Se o olhar for displicente, a beleza ficará escondida na imensidão da planície costeira, que desenha com suas lagoas a alça do mapa do Rio Grande do Sul. Em uma nesga de terra entre a Lagoa dos Patos e o Oceano Atlântico, está o Parque Nacional da Lagoa do Peixe, refúgio para centenas de espécies nativas e escala para aves que migram anualmente das regiões mais geladas do planeta em busca de alimento e repouso. É preciso treinar a vista para usufruir bem mais do cenário de restinga, banhado e dunas, que se estende, nessa ordem, em direção ao mar.
Na área de 34,4 mil hectares, dividida entre os municípios de Mostardas e Tavares e administrada pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), encontram-se, além de mamíferos, anfíbios e répteis, mais de 280 espécies de aves residentes ou migratórias, número que considera apenas o que já foi oficialmente catalogado. Há chances de ser surpreendido pela presença de outros animais ao caminhar pelas quatro trilhas principais do parque: a Trilha das Dunas, a Trilha do Talha-Mar, a Trilha das Figueiras e a Trilha dos Flamingos. A munição do visitante deve ser chapéu, filtro solar, água e, se possível, uma boa câmera fotográfica para registrar a beleza dos bichos, por vezes camuflados na paisagem. Por essa razão, insista no olhar atento.
Pelos 13 quilômetros da Trilha das Dunas, repousam garças-mouras, maguaris (tipo de cegonha), saracuruçus (a maior saracura do Brasil), maçaricos-reais e outras dezenas de animais cujos hábitos podem ser observados de perto. Na primavera, os pássaros estão dedicados aos ninhos e, por ali, vê-se a engenharia da natureza com perfeição. Falar e mover-se em silêncio é imperativo para que aproximar-se dos animais não seja inconveniente. No meio do junco, em uma área alagada, o bate-bico fixa seu ninho. O nome é uma referência ao som de sua vocalização, mas a nomenclatura científica, Phleocryptes melanop, foi inspirada no modo de vida do animal: em grego, phaleös é, em tradução livre, “junco”, e kruptës, “esconder”. Assim, o bate-bico é o pássaro que se esconde no junco. Mais adiante, na mesma trilha, o maçarico-real tenta concluir a refeição importunado por um quero-quero e, antes de chegar às dunas, o ninho do cochicho, com sua abertura circular impecável, conduz a contemplação a partir da arquitetura.
Na Trilha do Talha-Mar, parte norte da Lagoa do Peixe, os pontos de observação permitem visualizar cisnes-do-pescoço-preto, narcejas e, à beira-mar, o banquete organizado de pirus-pirus e do viajante trinta-réis-boreal, que migra do Hemisfério Norte. Entre os visitantes mais esperados estão a batuiruçu, que consegue voar até seis dias e seis noites seguidas, e o maçarico-do-papo-vermelho, ave que percorre anualmente uma média de 11 mil quilômetros e está ameaçada de extinção por conta da degradação de áreas úmidas.
Um dos propósitos de quem procura o local é encontrar os bandos de flamingos que migram do Chile e dos Andes para invernar. Essas aves são mais facilmente encontradas na margem oeste da lagoa, na Trilha das Figueiras e na barra. Em dias de vento forte na costa, a probabilidade de os bandos brindarem o visitante com sua beleza é menor – as pernas longas dos flamingos não lhes conferem tanta estabilidade nessas condições.
Atrás dessas esquetes da vida natural, biólogos, pesquisadores, ornitólogos e fotógrafos profissionais e amadores do mundo todo visitam o Parque Nacional da Lagoa do Peixe anualmente. Entre outubro e novembro, o ICMBio e as prefeituras de Mostardas e Tavares promovem o Festival Nacional das Aves Migratórias, evento aberto ao público, com visitação, oficinas, palestras e cursos. Desde 2000, o festival está na agenda dos municípios, que o realizam intercalando as sedes, mas houve anos em que o evento não foi realizado.
– Em época de eleição, os prefeitos, como não sabem se vão se eleger, cortam o apoio – explica o chefe da unidade de conservação, o oceanógrafo Fernando Weber.
Sobre as mesas de negociações políticas e econômicas, o Parque Nacional da Lagoa do Peixe, que completará 31 anos de fundação nesta segunda-feira, vai resistindo e, aos poucos, consolidando-se. Desde 1991, a área está incluída na Rede Hemisférica de Reserva de Aves Limícolas, pela International Association of Fish Wildlife Agency, na categoria de reserva internacional. Também é considerado, desde 1993, um Sítio Ramsar. Em fevereiro de 1971, em Ramsar, no Irã, a Convenção sobre Zonas Úmidas de Importância Internacional, conhecida como Convenção de Ramsar, estabeleceu marcos para ações nacionais e cooperação entre países para promover a conservação desses territórios no planeta. O Brasil assumiu o compromisso de manter e priorizar a consolidação dessas unidades.
O parque foi incluído na Reserva da Biosfera da Mata Atlântica na categoria de Zona de Núcleo. Esse diploma é concedido pela Unesco, dentro do Programa MAB (L’Homme et la Biosphér) por meio do Comitê Brasileiro do Programa Homem e a Biosfera, e representa o reconhecimento oficial das Nações Unidas sobre a importância desse ecossistema para a sobrevivência da vida no planeta.
