Morangos musicais
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Cultivadas em estufas ao som de bob marley, mozart e muito rock, as frutas são a atração do Barlavento, em Caxias do Sul

Há um lugar no Rio Grande do Sul onde os morangos crescem ouvindo reggae. O som vem de duas caixas instaladas na estrutura das estufas, e a playlist é por conta do dono da plantação. Ele até varia o ritmo jamaicano com clássicos do rock e da música latina, mas não deixa que os frutos se desenvolvam embalados por sertanejo, funk e outros estilos que não o agradam. O negócio é rigoroso. Apesar de Mauricio Fedrizzi, 56 anos, não saber bem ao certo se a paz de Jah deixa mesmo os morangos maiores, doces ou suculentos.

– Tem estudos que falam que as plantas são influenciadas pelas músicas, mas teria de se fazer uma pesquisa muito minuciosa poder comprovar o efeito aqui. Então, pelo sim ou pelo não, rock’n’roll neles.

E uma reggaera no verão! – brinca o agricultor-empresário.

Mal é que o som não faz: as frutas são robustas e saborosas. O segredo mesmo parece estar mais nos cuidados com as plantas, que precisam ser vigiadas durante todo o dia. Elas crescem longe da terra, plantadas em canos de PVC enfileirados por onde corre uma solução de água e sais minerais. Nada mais. Os agrotóxicos passam longe. E convidados a chegar bem perto são todos os que desejarem um combo duplo: um afago aos ouvidos e ao paladar.

Os morangos hidropônicos de Caxias do Sul ganharam fama na Serra. E já se mostram um motivo de parada obrigatória para quem passa pelo quilômetro 154 da RSC-453, a Rota do Sol. É às margens da movimentada rodovia que estão as três estufas da Rio do Vento Hidroponia e o aconchegante Barlavento, um espaço onde os clientes podem relaxar estirados em redes em meio à natureza – ora balançando a cabeça conforme o compasso de Bob Marley, ora voltando a atenção para as prodigiosas notas de Mozart, por vezes curtindo os efeitos processados dos dubs da norte-americana Groundation e o ritmo mais latino de Onda Vaga (Uruguai), Los Cafres (Argentina) e Zona Ganja (Chile e Argentina).

O repertório é amplo e cai bem com sucos, batidas e taças generosas de chocolate, sorvete, caldas e morango, morango, morango.

Há frutas o bastante, mas elas não brotaram assim, do nada. Em 1998, quando a primeira estufa foi erguida, quem entendia de hidroponia entendia de alface. Quem entendia de morango entendia de morango na terra. Fedrizzi conversou com mais de 30 agrônomos e órgãos de pesquisa ligados à agricultura, viajou pelo Estado em busca de informação. E não ouviu nada além disso: “Hidroponia de morangos é coisa de feira de ciências”.

– Eu nunca tinha visto um pé de morango. As pessoas me chamavam de louco, com razão – lembra Fedrizzi.

– E chamam até hoje – complementa a namorada, Bruna Perin, achando graça.

Para que os morangos vingassem longe da terra foi preciso um tanto de ousadia – além das duas caixas de som, que o dono nem lembra mais quanto custaram. Estava em jogo não apenas uma quebra de paradigmas em relação às formas de cultivo da fruta, mas um novo projeto de vida pessoal que amadurecia junto à produção. Fedrizzi dirigia as áreas de informática e recursos humanos na empresa da família, em Caxias do Sul, quando em uma viagem ao Pantanal com o filho mais velho, na época com oito anos, viu a própria vida passar “como que em um telão”. Não estava feliz. Resolveu cair fora do trabalho. Ficou seis meses zanzando em busca do que fazer, até que teve a ideia dos morangos.

– Eu era diretor em uma empresa, tinha estabilidade, baita salário, casarão, casamentão. Tudo veio em uma fase de mudança completa, que não foi somente profissional, mas de estilo de vida. Eu não comungava com os valores de Caxias, que tende a ser uma cidade mais conservadora.

Queria fazer algo alternativo ao modus vivendi daqui. Não para ser melhor, mas para ser diferente – afirma Fedrizzi.

Após a demissão, matriculou-se em um cursinho pré-vestibular. Queria se lembrar dos cálculos estequiométricos da química, necessários para fazer as soluções hidropônicas. Mais tarde se deu conta de que precisava mesmo é estudar biologia, com foco na fisiologia vegetal. Passou na Universidade de Caxias do Sul (UCS).

Só que a primeira leva de mudas murchou, e Fedrizzi estava praticamente perdendo toda a plantação quando se inscreveu como estagiário não-remunerado no Instituto Biológico da UCS. Foi onde aprendeu a fazer o controle biológico para eliminar as pragas sem o uso de inseticida.

Dois anos depois, com uma estufa a mais, a produção já era farta, e a venda para grandes redes de mercado já não

se mostrava mais atraentes.

