Na velha estação de trens do alegrete há uma instituição que reúne documentos, objetos raros e uma porta para o mundo sobrenatural
Nelson Assumpção dos Santos garante que até as crianças enxergavam o romano. Descreviam um homem com dois metros e meio de altura, saiote, sandálias. Ele trazia um escudo, uma espada e um elmo com penacho, que os pequenos achavam ser uma bandeja, um facão e uma vassoura sobre a cabeça. O relato dá conta de que, em setembro ou outubro de 1993, o irmão mais velho de Nelson, o professor Danilo, incorporou uma vez mais o indivíduo da Roma Antiga, velho amigo de encarnações passadas. Nelson, o mano mais moço, hoje com 65 anos, evoca o episódio:
– O Danilo incorporava o romano e falava, intuído através dele, coisas maravilhosas. Daí esse romano diz, no meio do grupo, que o Danilo deveria organizar um local para fazer um estudo sociológico, antropológico, filosófico e geográfico da prostituta cidade. Por que prostituta cidade? O romano explicou: “Porque cidade que não conhece sua história, como a cidade de vocês, que é uma cidade cheia de histórias maravilhosas, essa cidade se prostitui”.
Acreditar que há espíritos, que eles andam por aí e que se comunicam com os vivos fica a critério de cada um, mas mesmo que eles não passem de uma elaborada fantasia, o certo é que o tal local comissionado mais de duas décadas atrás pelo romano tem, hoje em dia, uma existência bem concreta.
Imbuído de realizar o desígnio do além, Danilo pôs mãos à obra e criou o Centro de Pesquisa e Documentação de Alegrete (Cepal), um surpreendente museu particular instalado à beira dos trilhos, no velho armazém da Viação Férrea, ao lado da desativada estação de trens do município.
Ali, sem gastar um tostão, os dois irmãos reuniram um acervo com dezenas de milhares de documentos, publicações raras, fósseis, peças arqueológicas e objetos históricos de natureza e procedência variadas, tudo isso atulhado em um galpão com 400 metros quadrados de área, pelo qual já passaram mais de 60 mil visitantes. Há até mesmo duas raríssimas imagens sacras missioneiras, resgatadas por Danilo em uma choça repleta de galinhas.
O museu é também o lar de Nelson, de sua mulher, Ana Cláudia Lima dos Santos, 43 anos, e da filha dela, Isadora, 14 anos. Eles moram em um dos ângulos do armazém, em uma pequena área fechada onde há dois quartos, uma cozinha e dois sanitários, masculino e feminino, que compartilham com os visitantes. A sala de estar da família é ao mesmo tempo o saguão do museu. O pátio de entrada da instituição é atravessado por varais onde secam as roupas do trio.
memórias
O prédio do Cepal é o do antigo armazém da Viação Férrea. Tudo, hoje, é mantido por Nelson Assumpção dos Santos (acima) e sua família
A vida doméstica se mistura com a do Cepal. De vez em quando, Nelson está atendendo algum visitante, percebe que falta pouco para o meio-dia e prossegue nas explicações, enquanto cozinha o almoço. Também é normal admitir visitas fora do horário oficial, que é de segunda a sexta-feira, das 9h às 12h e das 14h às 18h.
– Se alguém tocar a campainha, vamos atender. Às vezes vejo pessoas lá fora, já passou do horário, e pergunto: “Vocês não querem olhar o museu?”. Para mim, o importante é mostrar o Cepal – explica ele.
Essa história toda começou na residência de Danilo, o irmão mais velho. Ele desde a infância era uma figura singular. Sonâmbulo, levantava de madrugada, vestia o uniforme escolar, organizava o material de aula e, sempre dormindo, caminhava até a porta da rua.
Depois, retrocedia, tirava a roupa e voltava para a cama. A família, desperta pelo ruído, acompanhava a movimentação sem acordá-lo.
– Naquela época, dizia-se que não podia acordar uma pessoa sonâmbula, que a alma tinha de beber água, que era perigoso, morria, um monte de coisa assim. E a gente acreditava nessas coisas, porque não sabia os porquês dos porquês. O sonambulismo já é um índice muito grande de mediunidade – afirma Nelson.
