Não há atalhos para conhecer a nova música regional gaúcha.
Em tempos de banda larga quase onipresente, é fora da área de cobertura, cercado pela água e pela lama, que ocorre um festival que tem ajudado a renovar a canção do Rio Grande do Sul. Em Porto Vera Cruz, próximo a Santa Rosa e a 550 quilômetros de Porto Alegre, na costa do Rio Uruguai, o Encontro Costeiro reúne todo ano cerca de 300 participantes para quatro dias dedicados à celebração e à criação musical.
Concebido por amigos, que não pretendem fazer do festival um evento massivo, o Encontro Costeiro não tem divulgação endereçada a grandes meios de comunicação, tampouco tem presença militante nas redes sociais. No entanto, ao longo de sua trajetória, estabeleceu um número significativo de fiéis participantes e até estrelas próprias. Mais do que isso, ajudou a espalhar a cultura dos festivais de beira de rio para outras regiões do Estado – e até para fora do Rio Grande do Sul.
A grande inspiração para o grupo de amigos batizado Os Costeiros foi o festival Barranca da Canção, que ocorre ininterruptamente, desde 1972, em São Borja. Tal como o evento são-borjense, a chamada grande noite, em Porto Vera Cruz, é marcada pela apresentação de músicas inéditas, compostas e arranjadas de um dia para o outro, no local, a partir de um tema que é divulgado na véspera pela organização. Outra regra seguida à risca é a ausência de mulheres.
confraria nativista
Entre as justificativas para a negativa à presença feminina, estão a rusticidade das acomodações e possíveis brigas por ciúmes.
– Não posso garantir condições de conforto e alimentação muito melhores das que temos. Sei que as companheiras de muitos colegas não se importariam com isso, mas pode acontecer, e quebraria o clima – explica Sadi Ribeiro, compositor e um dos fundadores do Encontro Costeiro.
Segundo os participantes, não há muitas queixas por parte das companheiras que ficam em casa.
– A maioria delas entende, mas algumas ficam desconfiadas, questionando o que a gente passa fazendo todo esse tempo aqui. Parece simples demais a resposta, mas é só conversa e música – diz Sadi.
A simplicidade das acomodações descritas pelo fundador do encontro pôde ser posta à prova logo no primeiro dia desta 25ª edição, que foi acompanhada por ZH. Na noite de 2 de novembro, uma quinta-feira, tudo ocorreu normalmente até o fim da mostra competitiva de versos, mas em seguida começaram os problemas. O show de encerramento, com Gilmar Martinelli e Os Felpudos, teve seu fim abreviado por quedas repetidas de luz. Era o prenúncio de uma madrugada agitada.
De repente, a ventania alcançou o Balneário Chico Alferes, que sedia há mais de uma década o Encontro. O local tem três ou quatro casas que podem ser alugadas pelos participantes, mas a maior parte do público prefere acampar. Naquela noite, a chuva invadiu muitas barracas, e algumas não resistiram ao vento, sendo despedaçadas e carregadas por dezenas de metros. Alguns amigos haviam erguido lonas sob as árvores, como uma proteção extra para as barracas. Muitos deles precisaram segurar à mão essas estruturas por cerca de duas horas, no escuro em meio ao aguaceiro, para que não rompessem.
O agrônomo Fernando Fagundes, que veio desde Tuparendi com o filho Felipe, 15 anos, precisou passar a noite dentro do carro. No dia seguinte, recolhia calmamente seus pertences espalhados pelos gramados vizinhos.
– Todo ano é a mesma coisa. Parece que, se não tem alguma chuvarada, não valeu a vinda. De certa forma, isso até aproxima o pessoal. Todos se ajudam – comentou Fagundes.
Ninguém realmente pareceu incomodado com a mudança brusca no tempo. Aos poucos, os participantes iam despertando, deixando os colchões molhados e dirigindo-se ao café da manhã, sem grande perspectiva de dormirem a noite seguinte em um ambiente seco, já que uma garoa vinha e voltava no céu cinzento. Os amigos contavam causos e conversavam tranquilamente. Era a postura de quem já viveu tormentas bem piores.
