No meio do nada
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mais remoto dos 20 faróis do litoral gaúcho, o Albardão guarda histórias de isolamento que desafiam os marinheiros responsáveis por sua manutenção

Impondo a solidão aos destinados a preservá-lo em uma região inóspita, o Albardão, em Santa Vitória do Palmar, no Litoral Sul, é o mais alto e isolado entre os 20 faróis da costa gaúcha. Com 44 metros de concreto erguidos na faixa de areia entre a Lagoa da Mangueira e o Oceano Atlântico, ajuda a guiar navegantes em mar aberto e exploradores da planície litorânea que une as duas comunidades mais próximas: a praia do Cassino, em Rio Grande, distante 135 quilômetros ao Norte, e Hermenegildo, 70 quilômetros ao Sul, em direção ao Uruguai.

Em quase cem anos, de 1909 até janeiro de 2007, apenas três famílias de faroleiros viveram no local. Elas se revezavam na manutenção do farol, sendo substituídas no posto a cada dois anos. Juntas, tinham a responsabilidade de manter a segurança do local, propriedade da União. Mas nem todos conseguem resistir ao retiro forçado, ou mesmo às mudanças ríspidas do clima, regido conforme as lufadas ou ventanias da região costeira.

Há uma década, a Marinha do Brasil alterou o trabalho no Albardão. A cada trimestre, revezam-se no local dois marinheiros voluntários treinados especialmente para guardar a área. Nas 12 semanas de serviços prestados, são impedidos de receber visitas de familiares. Inclusive em datas festivas como Natal e Ano-Novo. Hoje, não há quem tope o desafio de ficar um tempo extra, além do período proposto. Nem mesmo o faroleiro mais experiente.

Sargento Stangherlin sobe diariamente quase mil degraus para abrir e fechar as sanefas (cortinas protetoras) do farol do Albardão

– Nunca mais! – foi a resposta de um deles, numa passagem de 24 horas pelo local para entregar mantimentos aos colegas da guarda de maio a agosto deste ano.

A questão do tempo é determinante para a sobrevivência no farol. Energia elétrica, por exemplo, só há durante 12 horas por dia, quando o gerador está ligado, das 18h30min às 6h30min da manhã. As tarefas rotineiras de trabalho no Albardão são desenvolvidas enquanto há luz solar ou, pelo menos, claridade. Na casa onde ficam abrigados os marinheiros, há um único calendário pendurado atrás da porta de entrada e um relógio de parede na sala. Com o passar dos dias, eles acabam esquecidos.

Soteropolitano morador da Vila Militar de Rio Grande, o cabo César Santa Isabel dos Reis, 30 anos, nove deles na Marinha, chegou ao farol no final de julho deste ano. Viciado confesso em redes sociais e de pouca fala, assustou-se com o retiro nas 72 horas iniciais. No calendário da parede, foi marcando um “X” para cada dia vivido no local. Só conseguiu se acostumar à rotina após passar uma semana ao lado do experiente primeiro sargento Giovani Stangherlin, 38, de São Paulo das Missões. Preparado para a tarefa que o aguardava – ele já havia passado um dia no farol anos atrás –, Stangherlin tirou o relógio de pulso ao chegar à morada. Ainda em agosto, ele deve passar a tarefa a um novo parceiro para o Cabo César.

– Sabia que o farol era o mais isolado de todos. Quando vi meu nome na escala, não houve surpresa. Tive adestramento sobre a mudança brusca do clima, e me preparei física e psicologicamente – relata Stangherlin.

Num único dia, a equipe de reportagem acompanhou as alterações climáticas estudadas por Stangherlin. Na primeira noite no Albardão, uma espessa neblina cobriu todo o ambiente e quase fez desaparecer o que de mais precioso há no local: as luzes do farol. Foi preciso usar lanternas mais potentes para caminhar aos pés dele, mesmo com a energia elétrica ligada. A temperatura não passou dos 12ºC. Ao amanhecer, um sol avermelhado tentou apontar no horizonte, mas foi coberto pelo dia nublado e com chuvisco. A indicação era de que haveria chuva forte. Porém, o vento mudou repentinamente. Fez baixar a temperatura ainda mais e levou as nuvens em direção ao Chuí, numa velocidade capaz de surpreender um marinheiro experiente como Stangherlin. Em menos de duas horas, o cinza escuro deu lugar ao sol, num céu de cor azul ainda mais destacado por conta do cenário arenoso. A ventania persistia, mas, antes do meio-dia, o termômetro chegou a marcar 25ºC. O entardecer rosado antecedeu uma noite estrelada até que, por volta das 21h, o vento voltou ainda mais intenso do que algumas horas antes.

– Aqui, tudo é muito rápido e inconstante. Há dias nos quais as quatro estações ficam bem definidas. Em outros, a calmaria dura até três dias. Isso é prenúncio de temporal se aproximando. Antigamente, inclusive, havia gramado no pátio. Hoje, a areia cobriu tudo – resume Stangherlin.

