Gente de alma grande

FOTO: Bruno Alencastro

LETÍCIA DUARTE

Quando parti de Porto Alegre rumo à Grécia para produzir esta reportagem, em 17 de setembro, tentava me preparar para ouvir toda a dor de quem foge de uma guerra. Acompanhava as notícias sobre os conflitos na Síria, as tensões nas fronteiras com bombas de gás lacrimogêneo disparadas para dispersar os refugiados em marcha pela Europa. O que sequer suspeitava é que iria deparar com tanta generosidade no meio desta jornada de fuga.

Tive uma mostra disso logo nos primeiros dias, quando cheguei com minha mochila na Ilha de Kos, a praia onde os migrantes aportam com botes superlotados vindos da Turquia, arriscando perder tudo, inclusive a vida. Ali tudo era precário, mas as famílias com quem eu me sentava para conversar na areia ofereciam água, biscoitos, maçã e até marmitas de arroz. Faziam questão de repartir uma porção das doações que recebiam com aquela desconhecida de bloquinho na mão que nem sabia falar a língua deles.

 

A repórter Letícia Duarte em meio à jornada com a família de refugiados sírios

No barco para Atenas, na primeira noite que passei com a família que começava a acompanhar rumo à Alemanha, tive outra surpresa. Na hora de dormir, fui procurar um lugar para encostar a cabeça, quando um dos rapazes do grupo veio atrás de mim. O jovem Musa ia dormir no chão, mas havia reservado duas poltronas juntas para que eu pudesse me esticar. Quando eu já estava constrangida por tamanha gentileza, ele tirou a jaqueta que vestia e colocou sobre minhas pernas para servir de cobertor. Como ele não entendia inglês, eu gesticulava dizendo que não poderia aceitar aquilo. Como eu não entendia árabe, ele batia com a palma da mão no peito para me convencer que aquilo não estava em discussão. Com gestos que não precisam de tradução, mostrava que estava fazendo aquilo com seu coração, eu não podia recusar. Com sua grandiosidade, me fez chorar.

Em vários momentos durante a viagem, eu enfrentava dilemas sobre como lidar com aquilo tudo, preocupada que a minha presença não representasse um fardo a mais na jornada deles. Em condições tão limítrofes, dormindo pelo caminho e comendo o que as mãos de voluntários alcançavam, me perguntava se aquela ponta do cobertor que eles reservavam para mim não faria falta para outro refugiado. Até que, certa noite, quando esperávamos nos trilhos da fronteira da Grécia com a Macedônia, Issa, outro sírio que conheci em Kos, explicou como eles viam minha presença entre eles.

– A maioria dos jornalistas faz um monte de perguntas e vai embora. Você ficou com a gente. Você não precisava, mas está passando por isso com a gente. Ficamos felizes por isso – disse.

Caminhando com eles por horas a fio com a mochila nas costas, me surpreendia ao vê-los sorrindo pelo caminho. Nos trajetos de ônibus, dançavam ouvindo melodias árabes que alguém colocava para tocar. Se em boa parte do percurso o choro das crianças aumentava a agonia da espera, os pequenos também eram capazes de pegar uma pedra do chão e transformá-la em brinquedo. Não conseguia entender aquela alegria que resistia ao frio, à chuva e ao cansaço até perceber que viajavam com a alma leve porque a guerra tinha ficado para trás. Não haveria mais bombardeios nem cabeças decepadas naquela estrada.

Por tudo isso, o que guardarei desta viagem não será o sacrifício, mas a generosidade. E uma profunda gratidão ao povo sírio, que renovou a minha crença na humanidade. Essa gente de alma grande, que ainda se preocupa com o outro, mesmo quando tudo o que lhes restou possa estar ali numa sacola de plástico.