– Isso não foi nada em comparação a anos anteriores. Uma vez um afluente do Rio Uruguai subiu tanto com a chuva que bloqueou nossa estrada. Ninguém deixou de participar por causa disso. Largamos os carros e atravessamos com um barco – lembra Vitor De Conti, atual presidente d’Os Costeiros.
Roda de música e churrasco
Refeições coletivas são preparadas por alguns participantes do encontro, enquanto outros compõem, ensaiam, preparam-se para a apresentação noturna ou simplesmente curtem o “ajuntamento” de amigos, que já está na 25ª edição
Roda de música e churrasco
Refeições coletivas são preparadas por alguns participantes do encontro, enquanto outros compõem, ensaiam, preparam-se para a apresentação noturna ou simplesmente curtem o “ajuntamento” de amigos, que já está na 25ª edição
Roda de música e churrasco
Refeições coletivas são preparadas por alguns participantes do encontro, enquanto outros compõem, ensaiam, preparam-se para a apresentação noturna ou simplesmente curtem o “ajuntamento” de amigos, que já está na 25ª edição
Servindo de modelo
Apesar de ter sido criado nos mesmo moldes da Barranca, o Encontro Costeiro se molda de maneira diferente do evento sã-borjense. Além da grande noite de encerramento com uma música feita de véspera, o primeiro dia conta com declamação de versos inéditos, e há uma mostra competitiva com faixas de tema livre na segunda noite. Como não há premiação em dinheiro, as canções vencedoras seguem com status de inéditas, podendo participar de outras competições. Dessa forma, o festival se tornou um bom lugar para compositores e músicos testarem letras e arranjos.
Por conta das comemorações de 25 edições, o Encontro recebeu uma atração especial neste ano.
O grupo Os Angueras, responsável pela fundação da Barranca, fez uma apresentação de seu conjunto artístico na segunda noite do festival. O concerto foi ouvido com veneração pelos presentes – todos levantaram e tiraram os chapéus, como se ouvissem um hino, aos acordes de Canto a Anguera, primeira canção da noite.
Telmo Motta Jr., que comandava o espetáculo dos visitantes, reconhece que o Encontro Costeiro é um fruto direto da Barranca, fazendo na região de Santa Rosa o que o evento original faz em São Borja:
– Tínhamos todos os anos alguns convidados de Santa Rosa na Barranca. Procuramos estar sempre em contato com pessoas que se relacionam com a música e a poesia, e elas aumentaram nessa região, ao ponto de criar um outro movimento, que foi agregando elementos próprios típicos da região e deu oportunidade a outros artistas que talvez nós não conhecêssemos. O Encontro está cumprindo a mesma função da Barranca, mas aqui, entre as Missões e as colônias de imigrantes europeus. Nós, da Barranca, estamos entre a Fronteira e as Missões. O pessoal daqui de Santa Rosa criou seu próprio público e fortaleceu um circuito muito interessante de artistas.
Ao longo dos anos, o Encontro Costeiro foi crescendo, até ter um público similar ao da Barranca – cerca de 300 homens por edição. A ideia é que o evento não se torne maior do que isso. Ao contrário, a organização quer diminuir o número de participantes. Em 2018, por exemplo, a ideia é tirar da lista de convidados quem poderia ter participado mas não compareceu em 2017.
– Não é para ser um evento muito grande. Todo mundo deve poder interagir entre si, olhar no olho um do outro. É como se estivéssemos em família. É esse contato, profundo e verdadeiro, que tem a capacidade de levar nossa cultura para frente – aponta Jairo Brandeleiro Marques, membro d’Os Costeiros.
O grupo conta com 36 organizadores, que se revezam nas lidas da produção. Nenhum deixa de pagar sua inscrição no evento, como qualquer outro participante. Com espírito amador, mas grande dedicação, Os Costeiros demonstraram que é possível cada região ter seu próprio encontro, nos moldes da Barranca, mesmo com poucos recursos e sem a presença de grandes estrelas da música regional.