Danilo foi para Porto Alegre fazer faculdade, mas teve de interromper o curso e voltar ao Alegrete quando o pai morreu, para se desdobrar em três ou quatro trabalhos e sustentar a família, que ficou sem teto, afundou em dívidas e passou fome. Conseguiu formar-se em Letras e se tornou professor. Ensinava português, história, geografia, inglês. Em 1988, uma família abastada da cidade pediu-lhe que ajudasse com o filho, dependente de drogas. Deu tão certo que, em seguida, o apartamento de Danilo virou uma espécie de centro de recuperação para a toxicodependência. Jovens lotavam a quitinete do professor, em busca de ajuda.
O que ele fazia, conta Nelson, era conversar e oferecer uma espécie de terapia ocupacional: colocava a gurizada a transcrever os livros de registro da igreja católica local. E, claro, havia os espíritos, o romano entre eles.
– Ele frequentava centro espírita, já estava ligado. A mediunidade era tímida ainda, mas ele tinha uma habilidade. Então o Danilo começou a receber algumas entidades. De vez em quando, dava um passe. Ainda era coisa bem primária. Uma entidade que ele recebia gostava de tomar cachaça, ele tomava meio litro de cachaça e não ficava bêbado. Era meio umbanda, meio isso, meio aquilo, uma entidade bem rústica. Ele ia descobrindo e ia fazendo. Usou a mediunidade com esses guris com problema de drogas, e ela começou a abrir na gurizada. Os jovens também enxergavam essas coisas, tinham a sensibilidade, porque a droga mexe no teu espiritual – relata Nelson.
DA QUITINETE AO POTREITRÃO
A fama do professor que se comunicava com espíritos começou a se espalhar, não só entre dependentes químicos, mas pelos alegretenses em geral. Um dia Danilo caminhava pelo calçadão e um homem prostrou-se diante dele, de joelhos, pedindo que o tocasse com as mãos, porque ia tirar um empréstimo. Gente entrava e saía do apartamento a qualquer hora, sem cerimônia. Uma vez, o médium deixou o banho enrolado numa toalha e foi até o guarda-roupa para se vestir. Quando estava pelado, percebeu que havia três mulheres sentadas a olhá-lo.
Foi nessa altura, fins de 1993, que o tal espírito da Roma Antiga, que liderava uma série de outros espíritos hindus no trabalho com os dependentes, ordenou a Danilo que criasse o espaço para o estudo da história de Alegrete.
A primeira sede do Cepal, a entidade fundada pelo professor em fevereiro de 1994, foram duas salas emprestadas, somando 100 metros quadrados de área. Nelson foi chamado para ajudar no empreendimento, como o braço direito do irmão.
– Para quem veio de uma quitinete, aquilo era um potreirão – compara ele.
Mas logo o espaço ficou pequeno, tamanho era o acervo que chegava de todos os lados, a partir de doações: gigantescas coleções de selos, moedas e cédulas, centenas de discos de acetato dos primórdios da indústria fonográfica, edições completas de revistas e jornais antigos, velhos instrumentos de cozinha e de lavoura, dos tempos do início da povoação do Alegrete, objetos deixados pelos charruas e minuanos originais da região, como boleadeiras e pontas de flechas, sem contar os milhares de livros.
A mudança para o atual endereço, cedido em comodato ao Cepal, aconteceu em 2001. O velho armazém, antigo terminal de cargas da estação férrea local, estava abandonado, meio destruído. Uma reforma foi orçada, na época, em R$ 150 mil. Mas os irmãos não tinham dinheiro algum. Foi o próprio Nelson quem se enfurnou lá dentro, quase sempre sozinho, para executar as funções de pedreiro, marceneiro, pintor, eletricista e encanador.
