A mulher que mora perto do sol
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Na estreia da série Singular, que vai mostrar lugares e personagens do Rio Grande do Sul muito... singulares, visite a casa de Eliane Portella, que vive no último andar do edifício mais alto do Estado, em Caxias do Sul.

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m todo o Rio Grande do Sul, ninguém mora há tanto tempo tão distante do chão quanto Eliane Portella, 67 anos. Já faz quase quatro décadas que ela acorda no último andar do edifício mais alto do Estado, o Condomínio Parque do Sol, em Caxias do Sul. Do 30º andar (na verdade, o 36º pavimento), são 114 metros até a portaria do prédio. Não fosse o elevador, ela teria de percorrer, pelas escadas, uma distância semelhante à do comprimento de um campo de futebol. Tudo isso só para sair de casa.

Viver mais perto do céu foi uma decisão tomada pelo medo. Obviamente, não o de altura. Eliane, o ex-marido e os dois filhos moravam no quinto andar de um prédio da cidade serrana quando, em uma madrugada, foram acordados por um assaltante. O intruso estava ali, dentro do apartamento, com uma arma na mão. Havia escalado cerca de 15 metros quando encontrou a sacada com uma fresta da porta aberta. Entrou. E, a partir de então, as noites da família se fizeram de insônia e pesadelo. Não demorou para que buscassem um novo lar, mais seguro.

– Escolhemos o lugar mais alto possível. Bem no alto mesmo – conta Eliane.

Os primeiros apartamentos do Parque do Sol começaram a ser ocupados em 1977, sete anos após o início das obras. Idealizada pelo arquiteto Elyseu Mascarello, a construção era ousada não somente em sua altura. O empreendimento previa quatro elevadores, dois apartamentos de 230 metros quadrados por andar (cada um com quatro quartos e duas vagas de garagem) e playground, além de um shopping center, um heliporto e uma capela comunitária que não saíram do papel.

O edifício foi erguido logo em frente ao Parque dos Macaquinhos, que, embora não tenha mais macaquinhos, segue sendo a área verde mais movimentada de Caxias. Para a construção do prédio, foi reservada uma quadra inteira, delimitada pelas ruas Antônio Prado, Dr. Montaury, José D’Arrigo e Visconde de Pelotas. Dentro desse perímetro, foram empilhados apartamentos cujas características acompanhavam a corrente modernista no país: além de espaçosos, eram funcionais e com área íntima separada da social. De quase todos os cantos da cidade, era possível ver a imponente construção cortando o céu. O Parque do Sol. Um símbolo dos novos tempos.

– O plano diretor de cada cidade estipula parâmetros para os projetos das edificações tendo em vista o conjunto, a imagem desejada para a cidade em cada momento. Na Caxias do Sul das décadas de 1960 e 1970, eram priorizadas as edificações em altura, porque era isso a cara do progresso. As sacadas foram feitas pequenas porque não tinham todo o valor comercial que têm hoje. Neste edifício, elas ocupam um vão entre pilares, destacando a verticalidade da estrutura. A construção toda foi calculada tendo especial atenção ao impacto dos ventos. E é, sem dúvida, um grande feito da engenharia civil – avalia Jaqueline Pedone, professora de Arquitetura na Universidade de Caxias do Sul (UCS) e também moradora do Parque do Sol.

Quando Eliane ingressou na nova casa, alguns apartamentos já estavam habitados. E não demorou muito para que o dela recebesse piso, assoalho, móveis e, aproveitando a altura, uma antena no telhado. A distância do solo permitia um hobby antigo da nova moradora: o radioamadorismo. Foram anos de longas conversas diárias com familiares, que ao longo do ano estavam em Porto Alegre e, no verão, no Litoral. A família estava, enfim, bem segura, e não só isso. Havia uma vista invejável e uma orientação solar privilegiada. Sol de um lado pela manhã, do outro pela tarde. Tudo às mil maravilhas. Só que ninguém sai de perto do chão e vai morar nas alturas, assim, sem passar por um período de adaptação.