A ideia não é forçar a vinda de músicos consagrados e com veiculação na grande mídia estadual, mas sedimentar a carreira de destaques das proximidades, bem como fomentar novos talentos.
O que os organizadores querem é que a cultura dos festivais de beira de rio se difunda, criando novos eventos semelhantes. O intento vem dando certo: desde que Os Costeiros organizaram seu encontro, outros grupos de amigos e admiradores de música se encorajaram a promover suas próprias ações. Com isso, nas últimas duas décadas, um circuito de festivais de barranca tem se sedimentado no sul do país.
– Muita gente que frequenta o nosso encontro já veio nos pedir dicas de como iniciar um projeto em sua região. A gente conversa, tenta passar algumas orientações e fornece nossa lista de participantes – diz Sadi Ribeiro.
Há mais experiências parecidas no próprio Rio Uruguai, em Esperança do Sul; no Rio Vacacaí, em Restinga Seca; no Rio Taquari, em Lajeado; no Rio Ijuí, em Ijuí, no Rio Jaguari, em Jaguari; no Rio Paraná, em Foz do Iguaçu (PR); entre outros.
– Tenho um grupo de amigos que se revezam indo para diferentes encontros. Devo ir a sete ou oito desses por ano – conta o músico Mafaldo, que saiu de Foz do Iguaçu especialmente para o Encontro Costeiro.
E ele não era o único de fora do Estado a estar presente em Porto Vera Cruz. Havia gente de diferentes partes da Região Sul. Braz de Jesus, dono de um restaurante japonês em Blumenau (SC), troca há anos o balcão de sushis pelos assados de costela e porcos no rolete do festival que é tradicionalmente no feriado de Finados. Como Mafaldo, Braz não tem qualquer ligação familiar com gaúchos, mas foi fisgado pela música regional do Rio Grande do Sul. É o oitavo ano em que passa 14 horas na estrada para vencer os 860 quilômetros que o separam do Balneário Chico Alferes.
– O Rio Grande do Sul tem uma cultura própria. Aqui fiz amigos que revejo todos anos. Até comecei a tocar gaita para ajudar a fazer barulho – brinca Braz.
Para o compositor Jackson Guanaco de Ley, um dos vencedores desta edição do Encontro Costeiro, os festivais de barranca de rio constituem um movimento de renovação da música gaúcha:
– É um movimento próprio, diferente dos grandes festivais ou dos CTGs. Aqui não há protocolos. Você vai ver gente de bombacha e lenço, mas também de bermuda e chinelo de dedo. As pessoas se encontram em um festival, fortalecem a amizade em outro evento e logo estão compondo ou subindo no palco juntas.
Guanaco venceu a competição de canções com tema livre com a letra de Nas Forjas do Rio Grande, musicada por Adalberto Hommerding e Marcos Alves.
O compositor também inscreveu uma letra em parceria com o filho Jules, a partir do tema “Na paz do remanso”, proposto pela organização. A faixa contemplada nessa categoria foi Rio da Paz, com letra de Jussemar dos Santos, Silvio Genro e Dilson Webwer e música de Nelci Morales e Vinicius Ribeiro.
Já na competição de poesias inéditas, o primeiro lugar ficou com A Soma dos Bons, de Silvio Genro, com interpretação de Jorge Luis Copetti. Mas, é bom lembrar, o caráter competitivo fica em segundo plano em mostras como essa.
– Existe troféu para primeiro, segundo e terceiro lugares, mas isso não é o principal. A regra fundamental é a da amizade, que um possa trocar e aprender algo com o outro. Posso compor uma letra, caminhar 10 passos e encontrar um colega menos experiente pedindo minha ajuda na letra dele. Não importa se eu ajudar e, lá no palco, ele ganhar de mim.
O que importa é que, mais adiante, nós dois poderemos estar juntos em outro festival maior, como uma Califórnia da Canção. Nossa cultura se frutifica com isso – avalia Guanaco.
