A cada novo Carnaval, homens e mulheres do distrito de Estreito, em São José do Norte, trocam as serpentinas e os confetes por fantasias simples e improvisadas, mas capazes de despertar o medo nas crianças e as gargalhadas nos adultos. Na celebração, tradicional nos meses de fevereiro na região, os chamados mascarados vagam pelas estradas de terra vermelha pedindo comida e bebida nas casas da comunidade. Eles ainda provocam as famílias a adivinharem as verdadeiras identidades dos participantes. Para dificultar o desafio, os falantes se calam, os mais altos se abaixam sob lençóis e outras peças de figurino, os mais tranquilos se tornam bagunceiros e os mais agitados fazem esforço para se acalmar.
Até as vozes mudam. Uivos, gritos e sons reproduzidos pelo bater de panelas e o chacoalhar dos grãos de arroz dentro de garrafas PET substituem marchinhas, sambas e outros ritmos tradicionais da época. Se o visitado não adivinhar quem é o fantasiado, paga com alimentação.
Se adivinhar, festeja com os excêntricos foliões. Além da diversão, a comida farta é uma marca da tradição peculiar desse canto do Rio Grande do Sul.
Ninguém sabe quando o ritual começou. Pesquisadores locais garantem que ele tem a ver com a influência, principalmente, das famílias dos descendentes de portugueses que desbravaram a região entre São José do Norte e Mostardas, a partir de 1763, época em que os espanhóis invadiram a vizinha Vila do Rio Grande – que daria origem ao município homônimo ao sul –, e as afugentaram para o outro lado da Laguna dos Patos. Portugal, incluindo o arquipélago dos Açores, é ainda conhecido pelos desfiles de máscaras nesse mesmo período.
– Essa manifestação popular só existe na Vila do Estreito, uma comunidade criada no século 18 antes mesmo da criação do Norte (São José). Infelizmente, quase não há registros fotográficos e escritos sobre os mascarados. Apenas os relatos que vão passando de geração para geração. Estamos numa cidade histórica, mas sem memória constituída – lamenta o diretor e pesquisador do Museu do Instituto Histórico e Geográfico de São José do Norte, Fernando Almeida Costamilan.
Entre 2011 e 2016, ele e outros pesquisadores registraram manifestações culturais presentes só na região. A dos mascarados é uma delas. Faz parte da tradição da localidade de 2,4 mil moradores há mais de dois séculos, eles acreditam.
– É um festejo profano com forte influência das culturas açoriana, luso e afro. É o verdadeiro Carnaval rural do litoral gaúcho – afirma Costamilan.
de porta em porta
Até a década de 1990, segundo relatos dos moradores, era comum ver mais de 200 fantasiados por noite nas ruelas do Estreito. Para se diferenciarem uns dos outros, eles levavam semanas criando máscaras feitas com lã de carneiro, cabeça de boi, porongo e barba-de-pau.
As visitas eram a cavalo, devido às distâncias das propriedades. Mas o êxodo rural, a partir daquela época, levou à área urbana de São José do Norte a maior parte dos habitantes, diminuindo o número de foliões e esvaziando os festejos.
Outra situação que quase extinguiu a singular reunião de máscaras foi o aumento da violência, que é amplo e atinge, inclusive, as áreas remotas do litoral gaúcho. Ao contrário de outras décadas, quando todas as famílias faziam questão de recepcionar os fanfarrões, poucos ainda se atrevem a abrir a porta no meio da noite para um bando de gente que não se sabe quem é. Tornou-se hábito comum os moradores fecharem-se em suas casas, e os festeiros, diante do medo, desistirem de ir para as ruas.
Hoje, o ritual anual é celebrado por adolescentes e jovens adultos, oriundos das primeiras gerações de brincalhões fantasiados. Como a maior parte deles estuda e trabalha no centro de São José do Norte, a 40 quilômetros do Estreito, sobra pouco tempo para produções mais elaboradas. As fantasias passaram a ser feitas com lençóis, roupas e calçados velhos, o trajeto se tornou motorizado e as visitas são avisadas com antecedência. Uma adaptação que diminuiu o encanto do ritual, mas não o esvaziou por completo.
Mistério faz parte
Quem não é da região, dificilmente conheceria os mascarados ao deparar com a turma. Nos comércios locais e na maior parte das casas, os moradores se negam a falar sobre eles, alguns por vergonha da singela brincadeira, outros até pela desconfiança com os estranhos.
