lembra uma grande távola, não é de se duvidar que a imponência da pedra da Guarita, encravada pela natureza bem no centro da praia, entre o Morro das Furnas e a Pedra da Itapeva, tenha encantado índios da região. No entanto, não foi gente dali que consolidou a história do altar de sacrifícios, mas um turista argentino, ao publicar, no século passado, um artigo reverberando o diz que diz que sobre coincidências misteriosas no entorno da rocha.

A isso juntou-se mais uma lenda: a Fada da Guarita, versão local do que se encontra em outras centenas de cidades Brasil afora como A Mulher de Branco ou os espectros de noivas. Um vulto feminino, com roupas alvas e longos cabelos negros, seria avistado por pescadores em noites de lua cheia. A figura ora aparece contemplativa, com o olhar perdido na imensidão do oceano, ora apresenta-se agitada, de braços abertos e vibrantes entre as pedras.

– São relatos que os pescadores foram passando e que, de alguma forma, envolvem o imaginário de quem visita a Guarita. Se é verdade... – diz Adams, dando de ombros à desconfiança.

O jornalista, autor de livros sobre o município, entre eles Torres-História, acredita – e registra essa possibilidade em um de seus trabalhos – que a lenda da Fada da Guarita tenha se associado na oralidade popular a outra narrativa pitoresca, da personagem Marina, uma divindade das águas que levou amor e morte a um solitário e filosófico pescador. Adams lembra que essa história inspirou o filme O Pontal da Solidão (1974), de Alberto Ruschel, rodado na praia com roteiro livremente adaptado do conto O Mau Olhado, de Lima Barreto, e estrelado por Débora Duarte:

– As lendas se misturam e vão ganhando elementos com os anos. Diz-se que ela pode ser uma noiva morta por piratas nos mares de Torres quando seguia de caravela para o casamento. Daí todo o desespero de seus gestos.

O Pontal da Solidão está disponível na íntegra no YouTube, no link bit.ly/pontalsolidao.

imponência geográfica

A Pedra de Itapeva e a Pedra da Guarita, onde, reza a lenda, eram realizados sacrifícios humanos: formações rochosas que quebram a planitude da região litorânea

A toca da sereia

Ao lado da rocha emblemática, o Morro das Furnas também tem suas narrativas ocultas. O rochedo perfurado pelo mar ao longo de milhares de anos é um dos pontos mais visitados de Torres. Pelas escadarias construídas sobre as pedras, segue-se até a Furna do Diamante, uma das cavernas esculpidas pelas ondas. O lugar acolhe a Lenda da Sereia do Diamante, cuja personagem principal seria avistada não só por embarcações, mas também por quem se aventura em caminhadas pelo morro.

A magia da narrativa é reforçada pela ameaça real que o lugar oferece. A entrada da furna é um dos pontos mais perigosos do morro. Por ali, gente perdeu a vida sugada pelas ondas que avançam pelo rochedo cravejado de mariscos. Os pescadores mais experientes mantêm distância regulamentar da borda, mas os turistas desafiam o mar em busca de uma foto em que a rebentação seja o cenário e acabam por posar para a última fotografia.

– Claro que isso tudo ajuda a aumentar o mistério da Furna do Diamante – avalia o historiador, pesquisador e educador Leonardo Gedeon, um dos guardiães da biografia de Torres.

A lenda da sereia da Furna do Diamante é uma das mais recorrentes entre as conversas de pescadores. Segue repassada de geração em geração, ganhando contornos ao prazer dos narradores.

– Lembro que meu pai contava que tinha de entrar de costas para a furna e oferecer um pente a ela – relata Carlos Silva, motorista e  filho de pescadores.

Como é contraditório falar em texto oficial quando se trata de lendas, os historiadores locais não descreditam os floreios que essas narrativas vão ganhando ao longo dos anos. Até porque, melhor que sejam adaptadas do que relegadas. Por conta disso, Gedeon fala em uma “história mais conhecida” da sereia. Ela seria uma mulher metade peixe, metade humana, de beleza exuberante, que aborda pescadores e visitantes com uma intrigante pergunta: “Tens um pente?”. Ao interpelado, aconselha-se não indagar o motivo do pedido, apenas entregar o objeto requisitado, caso, por sorte, cultive o hábito de carregá-lo.

– O que dizem é que os que têm um pente para dar a ela são levados para dentro da furna, onde haveria um tesouro escondido – relata o historiador, ressaltando que o roteiro remete ao simbolismo das iaras do folclore brasileiro.