Basta dar uma caminhada pelo Balneário Chico Alferes para perceber que o que ocorre no palco é apenas uma fração dos atrativos do Encontro Costeiro. Pelos gramados ou quiosques do balneário, músicos se reúnem e tocam de improviso canções e temas instrumentais. Ao redor de uma gaita e de um violão, grupos que geralmente não ultrapassam uma dezena de homens podem ficar por horas cantando, tomando mate ou um trago, digamos, mais forte.
Quando Gilmar Martinelli puxava alguma canção ou contava um causo, não havia quem quisesse levantar antes de ouvir até o final. Valdomiro Maicá, que visita o Encontro há mais de 20 anos, era mais um destaque como cantor nas tertúlias, assim como Antônio Candido Oleques, o Candinho. Na gaita-ponto, o veterano Adão Lanes e o jovem Desidério Souza exibiam virtuosismo.
As tertúlias são momentos em que músicos menos experientes podem dividir espaço com que já tem décadas de palco. Com apenas 13 anos, o acordeonista Marcos Robalo, de São Borja, tocava de igual para igual com os veteranos.
Da mesma forma, o violonista Felipe Goulart, 19 anos, de Itaqui, era um dos destaques com seu violão de sete cordas. Na última noite do festival, Goulart foi convidado a improvisar no palco ao lado do acordeonista Lelé, 64 anos, virtuose de Foz do Iguaçu. Os dois fizeram o público aplaudir de pé um repertório bem distinto do nativismo, esmerilhando clássicos do choro como Tico-Tico no Fubá e Brasileirinho.
CENAS DE UM FESTIVAL
FELIPE GOULART E O GAITEIRO NEGO LELÉ; ALGUNS VENCEDORES DO 25º ENCONTRO COSTEIRO; E CANDINHO, COM SUA NOVA COMPOSIÇÃO.
CENAS DE UM FESTIVAL
FELIPE GOULART E O GAITEIRO NEGO LELÉ; ALGUNS VENCEDORES DO 25º ENCONTRO COSTEIRO; E CANDINHO, COM SUA NOVA COMPOSIÇÃO.
CENAS DE UM FESTIVAL
FELIPE GOULART E O GAITEIRO NEGO LELÉ; ALGUNS VENCEDORES DO 25º ENCONTRO COSTEIRO; E CANDINHO, COM SUA NOVA COMPOSIÇÃO.
Cultura costeira
O Encontro Costeiro tem conseguido fortalecer o entrosamento entre músicos de diferentes gerações e regiões do Estado. O público é formado por empresários, profissionais liberais e servidores públicos, mas também trabalhadores mais humildes e estudantes. Vinhos que custam algumas centenas de reais dividem a mesa com cervejas tradicionais e aguardentes baratas.
– Depois que entra aqui, todo mundo é igual. Não há vaidade. Todo mundo conversa e brinca com a mesma naturalidade – afirma o Vitor.
Além de integrar músicos e espectadores, o Encontro Costeiro também tem colaborado para que as características culturais da região de Santa Rosa se agreguem ao cancioneiro gaúcho. Ladeados pelas Missões e pelas colônias de imigrantes italianos e principalmente alemães, os gaúchos dali têm desenvolvido letras com temas e vocabulários próprios, diversas do regionalismo mais conhecido no Estado, associado à região do Pampa.
– É claro que usamos o cavalo, mas este não é um elemento tão presente aqui como na fronteira com o Uruguai. Aqui, há o cuidado com os cultivos e com o rio. Nossas canções falam da preservação da natureza, de pescaria, da relação com a água – explica Sadi Ribeiro. – Há diferentes modos de ser gaúcho. Ser costeiro é um deles.
TEXTO
Alexandre Lucchese
alexandre.lucchese@zerohora.com.br
IMAGENS
Tadeu Vilani
tadeu.vilani@zerohora.com.br
EDIÇÃO
Daniel Feix
daniel.feix@zerohora.com.br
DESIGN
Paola Gandolfo
paola.gandolfo@zerohora.com.br