– Isso é antigo. Não existe mais. Já faz uns cinco anos que não vemos por aqui – disse um morador à equipe de Zero Hora, com convicção, quando questionado. Horas depois, a reportagem descobriu que ele é pai de um dos participantes.
Na semana que antecedeu o Carnaval deste ano, precisamos de quase um dia inteiro para encontrar alguém que confirmasse que a brincadeira segue sendo realizada. Ainda assim, Guilherme Farias da Silveira, 19 anos, trabalhador na colheita de pinho, negou-se a mostrar o rosto sem a máscara quando nos encontrou. Garantiu que era para manter o mistério. Desde os 10 anos, o jovem integra um dos últimos grupos ainda existentes. O tímido Guilherme aproveita o período para criar personagens completamente diferentes do que ele é no dia a dia: torna-se falante e até dança para enganar os visitados.
– Juntamos a gurizada e fazemos pela diversão. Quando comecei a participar, ficávamos a madrugada inteira visitando os vizinhos. Agora, já não é como antigamente. Por segurança, só podemos passar nas casas confirmadas dias antes. É uma pena – lamenta.
Ao contrário de Guilherme, a dona de casa Daniele Silveira da Silva, 24 anos, e o operador rural Ildo Luiz do Amaral, 33, fazem questão de mostrar os rostos. Eles estão entre os mais experientes. Casados, os dois cresceram vendo os pais e outros familiares fazendo parte da festa. Na infância, Daniele sonhava com o dia em que pudesse se juntar aos caminhantes do Estreito. Desde os 16 anos, ela participa ativamente da brincadeira. Gosta tanto que convenceu dois ex-vizinhos a voltar à localidade no Carnaval só para continuarem fazendo parte do ritual.
– Meu pai (Ronaldo da Silva), hoje com 44 anos, era do grupo que ia a cavalo nas casas. Eles andavam fantasiados na escuridão. Sempre quis fazer o mesmo que eles, apesar de não saber porque isso existia. O que vale é ser diferente de tudo o que vemos em confraternizações desta época do ano em outros lugares – diz Daniele.
Nos dias que antecedem as visitas dos mascarados, ela e o marido ajudam a organizar o grupo e a preparar as fantasias. As fronhas velhas ganham buracos para os olhos e lábios pintados com canetas coloridas. Animado, Ildo é quem produz as máscaras do casal. A mulher avisa os moradores das casas que receberão os fantasiados. Os dois trocam as roupas com outros integrantes, na tentativa de confundir os moradores visitados.
– Quem gosta de futebol é o meu marido, mas na noite dos mascarados eu uso as chuteiras dele, bem maiores do que o meu pé – revela Daniele, às gargalhadas.
Preparação
Com a quantidade de adeptos escasseando, há participantes que trocaram de função para ajudar a manter vivo o ritual. A dona de casa Charlene da Silveira, 29 anos, deixou de fazer parte do grupo, mas agora recepciona os foliões. Ela é conhecida pela habilidade em identificar todos os integrantes do grupo fantasiado. Diz que é pelo jeito de caminhar, pela voz ou pelos olhos do visitante – que, às vezes, constituem a única parte do corpo à mostra, mesmo com o calor que costuma fazer em fevereiro.
– Faço questão de ficar em casa no período só para recebê-los. E me preocupo se não aparecem na primeira noite (de Carnaval). Nem durmo direito. Deixo a pipoca e o suco gelado separados para eles. Alguns pedem cachaça e vinho – conta, rindo. – É uma tradição nossa, que só tem aqui, e que por isso precisa ser mantida.
Na infância, ela lembra de viajar com a família desde a área central de São José do Norte apenas para acompanhar os festejos do Estreito nas casas dos parentes. Aos 12 anos, quando os pais se mudaram definitivamente para a localidade, ela não teve dúvidas: fez uma máscara e juntou-se ao grupo.
Nem o casamento e a primeira gravidez, aos 15 anos, a afastaram da celebração. Pelo contrário, a família do marido, o agricultor Cleiton do Amaral, 34, também participa.
– É tipo um Halloween, só que carnavalesco. Não vai acabar porque nós não vamos deixar – afirma Charlene.