– Uma das primeiras sensações que tive quando cheguei aqui foi quando olhei para baixo e vi o parquinho do prédio. Lembro de ter pensado comigo: “Mas que gozado, por que colocaram brinquedos pequenininhos assim?”. Tudo parecia estar em miniatura. Desci e fui ver o parquinho de perto. Os brinquedos tinham o tamanho original, eu é que não tinha a proporção das coisas ainda – conta Eliane, achando graça do episódio.

Deixou de fazer sentido aquela velha mania de colocar a mão para fora da janela para sentir a temperatura. Quanto calor passaram vestindo mais peças do que o necessário. É que, no inverno, o frio parece ser mais intenso ali no topo (um ar-condicionado foi instalado neste ano para amenizá-lo). Já no verão, o apartamento é bem mais fresco e ventilado do que lá na rua. Fica difícil adivinhar a roupa a ser usada no solo.

Se lá embaixo o vento nem sempre bate, ali em cima ele sopra pra valer. Uiva e tudo. Se as janelas são antigas, o barulho é ainda maior. Não à toa, surge sempre a mesma curiosidade, toda vez que alguém descobre que Eliane mora no Parque do Sol.

– Ele balança? – perguntam, ansiosos por relatos de objetos caindo das estantes e móveis se arrastando pela casa.

Não é pra tanto.

– Quando entramos, sentíamos que tremia um pouco. Meus filhos eram pequenos, e eu brincava bastante com eles no chão, para que não sentissem tanto. Fomos acostumando e nem sentimos mais. Nunca tivemos medo, mas, em dias de vento mais forte, é possível ver que as luminárias, penduradas, balançam. Mas é pouco – responde Eliane.

O Parque do Sol está longe de ser o prédio mais alto do Brasil, título que carrega o Edifício Millenium, em Balneário Camboriú, com 177 metros de altura e 46 andares. Vira um negocinho de nada perto dos 163 andares espalhados nos 828 metros de altura do Burj Khalifa, em Dubai, Emirados Árabes, o maior do mundo. E é pouco mais alto do que o de Porto Alegre, o Santa Cruz, localizado na Rua dos Andradas, com 107 metros de altura e 32 pavimentos. Só que em Caxias, viver no topo do edifício famoso por ser o mais alto do Rio Grande do Sul é quase como morar em um ponto turístico. Quando visitas e entregadores de mercadorias entram no apartamento são puxados para perto da janela, como se surgisse um campo magnético. Não foi diferente quando, em um fim de tarde, a equipe de ZH chegou à casa de Eliane.

Quando cheguei aqui, olhei para baixo e vi o parquinho do prédio, lembro de ter pensado: “Mas que gozado, por que colocaram brinquedos pequenininhos assim?”. Desci e
fui ver de perto. Os brinquedos tinham o tamanho original, eu é que não tinha
a proporção das coisas ainda.

Aproximando-se do parapeito da sacada, que mal chega na altura da cintura de uma pessoa de estatura média, é inevitável não olhar para baixo – talvez até aqueles que tenham acrofobia, o nem tão raro medo de altura, fiquem tentados a uma breve espiada. Mesmo se os macaquinhos do parque ainda estivessem lá, seriam pequeninos demais para uma vista tão de cima. As pessoas, maiores do que os macaquinhos, já ficam como coloridos risquinhos se movendo pelas calçadas. Tudo fica pequeno e distante. É quando se percebe que, ali do alto, não é esta a vista que faz sentido. O privilégio de viver no céu de Caxias do Sul é poder observar o extenso horizonte.

– Lá no fundo é Nova Petrópolis. E depois daquele morro é Farroupilha. E aqui, logo em frente, é o bairro Panazzollo, que se tornou uma zona sofisticada da cidade – adianta Valter Portella, que se mudou para o apartamento há sete anos, quando se casou com Eliane.

Toda a cidade está aos pés – e boa parte do Estado também, se somados os 114 metros do apartamento até o chão com a altitude de 817 metros de Caxias do Sul. O latido dos cães e o barulho do motor dos carros já estão longe, o ruído vem abafado. É de se desacostumar com o som das coisas. Esses tempos, Eliane foi para o apartamento que mantém em Porto Alegre e passou a noite em claro. Já não tem o medo de ser acordada por um desconhecido durante a noite, não era isso. O problema foi uma chuvarada que caía. A ela, agora, incomoda o som dos pingos chegando com força ao chão.

