O despertador de Valdomiro Siegieniuk tocou às 4h no dia 24 de setembro de 2017. Há três dias em Moscou, ele ainda não havia se adaptado ao fuso horário de seis horas a mais em relação ao Brasil, mas era necessário levantar da cama no instante em que estaria indo dormir se estivesse em Porto Alegre – caso contrário, perderia a largada da quinta edição da Maratona de Moscou. Vestiu uma camiseta de mangas compridas com uma pequena bandeira brasileira estampada no peito, bermuda, tênis, Garmin (relógio com GPS) e um boné com o nome do Brasil. Não esperou o hotel servir o café da manhã, pediu um sanduíche e um suco antes de pegar o metrô rumo às redondezas do Estádio Luzhniki e conseguiu chegar a tempo de aquecer a musculatura com trotes ao sol naquela manhã de domingo em que o termômetro marcava 6ºC.
Às 9h15min, foi dada a largada para o primeiro grupo de corredores – as turmas foram divididas de acordo com o provável tempo de término da prova assinalado pelos competidores no momento da inscrição, com os mais rápidos na frente. Valdomiro esperou cerca de meia hora para começar a percorrer os primeiros metros dos 42,195 quilômetros.
Iniciou com passos lentos e despreocupados com a velocidade. Percorria as largas ruas russas não tanto pela performance, mas mais pelo turismo e pela ocasião simbólica de correr no país onde seu pai nasceu. Manteve-se entre sete e oito quilômetros por hora para chegar inteiro ao final, caminhou alguns trechos, não desperdiçou água em nenhum dos 13 postos de hidratação e repartiu o foco da prova com a contemplação de pontos turísticos como o Kremlin. Apesar do cansaço decorrente do fuso horário, das diversas conexões entre Porto Alegre e Moscou e do passeio pela extensa Praça Vermelha na tarde anterior à corrida, enfrentou com vigor as lombas e o percurso que, para os retardatários, se mostra desértico.
Após cinco horas e 20 minutos, cruzou a linha de chegada, olhou lacrimejando para o relógio e pensou: “Mais uma”. Aos 78 anos, Valdomiro havia completado a sua 60ª maratona.
– Eu tinha três propósitos e os venci: conseguir completar a prova, terminar sem lesão e não ser o último. Não fui o último em nenhuma corrida. Depois de mim, ainda chegaram cerca de 500. Mas nenhum tinha a minha idade, eram todos mais jovens – conta o técnico em manutenção aposentado pela Varig, administrador do edifício em que reside no bairro Menino Deus e orgulhoso de, há 25 anos, ser o primeiro e único síndico do prédio.
A distância já percorrida por Valdomiro em maratonas equivale a 1,012 mil voltas na Redenção. Também se assemelha a ir de Porto Alegre a Capão da Canoa e voltar nove vezes ou correr da capital gaúcha até as proximidades de Porto Seguro, na Bahia. Isso sem contar as meias maratonas e rústicas em quase 40 anos de corrida. No apartamento em que vive com a mulher, Yara, guarda as medalhas de participação mais importantes em uma caixa de madeira envidraçada que enfeita a parede no escritório, junto de troféus e imagens clicadas em momentos marcantes, como a chegada em sua primeira maratona no Exterior, em Nova York. Tinha 55 anos e concluiu o trajeto em pouco mais de quatro horas – tempo ótimo para um estreante naquela idade. Aos 60 anos, em Porto Alegre, bateu seu recorde com três horas e 20 minutos. Subiu ao pódio para receber um troféu em sua faixa etária e ainda conseguiu índice para um lugar na Maratona de Boston, uma das mais concorridas do mundo, em abril do ano seguinte.
Embarcou para o segundo desafio internacional ciente dos obstáculos do difícil e cobiçado percurso de Boston:
– Era sobe e desce o tempo todo. Lembro também do vento frio.
O iogurte que nos deram na chegada estava congelado.
Valdomiro cruzou a linha de chegada em 3h34min59seg, inserindo-se novamente entre os qualificados para Boston por questão de um segundo. Mas, no ano posterior, preferiu percorrer as ruas da encantadora Paris. A partir de então, viajar para correr se transformou nas férias perfeitas para Valdomiro e Yara, a principal torcedora e incentivadora.
– Eu sempre gostei de viajar. Então, juntou a fome com a vontade de comer – brinca a professora aposentada de 82 anos, com quem o atleta amador comemorou recentemente 48 anos de casamento.
Yara fez da Maratona de Berlim, há 16 anos, uma das mais memoráveis para Valdomiro. No 15º quilômetro, ele se aproximava do hotel em que estava hospedado, com o ritmo de cinco quilômetros por minuto, quando avistou a mulher em meio à multidão na calçada. Yara comemorava a persistência do marido com um apito que ainda guarda em casa. O singelo gesto da mulher faz brotar lágrimas nos olhos do maratonista até hoje e traduz a relação do casal, resumida em parceria e confiança.