Cleiton ainda se mascara em algumas noites. A primogênita do casal, Kaillayne, 13 anos, estreou neste ano. A mais nova, Kauãne, quatro anos, ainda foge dos visitantes quando os primeiros sons são ouvidos na porteira da propriedade.
– Tenho medo e fico quietinha. Quando eles começam a bater nas janelas, me escondo embaixo da cama para não chorar – revela a pequena que, apesar de temê-los, garante que, quando ficar adulta, mudará de opinião.
Passe o cursor para descobrir quem está por trás da fantasia
Diga-me quem sou
A reportagem de ZH acompanhou a preparação para a primeira noite dos mascarados de Estreito no Carnaval deste ano. Onze integrantes se reuniram na casa de Daniele e Ildo. Entre eles, a estreante Kaillayne prometia enganar a mãe. Para isso, partiu carregando peças de roupas que pretendia usar. Trocou-as ao se reunir com os amigos, parentes e vizinhos.
– A mãe é muito observadora. Vou ter de ficar calada para ela não me reconhecer – dizia a menina, enquanto era preparada pelas amigas.
Faceiro, Gierry Farias, 14 anos, nem parecia estar estreando. Levou tecidos coloridos e uma máscara confeccionada por ele próprio. E conseguiu um chapéu de palha para esconder os cabelos castanhos. Duas horas antes da saída, ensaiava outro tom de voz para não ser reconhecido. Contagiada pela movimentação, a namorada de Guilherme, a estudante Mariele Chaves, 17 anos, também decidiu participar. Foi o namorado, dono de uma máscara elaborada com restos de tecido, quem confeccionou a dela em poucos minutos.
Um dos mais empolgados na comemoração, o jovem agricultor Lorizete Amaral do Amaral, 16 anos, levou até músicas para tocar durante a própria apresentação, pois não pretendia abrir a boca até ser descoberto. Ao som de sertanejo universitário, ele remexia o corpo dentro da fantasia, arrancando gargalhadas de toda a turma, que associava seus movimentos aos de uma minhoca. Quem tinha os olhos claros tratou de usar óculos coloridos para confundir os visitados.
Na saída, a equipe percebeu a aproximação de um temporal na abafada noite de 9 de fevereiro. Temendo não chegar a tempo na visita inicial, que ficava a quase um quilômetro de distância, o grupo seguiu em carros e motos.
A 100 metros da casa de Charlene, os mascarados deixaram os veículos e seguiram a pé. Pelo caminho, receberam acenos de outros moradores das redondezas, todos sentados em frente às casas observando o deslocamento.
– Não esqueçam de que não podemos nos chamar pelos nossos nomes. Aqui, somos apenas os mascarados. Quem for baixinho, senta para ela não perceber. Mudem as vozes. Vamos lá! – orientava Daniele, irreconhecível sob um manto amarelo.
Depois de preparados e focados na tarefa, era quase impossível identificar qualquer um dos participantes. Ao cruzarem a porteira da propriedade, depararam com a moradora observando-os da janela. Atenta, ainda distante deles, Charlene quase não respirava enquanto olhava fixamente para cada um.
– Podem chegar, mascarados – gritou a dona de casa, antes de abrir a porta de sua casa.
Dentro de um círculo formado pelos 11 foliões, ela identificou dois deles em poucos segundos.
– Tirem a máscara, Ildo e Lorinho (Lorizete). Só pelo caminhar, já vi que eram vocês ainda lá na estrada – justificou.
Bastava se aproximar de um mascarado para imediatamente reconhecê-lo. Keuri Gonçalves, 12 anos, confundiu a moradora.
– A mão parecia a dela, mas está tão branquinha – comentou Charlene com Daniele.
– Eu passei pó nas mãos dela para te confundir – revelou a organizadora do grupo, aos risos.
Desconfiada de Guilherme, a visitada pediu para ver a mão esquerda do rapaz – que tem uma tatuagem. Apesar dos 28ºC, ele usava luvas. Depois de 20 minutos, ele e a namorada foram os últimos a terem o nome citado pela vizinha.
Charlene não esperava ser confundida pela própria filha, que teve uma estreia de luxo. Em silêncio, sentada na grama, Kaillayne quase não foi identificada. Chegou a ser confundida com outras duas integrantes. Ponto para a filha da mais experiente acolhedora dos mascarados do Estreito, e um indicativo de que a tradição seguirá firme na região.
novos tempos
TEXTO
Aline Custódio
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