O Albardão tem 44 metros de altura. A comunidade mais próxima é o Hermenegildo, a 70 quilômetros de distância

Vento e areia por todos os lados

A grama desapareceu entre 2005 e 2009 – anos especialmente secos na região. Nesse período, a areia se espalhou e só não cobriu as casas e a própria entrada do farol porque, diariamente, o vento que rebate nas paredes acabou varrendo o entorno dos prédios. O gerador de energia, trazido na década de 1980 e hoje companheiro inseparável de quem vive no Albardão, exige cuidados redobrados nesse contexto de intempéries onipresentes. Instalado numa construção de alvenaria especialmente erguida para abrigar um gerador em 1948 (data da inauguração da atual torre do Albardão), o maquinário é responsável por sustentar o farol aceso e auxiliar na comunicação dos marinheiros com a base localizada em Rio Grande. Usando um pequeno pincel, o primeiro sargento faz movimentos delicados eliminando qualquer rastro de pó sobre o equipamento. Enquanto o vento insiste do lado de fora, Stangherlin segue paciente o trabalho, que consome mais de uma hora todos os dias. De 48 em 48 horas, 35 litros de óleo são despejados para alimentar o motor.

– A limpeza é primordial. É a primeira coisa que a gente faz pela manhã, além de toda a verificação mecânica. A areia penetra em todo e qualquer lugar. O gerador é o coração do farol. Precisa estar limpo sempre – resume o marinheiro.

Depois de preparar o gerador, Stangherlin sobe os 220 degraus entre a porta de entrada da cúpula e o farol. É lá de cima, onde ouve mais acentuado os inclementes sons do mar e do vento, que ele costuma contemplar o amanhecer após reposicionar as sanefas (cortinas protetoras das lentes dos refletores, retiradas durante a noite, para deixar a luz passar, e repostas durante o dia, para protegê-las do sol).

Quando anoitece, diariamente, ao retirar as sanefas, o marinheiro responsável verifica se o farol está funcionando plenamente, ou seja, se há três lampejos de luz de um segundo entremeados por três segundos de escuridão, com um quarto lampejo espocando após um intervalo maior, de 12 segundos – o circuito completo precisa durar exatos 25 segundos.

Por dia, o marinheiro sobe e desce pelo menos 880 degraus. Um exercício a mais para quem já enfrenta a instabilidade da areia em suas caminhadas no chão. Lá do alto, Stangherlin ainda gosta de guardar na memória do celular as imagens da imensidão. Em quase três meses de confinamento, fez mais de 600 fotos – muitas compartilhadas com a mulher, a técnica de enfermagem Daniele Mendes.

– Sempre tive vontade de encarar um desafio como esse. Achei que era o momento certo. Estou com a cabeça boa, a vida estável e tenho o apoio da minha mulher – diz, satisfeito por cumprir a missão no Albardão.

A diversão possível no farol

Os faroleiros estão sempre buscando uma nova atividade durante o dia. Desde as tarefas mais comuns – como fazer almoço, lavar roupas, limpar os três quartos – até comunicar-se com Rio Grande por meio do rádio. Na casa dos militares, há antena parabólica e acesso a TV a cabo, o que ajuda a passar as noites chuvosas, por exemplo. Uma maleta de primeiros-socorros também está sempre pronta. No caso de emergência médica, a Marinha pode acionar um helicóptero em Rio Grande ou enviar um veículo terrestre – que leva até três horas para chegar ao local. Quando, recentemente, um militar sofreu uma crise de apendicite, e o tempo impedia o voo, foi usada uma motocicleta para agilizar seu transporte até a cidade.

Cada marinheiro chega ao Albardão levando a própria comida, mas recebe mantimentos da Marinha para enfrentar o período. Uma caixa d’água com capacidade para 5 mil litros, retirados de um poço, é usada na higiene pessoal. A água para beber fica em um galão de 200 litros. Cada militar ainda traz mais cem litros. Carnes e outros mantimentos chegam aos quilos. Uma vez por mês, uma equipe da Marinha vai de caminhão ao local, se necessário, para levar mais mantimentos.

O Cabo César gosta de cozinhar e costuma cuidar das panelas nas horas das refeições. Stangherlin é apaixonado por pães. Por isso, carregou consigo 250 cacetinhos pré-prontos e congelados, que só vão ao forno minutos antes de serem consumidos. A curiosidade fica por conta do local onde eles são assados: dispostos em uma bandeja de alumínio e protegidos por um papelão e um saco plástico, os pães ficam prontos em minutos ao serem colocados ao lado do calor do gerador, antes de este ser desligado.

– Fiz um teste e deu certo. Não preciso gastar gás. Assamos quatro cacetinhos todas as manhãs – comenta o primeiro sargento.