Há cerca de oito anos, quando Valdomiro se preparava para uma maratona em Punta del Este, foi acidentalmente atropelado ao sair da Avenida Edvaldo Pereira Paiva e virar à esquerda na Ipiranga para pegar o rumo de casa. Jogou-se em cima do capô e acordou no chão, com um corte na testa e a clavícula quebrada.
– Eu só pensei nas minhas pernas: “Se o carro me pega, não vou mais poder correr”.
Um amigo que treinava junto se encarregou de chamar o Samu e ligar para Yara, mas, a pedido de Valdomiro, que não quis preocupar a mulher, disse que ele estava a caminho do hospital porque havia tropeçado. Apesar de encontrar o marido no pronto-socorro, ensanguentado e fraturado, a aposentada acreditou no tombo violento, afinal, Valdomiro nunca havia mentido para ela. Mas a farsa não durou muito. No final da tarde, quando o casal já se encontrava em casa, o telefone tocou e Yara atendeu: “Boa tarde, aqui quem fala é o motorista que atropelou o seu Valdomiro”.
O MAIOR DOS FEITOS
Difícil é Valdomiro falar de uma prova sem emendar histórias que revelam que o esforço vale a pena. Como em Praga, em 2002, quando caiu ao tentar desviar de uma placa de trânsito, fraturou uma costela, levantou e terminou a prova, ou em Londres, quando fez o surpreendente tempo de 3h24min com 65 anos.
No entanto, ele acredita que não tenha existido uma maratona tão árdua e inesquecível quanto a de Chicago, em 2014, até porque tantos infortúnios pré-competição fariam muitos atletas embarcarem para os Estados Unidos apenas para turistar.
Onze meses antes do grande dia, depois de já ter feito a inscrição, começou a sentir dores e deu início a um período de pouco treino e intenso tratamento para curar fraturas na coluna. Seis meses antes da viagem, ouviu do médico que teria de ficar um ano sem correr e se contentar com caminhadas. Teimoso, colocou o tênis de corrida na mala.
– Fui para a maratona. Trotei 11 quilômetros e não deu mais. Fiz as contas e ainda faltavam 31. Mas eu não iria para a casa sem a medalha.
O gaúcho começou a intercalar corrida com caminhada, sempre de olho no relógio para não estourar o limite de seis horas e 30 minutos da prova. Faltando 10 quilômetros, quando parecia que nada mais poderia agravar a situação, uma dor de barriga desacelerou ainda mais o seu ritmo:
– Comecei a dar passinhos de centímetros, não podia abrir a passada. Cheguei em 6h15min, peguei a medalha e corri para um banheiro.
Na tarde após a prova, teve de descer a escada de um ônibus de turismo sentado para suportar a dor nas pernas.
o MARATONISTA
INÍCIO AOS 50
Filho único de pai russo e mãe polonesa imigrantes no Brasil após a I Guerra Mundial (1914-1918), Valdomiro nasceu em Porto Alegre, mudou-se com a família para a Polônia aos 11 anos e retornou aos 24. Na Europa, concluiu os estudos, tornou-se técnico em mecânica e se descobriu apaixonado pelo atletismo. Chegou a assistir de perto a Emil Zatopek, tcheco conhecido pelo feito histórico de vencer, em uma mesma olimpíada (a de Helsinque, em 1952), uma maratona e as provas de 5 mil e 10 mil metros.
Em 1980, em meio à conclusão do curso de Ciências Contábeis, sujeitou-se a uma aposta ocasional dos colegas que duvidaram de sua resistência na corrida:
– É claro que eu ganhei.
Valdomiro tinha 40 anos quando pisou no Parque Marinha do Brasil pela primeira vez para treinar. A rua se tornou uma companheira diária, e virou rotina lidar com os comentários debochados dos importunos da cidade, desacostumados com um corredor entre os pedestres.
– O pessoal gritava: “Vai trabalhar, vagabundo”.
Em 1989, aos 50 anos, inscreveu-se para enfrentar os seus primeiros 42,195 quilômetros, na Maratona Internacional de Porto Alegre. Correu na companhia de Álvaro Garcia, atleta amador de 55 anos com 40 maratonas no currículo atualmente. Valdomiro e o amigo haviam conseguido alcançar nos treinos 22 mil metros até então. Devido à precariedade da competição na época, sem postos de hidratação, Yara e a mulher de Álvaro acompanharam a dupla em um Fusca equipado com água e comida. Valdomiro enrolou uma toalha no braço para enxugar o suor e optou por usar um par de kichutes. No quilômetro 27, pouco depois de Álvaro ter desistido da prova, o inexperiente Valdomiro parou com dores insuportáveis nos pés. Continuou caminhando pela Avenida Sete de Setembro até encontrar um local de apoio para sentar e tirar os calçados que, mais tarde, deu-se conta que eram impróprios para o esporte.
