Territórios de sangue

“Somos todas refugiadas.” Assim uma voluntária croata, que teve de deixar sua casa durante a guerra na antiga Iugoslávia, resume seus motivos para ajudar migrantes

No fim da manhã de sexta-feira, 25, pego carona com voluntárias croatas para regressar ao campo de refugiados de Opatovac. Sigo procurando pela família de Ghazi, depois de uma tentativa frustrada de reencontrar o grupo na fronteira da Hungria na noite anterior. Quem dirige o carro é Renata, 31 anos, uma morena de olhos azuis que é organizadora de eventos e proprietária de um hotel para cachorros. Por iniciativa própria, ela e outras amigas começaram a arrecadar donativos para os recém-chegados, uma semana atrás. Até então, eram conhecidas por campanhas em favor dos animais. Diante do movimento cada vez maior de refugiados, decidiram que era preciso fazer algo mais.

Renata começou colocando posts no Facebook, com o intuito de recolher roupas e comida. E se surpreendeu com a polêmica que a iniciativa provocou em sua rede. Embora amigos tenham colaborado, a virulência dos críticos causou espanto.

– Muita gente diz que esses muçulmanos vão invadir a Europa com mesquitas, vão destruir nossas igrejas. Que já temos nossos problemas, nossos necessitados – revolta-se Renata, que deletou os comentários.

 

Voluntárias croatas distribuem donativos no campo de Opatovac

A amiga Sonja Domic, 32 anos, explica que elas são ateias, não estão preocupadas com a religião dos que chegam. Só querem ajudar.

– O mais inacreditável é que muitas dessas pessoas que agora estão nos criticando antes reclamavam dizendo que a gente só ajudava os animais, e não as pessoas. Agora que queremos ajudar as pessoas, dizem que essas pessoas não servem – indigna-se.

Pelo Facebook, proliferam páginas como Refugees Not Welcome (Refugiados Não São Bem-vindos), em que críticos destilam seu ódio contra os migrantes. Nas postagens, os argumentos são de todo tipo: desde montagens de fotos com armamentos para acusá-los de terroristas até flagrantes de migrantes descartando os cobertores doados pelo caminho. A página genérica Refugiados Não São Bem-vindos tinha 1.017 curtidas até quinta-feira e réplicas em vários países.

Antes de pegar a estrada rumo ao campo, partindo de Osijek, a maior cidade da região, as amigas vão enchendo o porta-malas com o que cada uma conseguiu arrecadar. Pegam mais duas voluntárias e seguem rumo ao campo de Opatovac com várias sacolas de roupas e água mineral. Serão 50 minutos até lá. No caminho, passamos por Vukovar, uma das cidades mais destruídas durante a guerra que opôs forças croatas e separatistas sérvios, no início dos anos 1990, após a independência da Iugoslávia. Sonja, que morava na cidade, recorda que precisou fugir com a família dali, para nunca mais voltar.

– Eu sou também uma refugiada. Na minha antiga casa ficaram todos os meus brinquedos – lembra.

 

Fluxo de migrantes, que passa de 51 mil pessoas, põe governo croata em alerta

Por causa das memórias da guerra recente em seu próprio país, Sonja tem a impressão de voltar no tempo quando vê as imagens da Síria bombardeada. Ainda hoje se assusta com sirenes e estampidos. Outra amiga que viaja no banco de trás do carro, Ana Laura Kapetanovic, uma loira longilínea que trabalha como modelo para grifes, conta que também precisou deixar sua casa para fugir da guerra. Na época, mudou-se para a Eslovênia.

– Esta é a razão por que estou fazendo isso agora. Somos todas refugiadas – explica.

Na chegada ao campo, procuro sem sucesso por pistas da família de Ghazi. Tudo indica que não estão mais lá. Voluntários da Cruz Vermelha dizem que não existe um banco de dados com todos os nomes. Como é muita gente, o processamento das informações individuais demoraria vários dias.

– Gostaria muito de ajudar, mas não temos nenhuma informação – diz a voluntária.

Diante do campo, o primeiro-ministro da Croácia dá informações à imprensa. A polícia determina que os voluntários afastem suas barracas de donativos. A justificativa é que isso atrapalha o controle das filas. Contrariados, eles começam a mover seus acampamentos.

– Como vamos ajudar as pessoas ficando longe? – questionam, revoltados.

Pelo rádio, a informação é de que mais de 51 mil refugiados já chegaram à Croácia. O tom é de alarme, com autoridades repetindo que não há lugar para tanta gente.

– Eles não querem ficar aqui, só querem passar por aqui – contesta Sonja.

No início da tarde do dia seguinte, recebo uma mensagem de Mohamed, o iraquiano que viaja com a família, e descubro o paradeiro do grupo. Ele compartilha comigo por whatsapp a sua localização por GPS. Estão agora em Salzburg, no oeste da Áustria.

Conectados, os refugiados estão sempre à procura de wi-fi para darem notícias. Tanto que um dos itens mais disputados em qualquer parada são tomadas para carregar as baterias dos celulares. Não por acaso, a estação de trem de Viena, de onde eu parto para encontrá-los, colocou à disposição dos refugiados um wi-fi especial para eles, “refugee–information”.