Lá no teto da cidade, teve de se acostumar com coisas mais inusitadas. Há dias que a neblina é tanta que o casal abre a janela e o que vê é uma nuvem só. Para baixo dela, existe uma cidade de tempo encoberto. Acima daquilo que parece um maço infinito de algodão, o sol bate com força. Parece que estão em um avião.

– Esses dias peguei um táxi, e o motorista estava dizendo que o filho dele é piloto de avião. Ele me contou que a noção que os pilotos têm em relação à neblina no aeroporto é cuidando o Parque do Sol. Se o topo do edifício está aparecendo, podem pousar – conta Eliane.

O prédio é tão alto que, apesar de serem só dois apartamentos por andar, Eliane afirma não conhecer todos os vizinhos. Está sempre topando com caras novas. Recentemente, encontrou um antigo conhecido no elevador. Não o via há tempos e se assustou quando o homem disse que já morava há seis anos no condomínio. Até então não haviam se encontrado nos percursos realizados pelos quatros elevadores do prédio. Por meio deles, a moradora do último andar leva cerca de um minuto para chegar até a garagem. Neste tempo, um adulto é capaz de dar, em média, cem passos. Cem passos correspondem, segundo o Sistema Internacional de Unidades, a 82 metros. Mas de elevador, no mesmo intervalo de um minuto, Eliane percorre a distância de 114 metros. Ela não faz todas essas contas, mas sempre que lhe perguntam se os deslocamentos de elevador são muito demorados, ela diz: “Que nada!”.

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Eliane acompanhou de cima o crescimento de Caxias e a mudança na paisagem da cidade.

Nos quase 40 anos em que mora no edifício, afirma ter enfrentado somente um episódio de pane nos elevadores. Como a desgraça não vem desacompanhada, era exatamente no dia em que ela pegaria um ônibus para viagem. Claro, estava atrasada. Foi preciso subir 684 degraus de escada até em casa. Minutos depois, desceu cada um deles novamente, carregando uma mala cheia.

– Fiquei até com dor de cabeça. Mas foi só aquela vez – lembra.

Desde que Eliane entrou pela primeira vez no Parque do Sol, a cidade cresceu, os prédios ficaram mais altos, a paisagem está diferente. Ela também mudou. Por anos ela atuou como médica obstetra. Chegava a fazer 40 partos por mês. Quando se casou novamente, em 2009, largou a obstetrícia. Continua somente atendendo no consultório como ginecologista. A partir de então, a vida seguiu em um ritmo mais calmo.

– Não sei se a vista hoje é mais bonita do que foi um dia. A gente é que muda o olhar. Eu acho que eu era muito envolvida com o trabalho quando cheguei aqui. Agora, com o novo casamento, estou mais pé no chão, de alguma forma diferente. Tenho curtido mais, olhado mais para fora. Então acho que eu vejo diferente. Meu olhar é que sabe contemplar mais – avalia.

O marido, Valter, que também é médico, só que psiquiatra, passou por uma fase em que se sentia muito pequeno em um apartamento tão grande. O casal tentou, então, encontrar outro lugar para morar – um apartamento longe do chão, claro, mas que fosse mais enxuto. Chegaram a duas possíveis conclusões: ou hoje tudo é m-u-i-t-o enxuto ou foi ele que também se acostumou com a as longas medidas do apartamento.

– Fomos visitar vários prédios. As áreas de serviço eram uma miniatura, quarto, banheiro, tudo, tudo pequeno. Desistimos – diz Valter.

Eliane, de certa forma, agradece o insucesso na busca por um novo apartamento. Ainda que menos agitada, lá longe do chão a vida também é cheia de surpresas:

– Sempre deixo as janelas abertas para dormir. Tempo atrás, despertei no meio da noite com uma “luzona” refletindo direto no meu rosto. Acordei e pensei, meio assustada: “Mas o que é isso?”. Quando abri os olhos, estava ali uma lua gigante. Era a superlua, me espiando bem de pertinho.