Na planície costeira do Rio Grande do Sul, o ICMBio batalha para concluir a indenização de produtores locais estabelecidos na região antes da criação do parque. São pelo menos 120 processos de desapropriação em andamento e espera-se, na próxima década, que sejam compradas as 280 propriedades que estão dentro dos limites demarcados. Quatro delas devem ser adquiridas até março do ano que vem – o instituto conta com R$ 40 milhões em compensação ambiental para regularização fundiária.
O facilitador nesses trâmites vagarosos é que, de acordo com o ICMBio, quase a totalidade das sedes das fazendas está fora do parque. Enquanto a parte burocrática não se resolve, os pescadores e os produtores rurais, especialmente plantadores de cebola e arroz, têm buscado junto a políticos da região a revisão do plano de manejo do parque – aprovado em 2004 – e a transformação desse espaço em Área de Proteção Ambiental (APA). A demanda foi encabeçada pelo deputado federal Alceu Moreira (PMDB). Para o parlamentar, a “atuação do império ideológico no meio ambiente” é um entrave ao desenvolvimento econômico de Mostardas e Tavares. Ele aponta a falta de diálogo com a comunidade na construção do plano de manejo e a desordem na implantação de alternativas de renda voltadas ao turismo para quem perde o direito de produzir naquelas terras. À época da criação do parque, as leis não exigiam audiências públicas.
– Ninguém conversou com o produtor, que simplesmente perde o direito de plantar e não é indenizado pelo preço de mercado. Se aquela região se manteve intocada até hoje não é pelo parque, é pelo cuidado dos próprios produtores e pescadores, que estão cansados de ser humilhados. Se isso não mudar, o conflito (com os órgãos ambientais) vai acabar ocorrendo – diz o peemedebista.
Pela classificação atual de parque nacional, ficam proibidas a exploração de recursos naturais e a construção na parte delimitada, mas pode-se utilizar a área para pesquisa científica e visitações educativas, como ocorre no Festival Nacional das Aves Migratórias, cuja edição deste ano se encerrou no final de semana passado. Atualmente, somente 127 pescadores estão autorizados a atuar no local, remanescentes de um cadastro feito entre 1999 e janeiro de 2000, à época sob responsabilidade do Ibama. Inicialmante, eram 290 registrados. Quanto à criação de gado no parque, a atividade se mantém permitida enquanto os produtores não recebem as indenizações. Lavouras não estão autorizadas nem mesmo nas áreas não indenizadas por conta do uso de agrotóxicos.
Transformar o parque em APA garantiria a ocupação moderada do terreno e a exploração de recursos naturais, com o controle dos órgãos ambientais. Mas não na prática, segundo a concepção dos ambientalistas.
– Essa mudança seria um retrocesso ambiental absurdo. Vai acabar com esse ecossistema da forma como temos hoje. Se não tivéssemos o parque, teríamos ali só arroz, como ocorre ao pé da Lagoa dos Patos, ou só cebola, ou ainda pínus e gado – contesta Weber.
Olhar atento
Esse temor tem a ver, sobretudo, com a realidade observada no entorno da unidade de conservação. Parte da vegetação de restinga já deu espaço a plantações de cebola. Na entrada da Trilha do Talha-Mar, o cheiro dos químicos jogados na lavoura faz torcer o nariz. As florestas de pínus, cuja resina é comercializada, avançam sem controle.
– Onde essa árvore chega, ela se torna dominante. Olhe ali, na beira da estrada. Todos aqueles pinheirinhos não foram plantados: eles se espalharam sozinhos. O pior é que, embaixo dessas árvores, nada mais cresce – lamenta o biólogo e analista ambiental do ICMBio Kennedy Borges, goiano da região do Rio Araguaia que, desde 2014, visita a costa gaúcha para registrar a biodiversidade da região.
Com ameaças se avizinhando ao santuário natural, o trabalho tem se focado na divulgação do local para fins educativos e de turismo ecológico, na capacitação e informação da população sobre produção sustentável e na fiscalização, que deve receber reforço até janeiro de 2019 – por meio do Projeto Áreas Marinhas Protegidas (GEF-Mar), iniciado em 2015. Mais dois analistas ambientais se juntarão ao time de profissionais do ICMBio para atuar na área, fechando quatro agentes, um a mais do que o preconizado por normativas do ICMBio para esse tipo de unidade de conservação.
Antigas moradias provisórias, instaladas à beira-mar ou perto de banhados já foram notificadas e, em breve, os escombros devem deixar a faixa de areia. A remoção ocorreu porque os imóveis estavam em Áreas de Proteção Permanente (APP) de propriedade da União.
O ICMBio tem buscado parcerias e tecnologias para qualificar o trabalho dos pescadores cadastrados, mas é verdade que numa velocidade menor do que o esperado pelos produtores. Em dezembro, técnicos da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) ministrarão palestras na região sobre o cultivo de camarão em água doce em modo familiar, e a Embrapa deve consolidar métodos de fortalecimento do campo nativo para ampliar a produtividade de 0,8 cabeças de gado por hectare para até 4,5. Nos planos também estão a formação de associações e cooperativas para a exploração sustentável do turismo no parque, como fonte extra de renda às famílias.
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como chegar
O Parque Nacional da Lagoa do Peixe fica entre Mostardas e Tavares, na estreita faixa territorial entre a Lagoa dos Patos e o Oceano Atlântico. A partir de Porto Alegre, siga pela ERS-040 em direção a Cidreira, e, em Capivari do Sul, pegue a RSC-101 em direção a Mostardas. O parque fica a 237 quilômetros da Capital. As visitações, gratuitas, podem ser feitas diariamente, das 8h às 18h. Outras informações podem ser obtidas pelo telefone (51) 3673-2435.
TEXTO
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