– Aqui dentro eu fui tudo o que se possa imaginar. Tinha de aprender a fazer, porque não havia dinheiro para contratar. Tomei choque até não poder mais fazendo a instalação elétrica. Cavouquei com as mãos, porque não tinha nem ferramenta. Nem me pergunta como foi que eu fiz, porque não sei. Vinha de manhã e saía de noite, durante seis meses. Era eu sozinho com algum louco que me acompanhava. O espírito do hindu disse para o Danilo, quando ele estava reclamando das dificuldades: “Para que serve este aparelho?”. “Para telefonar”. “Então pega o telefone e pede o material, porque dinheiro não vai ter”. Foi assim, na lata, seco. O Danilo começou a telefonar e foi assim que conseguimos ganhar o material para fazer a reforma.
Danilo morreu em maio de 2015, aos 67 anos, deixando o irmão mais novo com a responsabilidade de cuidar sozinho de um empreendimento único. O Cepal é uma espécie de museu artesanal, um tanto assistemático, no qual objetos de natureza e valor díspares convivem no mesmo ambiente, sem qualquer catalogação, às vezes meio esquecidos em caixas empilhadas. Quem conhecia o acervo em todos os seus meandros era Danilo, ajudando pesquisadores a encontrar exatamente o que necessitavam. Nelson admite que não tem noção de tudo o que conserva dentro do galpão, mas se desdobra para manter o serviço, dando continuidade ao projeto do irmão.
– Embora ele (Nelson) não tenha o mesmo conhecimento que o Danilo tinha, tem o mesmo amor para cuidar e preservar. Ele é um guardião. Acho isso maravilhoso – diz Ana Cláudia, a mulher.
história
A fachada da estação férrea do Alegrete se mantém até hoje, mesmo que o local esteja desativado. O Cepal fica no prédio ao lado, junto aos trilhos dos trens
LIMPEZA ENÉRGICA
Em paralelo às atividades museológicas, Nelson oferece atendimento espiritual no espaço. Ele descreve a si, a mulher e até mesmo a enteada como médiuns. Numa espécie de arco logo à entrada do museu, diz existir uma cachoeira, invisível à maioria, que promove um limpeza enérgica da alma a quem visita o Cepal.
– Mas o trabalho espiritual não é um trabalho espírita, a informalidade dá uma característica diferente. Sempre digo que isto não é um centro espírita, porque as pessoas vão rotulando e acaba virando uma igreja.
Semanas atrás, Nelson ofereceu um tour pelo acervo. Começou por uma saleta onde conserva, em estantes, coleções completas de várias publicações antigas, como as revistas
Eu Sei Tudo, O Cruzeiro, Realidade, Carioca, A Cena Muda e muitas outras. Em várias caixas, algumas tão pesadas que não se consegue tirá-las das prateleiras, estão álbuns de selos e moedas antigas. Deixando o recinto, Nelson passa para um salão amplo, com uma mesa comprida ao centro, para as pesquisas. Ao redor, erguem-se estantes. Ali está a biblioteca, da qual fazem parte jornais antigos, encadernados pelo próprio administrador do museu, para facilitar a pesquisa.
antes de tudo
A reforma do armazém foi feita pelo próprio Nelson ao longo de seis meses, com material doado. “Era eu e algum louco que me acompanhava”, recorda
Um setor é dedicado a pilhas e mais pilhas de discos antigos, que Nelson nunca se deu ao trabalho de escutar, enquanto outra área conserva fotos do passado, documentos, velhos cartões-postais, mapas e recortes de jornais sobre os mais diversos assuntos, coligidos ao longo dos anos pelo professor Danilo.
Por todo o lado, empilham-se embalagens repletas de documentos que podem ajudar a contar a história de Alegrete e do Rio Grande do Sul, como correspondências, atas da Câmara Municipal, livros-caixa, folhetos, notas, partilhas, registros de óbito do século 19.
Num comprido corredor, Danilo puxa uma das caixas na qual estão acondicionados 54 mil fichas de votação, salvas da destruição pelo Cepal. Elas trazem informações pessoais e fotografias de gerações de eleitores. Ficam junto a 324 volumes com ordens do dia da Brigada Militar, que vieram de Porto Alegre, e um vasto arquivo de processos judiciais.
– Esses processos seriam queimados.
O Danilo falou com o juiz: “Não pode queimar essa documentação, é a história de Alegrete”. Tudo o que queriam botar fora nós íamos juntando – conta Nelson.