TEXTO

Bruna Scirea

bruna.scirea@zerohora.com.br

IMAGENS

Carlos Macedo

carlos.macedo@zerohora.com.br

EDIÇÃO

Ticiano Osório

ticiano.osorio@zerohora.com.br

DESIGN

Amanda Souza

amanda.souza@zerohora.com.br

Paola Gandolfo

paola.gandolfo@zerohora.com.br

A mulher que mora perto do sol
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Quando cheguei aqui, olhei para baixo e vi o parquinho do prédio, lembro de ter pensado: “Mas que gozado, por que colocaram brinquedos pequenininhos assim?”. Desci e
fui ver de perto. Os brinquedos tinham o tamanho original, eu é que não tinha
a proporção das coisas ainda.

CAPA DO ESPECIAL

A mulher que mora perto do sol

Na estreia da série Singular,

que vai mostrar lugares e personagens do Rio Grande do Sul muito... singulares, visite a casa de Eliane Portella, que vive no último andar do edifício mais alto do Estado, em Caxias do Sul.

Em todo o Rio Grande do Sul, ninguém mora há tanto tempo tão distante do chão quanto Eliane Portella, 67 anos. Já faz quase quatro décadas que ela acorda no último andar do edifício mais alto do Estado, o Condomínio Parque do Sol, em Caxias do Sul. Do 30º andar (na verdade, o 36º pavimento), são 114 metros até a portaria do prédio. Não fosse o elevador, ela teria de percorrer, pelas escadas, uma distância semelhante à do comprimento de um campo de futebol. Tudo isso só para sair de casa.

Viver mais perto do céu foi uma decisão tomada pelo medo. Obviamente, não o de altura. Eliane, o ex-marido e os dois filhos moravam no quinto andar de um prédio da cidade serrana quando, em uma madrugada, foram acordados por um assaltante. O intruso estava ali, dentro do apartamento, com uma arma na mão. Havia escalado cerca de 15 metros quando encontrou a sacada com uma fresta da porta aberta. Entrou. E, a partir de então, as noites da família se fizeram de insônia e pesadelo. Não demorou para que buscassem um novo lar, mais seguro.

– Escolhemos o lugar mais alto possível. Bem no alto mesmo – conta Eliane.

Os primeiros apartamentos do Parque do Sol começaram a ser ocupados em 1977, sete anos após o início das obras. Idealizada pelo arquiteto Elyseu Mascarello, a construção era ousada não somente em sua altura. O empreendimento previa quatro elevadores, dois apartamentos de 230 metros quadrados por andar (cada um com quatro quartos e duas vagas de garagem) e playground, além de um shopping center, um heliporto e uma capela comunitária que não saíram do papel.

O edifício foi erguido logo em frente ao Parque dos Macaquinhos, que, embora não tenha mais macaquinhos, segue sendo a área verde mais movimentada de Caxias. Para a construção do prédio, foi reservada uma quadra inteira, delimitada pelas ruas Antônio Prado, Dr. Montaury, José D’Arrigo e Visconde de Pelotas. Dentro desse perímetro, foram empilhados apartamentos cujas características acompanhavam a corrente modernista no país: além de espaçosos, eram funcionais e com área íntima separada da social. De quase todos os cantos da cidade, era possível ver a imponente construção cortando o céu. O Parque do Sol. Um símbolo dos novos tempos.

– O plano diretor de cada cidade estipula parâmetros para os projetos das edificações tendo em vista o conjunto, a imagem desejada para a cidade em cada momento. Na Caxias do Sul das décadas de 1960 e 1970, eram priorizadas as edificações em altura, porque era isso a cara do progresso. As sacadas foram feitas pequenas porque não tinham todo o valor comercial que têm hoje. Neste edifício, elas ocupam um vão entre pilares, destacando a verticalidade da estrutura. A construção toda foi calculada tendo especial atenção ao impacto dos ventos. E é, sem dúvida, um grande feito da engenharia civil – avalia Jaqueline Pedone, professora de Arquitetura na Universidade de Caxias do Sul (UCS) e também moradora do Parque do Sol.

Quando Eliane ingressou na nova casa, alguns apartamentos já estavam habitados. E não demorou muito para que o dela recebesse piso, assoalho, móveis e, aproveitando a altura, uma antena no telhado. A distância do solo permitia um hobby antigo da nova moradora: o radioamadorismo. Foram anos de longas conversas diárias com familiares, que ao longo do ano estavam em Porto Alegre e, no verão, no Litoral. A família estava, enfim, bem segura, e não só isso. Havia uma vista invejável e uma orientação solar privilegiada. Sol de um lado pela manhã, do outro pela tarde. Tudo às mil maravilhas. Só que ninguém sai de perto do chão e vai morar nas alturas, assim, sem passar por um período de adaptação.