– Cheguei ao Mercado Público e encontrei um chuveirinho. Entrei embaixo e tomei aquele banho. Os pés desincharam na hora e eu fui até o fim.
No ano seguinte, ele e Álvaro completaram a mesma prova e continuaram fiéis um ao outro e à corrida. Foram para Curitiba mais de três vezes, Nova York e Amsterdã, mas sem kichutes na mala.
Valdomiro contabiliza quase 20 provas de 42,195 quilômetros fora do país. Das famosas e ambicionadas seis maiores maratonas do mundo – Nova York, Boston, Chicago, Londres, Berlim e Tóquio –, só não correu no Japão. Nada disso chega perto de sua maior ambição: seguir correndo até seus últimos dias de vida.
Ele costuma se aventurar em duas maratonas por ano, mas já chegou a contrariar a recomendação profissional de não passar disso ao correr quatro – e não foi só uma vez. Inclusive, é também considerado um ultramaratonista por ter completado uma prova com distância superior a 42,195 quilômetros. Foram os 50 quilômetros de Rio Grande, desafio em que comemorou os seus 70 anos. Hoje, ele “pega mais leve” e não almeja o pódio. Compete apenas consigo mesmo:
– Depois que a gente dobra o Cabo da Boa Esperança, começa a sentir que não dá mais para competir. Aceito e corro por prazer e para completar, sem me preocupar em fazer tempo.
– E tanta gente sadia não faz nada… só faz maldade… não faz bem nem para si nem para os outros – afirma a orgulhosa Yara.
Prestes a completar 79 anos, o aposentado é um exemplo de longevidade entre os médicos. Sua pressão arterial se mantém em 12 por seis, não toma medicação nem para dor de cabeça e percorre uma média de 70 a 80 quilômetros por semana – esse número já ficou entre 120 e 140. Quando chove, vai para a esteira e descansa nos dois dias da semana em que fortalece a musculatura na academia. Pula da cama às 4h, leva cerca de uma hora para comer frutas com “farinhas” e tomar um suco seguido de um cafezinho, busca o jornal na caixinha para Yara ler quando acordar e nem sempre espera o dia clarear para sair de casa.
– Ele é um fenômeno em desempenho e vontade. Sempre disposto a disciplinado. Quem o conhece o tem como uma meta de vida – comenta o treinador Onécimo Ubiratã Medina Melo.
Nas ruas de Porto Alegre, Valdomiro já é uma espécie de celebridade. Como bom ídolo, arrasta uma multidão de fãs por onde passa. É cumprimentado pelo nome, posa para selfies e raramente termina um treino sozinho, porque não há fã que acelere ao encontrar o maratonista com seus peculiares passos curtos. Também não pertence a nenhum grupo de corrida, mas a impressão é a de que faz parte de todos:
– Como todo mundo me conhece e eu conheço todo mundo, eu peço água, converso… Às vezes me oferecem fruta e isotônico, mas aí eu prefiro não abusar.
As marcações em postagens motivacionais nas redes sociais revelam uma das maiores recompensas de seu suor diário:
– Muitas pessoas dizem que são maratonistas graças a mim. Eu sempre digo que o segredo está na mente. Se não tem problema de coração e de pulmão, a musculatura aguenta. No dia seguinte, vai estar dolorido, mas aguenta também.
A empresária Eliete Ramires Ruzzarin, 55 anos, treina duas vezes por semana na companhia do ex-vizinho. É um incentivo a mais para a corredora, que se prepara para uma meia-maratona.
– Eu faço dez ou 11 quilômetros, e o Valdomiro segue… Eu pergunto “vais correr quantos hoje?”, e ele responde: “Vou até cansar” – relata a amiga.
Emilia Magnan conheceu Valdomiro correndo, nas primeiras horas de uma manhã. Poucos minutos de conversa foram o suficiente para a psicóloga se dar conta do atleta experiente que a acompanhava.
– Não parei mais de fazer perguntas, pelo menos enquanto tinha fôlego.
Ele me desafiou a correr uma meia-maratona, e, desde então, tenho tido o seu Valdomiro como treinador e incentivador – conta Emilia.
– É tanta mulher na vida dele… mas eu não tenho ciúmes – brinca Yara, sentada na poltrona da sala onde ela e o marido ocupam o tempo lendo ou ouvindo música, quando não estão envolvidos com a corrida: ele suando, e ela estudando roteiros de viagens e a cultura dos próximos destinos.
Em abril, Valdomiro correrá pela segunda vez na Polônia. Mais uma maratona ou ele já estaria diminuindo o ritmo? A resposta foi convicta e bem-humorada:
– Tu achas que eu vou até lá para correr só 10 quilômetros?
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EDIÇÃO
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