Ainda é contraditório o desfecho que se teria caso aquele que topar com o ser extraordinário perguntasse a razão do pedido pelo pente ou se ousasse não ter o item no momento da abordagem. Alguns sugerem que isso seria um erro fatal, obrigando a sereia a levar o incauto para as profundezas do oceano sem mostrar-lhe o tal tesouro e sem nunca mais devolvê-lo à terra firme.

Tempos atrás, essa história de Torres ganhou um tempero extra. Gedeon lembra que, quando morava perto do Parque Estadual da Guarita, a vizinhança acompanhava a peregrinação de um homem pelo Morro das Furnas. O sujeito vestia trajes distintos e mantinha o costume quase diário de pentear-se à beira do penhasco, tendo o mar como um espelho imaginário. Pouco se sabia da figura estranha e silenciosa, mas o certo é que, sem mais cerimônias ou aviso prévio, o tal homem desapareceu.

– Não se sabe o que aconteceu com ele, mas o povo passou a dizer que foi levado pela sereia da furna. Bom, ele tinha um pente, né? – diverte-se Gedeon.

As furnas e as falésias que adornam a Praia da Guarita também têm seu protetor natural descrito no folclore local. Trata-se, segundo registros feitos pelo jornalista caxiense Mário Gardelin na década de 1960, de um duende de barba longa que surge nos rochedos vestindo roupas espalhafatosas e com capacidade de penetrar nas falésias.

Espelho natural

Não faz muitos anos que um homem costumava pentear-se à beira do penhasco, aproveitando o reflexo na água e a crença de que o pente seria o presente solicitado pela figura mitológica do local. O sujeito sumiu, o que atiçou a curiosidade da população

Adams Filho recorda que a figura era descrita por pesquisadores da cultura popular e por pescadores como um espírito que vigiava tesouros escondidos nas pedras. Ele também seria uma divindade da natureza ligada à proteção das belezas da praia e das crianças. O chamado Homúnculo teria desaparecido – da vista e das conversas dos pescadores – desde que o Parque Estadual da Guarita foi fundado, nos anos 1970.

– Essas coisas vão se perdendo e isso mostra a importância da oralidade para a cultura popular. Hoje, em Torres, poucas pessoas conhecem essas histórias – diz Adams.

A secretária de Turismo, Cultura e Esportes de Torres, Sílvia Brognoli, adianta que a rede municipal de educação tem buscado manter as lendas no currículo escolar das séries iniciais.

– São temas trabalhados na sala de aula e também durante a semana de aniversário do município – reforça.

questão de visão

Lendas de Torres têm correspondentes em outras regiões. A Fada da Guarita, por exemplo, é uma variação dos espectros das noivas que surgem para os pescadores

Ponto de passagem

Se não se deve recorrer à razão quando se fala em lendas, a verdade é que fatos reais costumam ser, na avaliação dos próprios estudiosos da História, pano de fundo para a construção dessas narrativas mágicas, que vão sofrendo alterações conforme passam de uma geração para outra. Leonardo Gedeon lembra que, ao longo dos tempos, navegadores, piratas e desbravadores tinham por hábito carregar consigo seus pertences mais valiosos em suas jornadas de além-mar, em batalhas e em incursões que faziam em novos territórios.

Furnas como as que enfeitam os paredões da Guarita eram lugares perfeitos para esconder essa bagagem, que podia ser composta por dinheiro, objetos diversos e até alimentos que garantiam a sobrevivência. O fato de o município de Torres estar na rota de tropeiros que desbravavam o continente levando gado do sul ao norte, e vice-versa, e também ser caminho recorrente nos tempos anteriores à colonização oficial da região, inclusive durante a Revolução Farroupilha (1835-1845), para os combatentes que seguiam em direção à Laguna (SC), ajuda a solidificar as lendas sobre tesouros e ouro escondidos por ali: muita gente, de diversas procedências e ao longo de muitos anos, teve a praia da Guarita como ponto de passagem. Suas belezas naturais e seus potenciais esconderijos com os quais esses viajantes depararam são um prato cheio para lendas

– Alguma inspiração histórica sempre tem, mas as pessoas vão contado do seu jeito. Essa oralidade é o patrimônio imaterial das comunidades – diz Leonardo Gedeon.

TEXTO

Bruna Porciúncula

bruna.porciuncula@zerohora.com.br

IMAGENS

Anderson Fetter

anderson.fetter@zerohora.com.br

EDIÇÃO

Daniel Feix

daniel.feix@zerohora.com.br

DESIGN

Anna Fernandes

anna.fernandes@zerohora.com.br

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