Os faroleiros comemoram quando, fato raro, surge alguém no horizonte. Trilheiros costumam aparecer no verão. Se contatarem antes com a Marinha, em Rio Grande, eles conseguem, inclusive, hospedagem na casa vizinha à dos faroleiros. Há banho quente, geladeira, um fogão industrial, mesa, sofá, quatro beliches e uma cama de solteiro, distribuídos em três quartos. Aos sábados, Stangherlin até muda o horário do almoço na expectativa de receber algum visitante. É que, por ali, não raro podem ser encontradas vacas que se perderam, além de trilhas de conchas que se estendem por quilômetros e atraem curiosos, por exemplo, do Hermenegildo, a cerca de duas horas do Albardão.

Piratas e as outras lendas do Albardão

Do Cassino até o farol, são quase três horas dirigindo pela beira da praia, passando pelo que restou de três embarcações afundadas no século passado – entre elas, o navio Altair, encalhado desde junho de 1976, cuja maresia e ação do tempo quase o engoliram – e enfrentando as barras de areia formadas pela quebra das ondas quando a maré está alta.

– As pessoas chegam aqui encantadas com o caminho. Os que não conhecem o farol olham ao longe, do portão. Já vi pessoas correndo desconfiadas quando saí na direção delas. Não somos fantasmas – conta, aos risos, Stangherlin.

Há muitas histórias e lendas na região. Uma delas fala de piratas que iluminavam a beira da praia com tambores em chamas e atraíam as embarcações. Os navegantes entendiam serem atracadouros e encalhavam. E aí os piratas aproveitavam para saqueá-los.

A própria construção do farol num ponto tão isolado não foi por acaso. Segundo o capitão-tenente José Lourenço da Silva, encarregado da Divisão de Administração do Serviço de Sinalização Náutica do Sul, entre os séculos 19 e 20, pelo menos uma embarcação naufragava ou encalhava por ano no trecho, também conhecido como cemitério de navegantes. A explicação estaria na grande distância das montanhas até o mar, que aumenta o vento, enganando tripulações desavisadas – razão pela qual a construção de um farol, na região, é fundamental para guiar os navegadores de passagem pela costa do Rio Grande do Sul.

Primeiro do três faróis – há também o Chuí e o Sarita – a serem erguidos entre Rio Grande e a fronteira com o Uruguai, o Albardão produz um sentimento comum entre os que passam por ali. O próprio engenheiro da construtora responsável, Ernest Schaffer, relatou, em uma publicação interna de sua empresa datada de agosto de 1949, as dificuldades da empreitada: “Devido ao mau tempo, frequentemente, caminhões se atrasavam dias. Muitos ficaram presos na areia, à mercê do tempo. Mesmo oferecendo um salário acima do usual na cidade, era quase impossível trazer pedreiros. O local era isolado e triste”.

A luz do Albardão pode ser vista a até 77 quilômetros de distância em alto-mar

A estadia no Albardão acabou despertando em Stangherlin memórias esquecidas:

– Querendo ou não, você aprende a observar a fauna e a flora. Isso faz despertar sentidos não desenvolvidos na cidade. Por exemplo, o ouvido fica muito mais aguçado. Ouço um carro se aproximando muito ao longe.

O primeiro sargento ganhou amigos inesperados, como as mais de 20 caturritas que, diariamente, chegam juntas, por volta das 17h30min, e se abrigam nos telhados das duas casas. Elas saem dos ninhos pontualmente às 7h30min do outro dia. O graxaim, a lebre e o tatu costumam deixar rastros da passagem pelo entorno da morada. Mas o bicho de estimação de Stangherlin é um sapo. Pela manhã, os dois conversam em frente ao tanque de lavar roupas.

– Passei a dar valor a todos os animais. Estando em casa, eu via uma aranha e minha primeira ideia era me livrar dela. Aqui, eu a protejo. Você adota os bichos, dá outra importância a eles.

Mas nem a preparação para o Albardão, que durou meses, foi capaz de esconder a emoção de Stangherlin ao recordar a família.

– Nada substitui a presença física das pessoas que a gente ama. Meu pai tem idade avançada e sofre de alguns problemas de saúde, e o maior medo dele era não poder me ver mais. Então, fico feliz de estar chegando ao final da minha estadia, porque, com certeza, o verei novamente – diz, com olhos marejados.

Quando questionados sobre a contagem regressiva para deixar o local, Cabo César diz que não sabe responder à questão, e Stangherlin, ao contrário, surpreende. Diz que sentirá falta do tempo vivido no Albardão:

– Haverá momentos em que vou sentir saudade e, às vezes, até desejar estar aqui.Quem cruza o caminho do Albardão se

despede levando consigo experiências novas e, muitas vezes, desejando nunca mais voltar. Em um lugar no qual o vento passa reto, o farol pode até se manter firme em meio à solidão. Uma parte dele, porém, sempre acaba indo junto com aqueles que o conhecem.

TEXTO

Aline Custódio

aline.custodio@diariogaucho.com.br

IMAGENS

Mateus Bruxel

mateus.bruxel@diariogaucho.com.br

EDIÇÃO

Daniel Feix

daniel.feix@zerohora.com.br

DESIGN

Amanda Souza

amanda.souza@zerohora.com.br

 

Paola Gandolfo

paola.gandolfo@zerohora.com.br

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