– Uma das primeiras sensações que tive quando cheguei aqui foi quando olhei para baixo e vi o parquinho do prédio. Lembro de ter pensado comigo: “Mas que gozado, por que colocaram brinquedos pequenininhos assim?”. Tudo parecia estar em miniatura. Desci e fui ver o parquinho de perto. Os brinquedos tinham o tamanho original, eu é que não tinha a proporção das coisas ainda – conta Eliane, achando graça do episódio.

Deixou de fazer sentido aquela velha mania de colocar a mão para fora da janela para sentir a temperatura. Quanto calor passaram vestindo mais peças do que o necessário. É que, no inverno, o frio parece ser mais intenso ali no topo (um ar-condicionado foi instalado neste ano para amenizá-lo). Já no verão, o apartamento é bem mais fresco e ventilado do que lá na rua. Fica difícil adivinhar a roupa a ser usada no solo.

Se lá embaixo o vento nem sempre bate, ali em cima ele sopra pra valer. Uiva e tudo. Se as janelas são antigas, o barulho é ainda maior. Não à toa, surge sempre a mesma curiosidade, toda vez que alguém descobre que Eliane mora no Parque do Sol.

– Ele balança? – perguntam, ansiosos por relatos de objetos caindo das estantes e móveis se arrastando pela casa.

Não é pra tanto.

– Quando entramos, sentíamos que tremia um pouco. Meus filhos eram pequenos, e eu brincava bastante com eles no chão, para que não sentissem tanto. Fomos acostumando e nem sentimos mais. Nunca tivemos medo, mas, em dias de vento mais forte, é possível ver que as luminárias, penduradas, balançam. Mas é pouco – responde Eliane.

O Parque do Sol está longe de ser o prédio mais alto do Brasil, título que carrega o Edifício Millenium, em Balneário Camboriú, com 177 metros de altura e 46 andares. Vira um negocinho de nada perto dos 163 andares espalhados nos 828 metros de altura do Burj Khalifa, em Dubai, Emirados Árabes, o maior do mundo. E é pouco mais alto do que o de Porto Alegre, o Santa Cruz, localizado na Rua dos Andradas, com 107 metros de altura e 32 pavimentos. Só que em Caxias, viver no topo do edifício famoso por ser o mais alto do Rio Grande do Sul é quase como morar em um ponto turístico. Quando visitas e entregadores de mercadorias entram no apartamento são puxados para perto da janela, como se surgisse um campo magnético. Não foi diferente quando, em um fim de tarde, a equipe de ZH chegou à casa de Eliane.

Aproximando-se do parapeito da sacada, que mal chega na altura da cintura de uma pessoa de estatura média, é inevitável não olhar para baixo – talvez até aqueles que tenham acrofobia, o nem tão raro medo de altura, fiquem tentados a uma breve espiada. Mesmo se os macaquinhos do parque ainda estivessem lá, seriam pequeninos demais para uma vista tão de cima. As pessoas, maiores do que os macaquinhos, já ficam como coloridos risquinhos se movendo pelas calçadas. Tudo fica pequeno e distante. É quando se percebe que, ali do alto, não é esta a vista que faz sentido. O privilégio de viver no céu de Caxias do Sul é poder observar o extenso horizonte.

– Lá no fundo é Nova Petrópolis. E depois daquele morro é Farroupilha. E aqui, logo em frente, é o bairro Panazzollo, que se tornou uma zona sofisticada da cidade – adianta Valter Portella, que se mudou para o apartamento há sete anos, quando se casou com Eliane.

Toda a cidade está aos pés – e boa parte do Estado também, se somados os 114 metros do apartamento até o chão com a altitude de 817 metros de Caxias do Sul. O latido dos cães e o barulho do motor dos carros já estão longe, o ruído vem abafado. É de se desacostumar com o som das coisas. Esses tempos, Eliane foi para o apartamento que mantém em Porto Alegre e passou a noite em claro. Já não tem o medo de ser acordada por um desconhecido durante a noite, não era isso. O problema foi uma chuvarada que caía. A ela, agora, incomoda o som dos pingos chegando com força ao chão.