Era hora de dar o segundo passo, a implantação de uma agroindústria de geleias. Foi quando começou a construção do espaço que mais tarde, já ampliado, viria a se chamar Barlavento. Em 2002, quando a casinha de alvenaria estava ficando pronta, mais um percalço: as mudas que naquele ano haviam vindo da Argentina estavam contaminadas. Perdeu cerca de 70% da plantação. Desta vez, a solução foi puxar um telhado na frente da obra da agroindústria, colocar quatro mesas com cadeiras embaixo e apostar na venda de sucos e vitaminas.

– Era o que achávamos que que dava fazer com os morangos. E aquilo começou a bombar. Paravam carros da BMW, Mercedes, Jeep. E comecei a me perguntar: mas o que é que tem esse lugar aqui?

Então me dei conta que aqui ao lado tem os clubes de golfe, de tiro e de aeromodelismo. E estávamos na margem da rodovia que leva à praia – lembra.

Dos sucos e batidas para os sorvetes, milk-shakes, caldas de morango a um cardápio farto foi um pulo. Logo a casinha ganharia paredes de vidro, seria novamente ampliada, no inverno receberia aquecedores e seria todo decorado com redes de pesca, velas, barcos e remos – que o proprietário, praticante de esportes náuticos, já tinha em casa. Algumas caixas de som ali dentro, e nascia o Barlavento.

– É aí que eu digo que virei bodegueiro sem querer – brinca Fedrizzi.

No inverno, o cardápio é mais restrito, e as frutas ficam reduzidas a caldas e outros pratos que permitem o uso delas congeladas. É que apesar das diferentes variedades que forram as estufas, os meses entre abril e julho são sempre críticos. Não tem reggae que faça frutos nascerem fora de época. Já nos fins de semana de verão, quando o clima ajuda e a produção também, os espaços do bar são tomados por dezenas de famílias. Um público estimado em mil pessoas já chegou a ser atendido em um mesmo dia – caíram na tentação das variações de delícias acompanhadas de morangos. Fedrizzi não faz os cálculos para saber qual a produção anual da plantação mas garante: nos meses mais quentes, o frutos são consumidos na mesma semana em que amadurecem.

À medida que o negócio ia se fortalecendo, morar próximo à plantação virou uma ideia cada vez mais concreta. O casamento já não ia tão bem, então se separou. Deixou a casa de quase 500 metros quadrados e se mudou para um puxadinho 10 vezes menor, construído ao lado de uma das estufas. Contratou funcionários para cuidarem na plantação e, no fim de semana, reforça a equipe de garçons do Barlavento com o apoio de estudantes-intercambistas da UCS, vindos de países como a Argentina, o Chile e a Colômbia – que dão seus pitacos e incrementam também a lista de músicas que embalam os morangos.

– Eles me mostram bandas que eu não conheço. Eu sempre escuto. Se aprovo, as músicas são incorporadas à lista e passam a ser tocadas para os morangos e clientes – afirma Fedrizzi.

Nos últimos dois anos, já ao lado da nova companheira, Bruna, o proprietário das estufas também se dedica a uma hospedaria, erguida no mesmo terreno. A imponente casa foi construída com o material de outras duas, de 1871 e de 1951, desmanchadas e deslocadas das Missões para a Serra. Lá, elas estavam abandonadas, ruindo com o tempo. Ali, ganharam vida e se transformaram um casarão de seis quartos, aconchegante em qualquer época do ano.

A produção, a hospedaria e o bar seguem de vento em popa. E o sucesso é fruto da qualidade do serviço oferecido. Fedrizzi faz questão de não investir em publicidade. Ele tem um norte e quer preservá-lo. Para isso, acredita na divulgação boca a boca.

– Se eu me proponho a fazer algo diferente do que está aí, eu não posso me mexer pelos mesmos caminhos. De um ano para cá, o Barlavento bombou com as redes sociais. Por quê? Por que as pessoas vêm aqui, pedem um sorvete, acham maravilhoso, tiram uma foto e publicam. É simples.

A vida no “meio do mato”, a moradia de 50 metros quadrados e a tranquilidade de passar os dias de calor de bermuda e chinelos compõem um cenário bem perto do imaginado há quase duas décadas quando o projeto começou. Mas os planos não param. Em 10 anos, a ideia do casal é de morar no Uruguai. Só que lá é muito mais tranquilo. Então, Fedrizzi diz estar passando por um processo de desaceleramento.

– A ideia é fazer o que a gente faz aqui.

De repente, pegamos uma casa lá, abrimos uma janela e vendemos o Vento Sul e o Alestada, que são os dois sorvetes mais pedidos aqui. A maior parte dos nossos clientes e amigos, pelo que percebemos, têm a ideia de levar uma vida mais simples, só que nunca coloca isso em prática.

A gente percebeu que é preciso de pouca coisa para viver. Basta deixar a teoria e, em algum momento, iniciar a prática – recomenda o ex-engravatado, calçando um bom par de chinelos.

TEXTO

Bruna Scirea

IMAGENS

Carlos Macedo

carlos.macedo@zerohora.com.br

EDIÇÃO

Daniel Feix

daniel.feix@zerohora.com.br

DESIGN

Amanda Souza

amanda.souza@zerohora.com.br

 

Paola Gandolfo

paola.gandolfo@zerohora.com.br

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