Um lugar especial é destinado a um livro enorme, quase do tamanho de uma pessoa. Danilo contava que ele servia de calço para a porta do almoxarifado da Santa Casa do Alegrete, de onde o trouxe. É o livro de registro de entradas e saídas dos enfermos do hospital, totalizando 7.184 pacientes atendidos entre 24 de fevereiro de 1879 e 12 de maio 1923. Para cada paciente, há informações sobre quando entrou, a idade, a naturalidade, a profissão, a cor, a moléstia, a data de saída e o motivo da alta, além de informações gerais.
Uma sala bem nos fundos do museu guarda algumas da maiores preciosidades do acervo. Logo que se entra, há uma coleção geológica, com gemas de cores variadas, e animais empalhados, descartados por uma loja de caça e pesca. Em seguida, depara-se com os fósseis de criaturas que viveram há milhões de anos. Uns ossos enegrecidos, conta Nelson, foram encontrados à margem do Ibirapuitã, em uma lavoura do interior de Alegrete. O proprietário viu aquelas pedras estranhas e recolheu-as. Tentou repassá-las a uma universidade, mas não houve interesse. Uma noite, apareceu no Cepal, oferecendo o material, trazido em quatro sacolas de supermercado. Nelson aceitou e chamou uma especialista.
– Mas! Isto aqui é uma riqueza! – espantou-se a mulher.
O recinto também contém uma série de objetos (cruz de cemitério, pedra de cerca, machado de ferro, cravos) encontrados em Capela Queimada, o povoado abandonado mais de 200 atrás, que está nas origens do Alegrete. Mas a grande atração são os dois santos confeccionados nas Missões Jesuíticas: uma imagem da Imaculada Conceição e outra de Santo Antônio. Esculpidas em cedro, elas têm pouco mais de 20 centímetros de altura. Chegaram ao Cepal meio por acaso, ainda na década de 1990.
– O Danilo contou uma vez ter feito um trabalho espiritual, e a família queria pagar pelo atendimento. Ele explicou que não cobrava, mas insistiram, queriam dar um presente. Aí ele disse: “Então me dá aqueles santinhos que estão lá no teu galinheiro”.
Em 2016, o pesquisador Édison Hüttner, do Programa de Pós-graduação em História Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, à frente Projeto de Arte Sacra Jesuítico-Guarani da universidade, apareceu no Cepal. Alguém o havia alertado sobre o potencial dos santos do museu. Apresentou-se a Nelson, explicou que podia se tratar de relíquias e pediu para levá-los para estudo em Porto Alegre. As duas peças foram submetidas a tomografias computadorizadas e análises no Laboratório Central de Microscopia e Microanálise.
A pesquisa revelou que a Imaculada Conceição tinha lâminas de ouro na vestimenta e que o Santo Antônio ocultava em seu interior vários bilhetinhos de devotos. A idade das esculturas foi estimada em 300 anos.
Esse tesouro está em uma sala modesta de um museu privado, com entrada gratuita, que conta apenas com um auxílio de R$ 1,2 mil mensais da prefeitura, para o pagamento de água, luz e telefone. É um dinheiro que está longe de cobrir as despesas da casa. Como Nelson faz para mantê-lo?
– Não sei responder. Vai a minha aposentadoria também, aquele salário enorme de R$ 900 e pouco. Vivo no limite, mas é um limite muito agradável. Não sei se sobreviveria sem este lugar. Não sei fazer outra coisa.
TEXTO
Itamar Melo
itamar.melo@zerohora.com.br
IMAGENS
Carlos Macedo
carlos.macedo@zerohora.com.br
EDIÇÃO
Daniel Feix
daniel.feix@zerohora.com.br
DESIGN
Amanda Souza
amanda.souza@zerohora.com.br
história
A fachada da estação férrea do Alegrete se mantém até hoje, mesmo que o local esteja desativado. O Cepal fica no prédio ao lado, junto aos trilhos dos trens
antes de tudo
A reforma do armazém foi feita pelo próprio Nelson ao longo de seis meses, com material doado. “Era eu e algum louco que me acompanhava”, recorda