Lá no teto da cidade, teve de se acostumar com coisas mais inusitadas. Há dias que a neblina é tanta que o casal abre a janela e o que vê é uma nuvem só. Para baixo dela, existe uma cidade de tempo encoberto. Acima daquilo que parece um maço infinito de algodão, o sol bate com força. Parece que estão em um avião.

– Esses dias peguei um táxi, e o motorista estava dizendo que o filho dele é piloto de avião. Ele me contou que a noção que os pilotos têm em relação à neblina no aeroporto é cuidando o Parque do Sol. Se o topo do edifício está aparecendo, podem pousar – conta Eliane.

O prédio é tão alto que, apesar de serem só dois apartamentos por andar, Eliane afirma não conhecer todos os vizinhos. Está sempre topando com caras novas. Recentemente, encontrou um antigo conhecido no elevador. Não o via há tempos e se assustou quando o homem disse que já morava há seis anos no condomínio. Até então não haviam se encontrado nos percursos realizados pelos quatros elevadores do prédio. Por meio deles, a moradora do último andar leva cerca de um minuto para chegar até a garagem. Neste tempo, um adulto é capaz de dar, em média, cem passos. Cem passos correspondem, segundo o Sistema Internacional de Unidades, a 82 metros. Mas de elevador, no mesmo intervalo de um minuto, Eliane percorre a distância de 114 metros. Ela não faz todas essas contas, mas sempre que lhe perguntam se os deslocamentos de elevador são muito demorados, ela diz: “Que nada!”.

Foi o medo de assaltos que levou Eliane a viver no 30º andar do Condomínio Parque do Sol.

Nos quase 40 anos em que mora no edifício, afirma ter enfrentado somente um episódio de pane nos elevadores. Como a desgraça não vem desacompanhada, era exatamente no dia em que ela pegaria um ônibus para viagem. Claro, estava atrasada. Foi preciso subir 684 degraus de escada até em casa. Minutos depois, desceu cada um deles novamente, carregando uma mala cheia.

– Fiquei até com dor de cabeça. Mas foi só aquela vez – lembra.

Desde que Eliane entrou pela primeira vez no Parque do Sol, a cidade cresceu, os prédios ficaram mais altos, a paisagem está diferente. Ela também mudou. Por anos ela atuou como médica obstetra. Chegava a fazer 40 partos por mês. Quando se casou novamente, em 2009, largou a obstetrícia. Continua somente atendendo no consultório como ginecologista. A partir de então, a vida seguiu em um ritmo mais calmo.

– Não sei se a vista hoje é mais bonita do que foi um dia. A gente é que muda o olhar. Eu acho que eu era muito envolvida com o trabalho quando cheguei aqui. Agora, com o novo casamento, estou mais pé no chão, de alguma forma diferente. Tenho curtido mais, olhado mais para fora. Então acho que eu vejo diferente. Meu olhar é que sabe contemplar mais – avalia.

O marido, Valter, que também é médico, só que psiquiatra, passou por uma fase em que se sentia muito pequeno em um apartamento tão grande. O casal tentou, então, encontrar outro lugar para morar – um apartamento longe do chão, claro, mas que fosse mais enxuto. Chegaram a duas possíveis conclusões: ou hoje tudo é m-u-i-t-o enxuto ou foi ele que também se acostumou com a as longas medidas do apartamento.

– Fomos visitar vários prédios. As áreas de serviço eram uma miniatura, quarto, banheiro, tudo, tudo pequeno. Desistimos – diz Valter.

Eliane, de certa forma, agradece o insucesso na busca por um novo apartamento. Ainda que menos agitada, lá longe do chão a vida também é cheia de surpresas:

– Sempre deixo as janelas abertas para dormir. Tempo atrás, despertei no meio da noite com uma “luzona” refletindo direto no meu rosto. Acordei e pensei, meio assustada: “Mas o que é isso?”. Quando abri os olhos, estava ali uma lua gigante. Era a superlua, me espiando bem de pertinho.

prédio fica em frente ao parque dos macaquinhos, a área verde mais movimentada da cidade.