Famílias desoladas

pela impunidade

Passados oito anos da morte de Emerson, os Goularte resistem à tentação de vingar o crime ainda impune

Famílias desoladas pela impunidade

QQuando está sozinha em casa, dona Eva Goularte chora a morte do filho Emerson, crime que completou o oitavo aniversário em junho passado. Assim, escapa das reprimendas da família que a aconselha a seguir em frente e se preocupa com as lágrimas tanto tempo depois. Mas como ir adiante se os criminosos nem sequer foram a julgamento?

– Meu filho foi morto feito um bicho – diz, para logo depois se corrigir: – Pior do que um bicho.

O caso de Emerson é uma das seis mortes que aguardam julgamento entre as 15 registradas envolvendo o futebol desde 2000. Os casos julgados são sete, entre condenações e absolvições. E há dois com suspeitos que acabaram mortos.

Apenas um dos processos que aguardam julgamento corre no prazo, o da morte do garoto Maicon Lima, alvejado em 1º de fevereiro deste ano em meio a um tumulto de torcida em Novo Hamburgo. Suspeitos, quatro PMs foram denunciados e esperam sentença.

A dor de dona Eva começou no dia 20 de junho de 2007. Ao final do jogo em que o Grêmio perdeu no Olímpico a final da Libertadores para o Boca Juniors, o colorado Emerson Goularte foi ao centro de Dom Pedrito comprar uma carteira de cigarros. Um bar cheio de gremistas reunidos para o jogo lamentava a derrota, e Emerson teria entrado em uma discussão motivada pelo futebol. A reação foi a mais violenta possível.

Seis torcedores bateram em Emerson. Da janela de um prédio vizinho, ouviram-se gritos vindos da rua como "mata este negro" – que denunciavam também a conotação racial do crime. Entre os agressores estavam membros de famílias renomadas na cidade.

Oito anos depois, após uma sequência de recursos jurídicos, o julgamento ainda não foi marcado.

Desde o dia da tragédia, os Goularte recorrem a um controle emocional incomum e afastam a tentação da vingança. Um grupo de amigos de Emerson teve de ser demovido pela família da ideia de fazer justiça com as próprias mãos. Também os vizinhos tiveram de ser acalmados.

– Nada de revidar. Vamos esperar o que vai acontecer – ensinava seu Walter, o pai.

O caso se arrasta nos tribunais, e os acusados circulam livremente pela cidade. Logo após a tragédia, as filhas Jaíne e Bruna com frequência deparavam com um dos réus. Ele agravava o constrangimento ao soltar piadas e provocações sobre o pai.

Walter, Eva e Lillian, a irmão mais velha, frequentemente são indagados sobre o andamento do caso. Quando contam que ninguém foi punido até hoje, não raro ouvem a cobrança: "E vocês não vão fazer nada?".

– O julgamento não vai trazer meu irmão de volta, mas tenho certeza de que será um alívio enorme – resume Lillian, que morava com Emerson e, de tão doída, demorou cinco meses para conseguir entrar em seu quarto após a morte.

Fora o caso de Maicon, de 2015, os demais processos se arrastam em média em prazo acima de seis anos e meio.

– É normal que as famílias tenham esta sensação de impunidade. Por isso procuramos trabalhar de forma dedicada nestes processos – destaca Sérgio Luiz Rodrigues, da Promotoria de Justiça Criminal de São Leopoldo.

A lentidão do Judiciário prolonga o sofrimento das famílias. Cansado de esperar, Osmar Cierco pensou em organizar passeata para comover a comunidade de Gravataí, em pressão pelo julgamento do caso do filho. Daniel foi morto enquanto comemorava o título da Libertadores de 2010 em um reduto de colorados na parada 67 em Gravataí.

Os colegas do Direito da Ulbra lotaram ônibus e compareceram ao velório. Estudantes da época, hoje estão formados e também pressionam pelo andamento do processo. É o caso de João Carlos de Jesus, um dos melhores amigos de Daniel. Tornou-se advogado da família. É com ele que Oscar se informa sobre o andamento do caso.

– Imaginem a situação dos pais de uma pessoa abatida covardemente. O mínimo é a briga pela justiça. Mas é preciso aguardar, porque o sistema tem sido assim – explica o João Carlos  de Jesus.

As 15 vítimas

Jeferson Alves Ferreira, 21,   e Gabriel Eloi de Oliveira, 23

Colorados mortos a tiros em junho de 2008 na casa de Jeferson, em São Leopoldo. Os gremistas Michael de Azevedo Marcelino, o Taquara, e Maicon José de Lima, o Maiquinho, são acusados do crime. Um ano antes, Jeferson e Gabriel haviam sido vítimas de tentativa de homicídio. Taquara está preso pela tentativa, e Maiquinho está em liberdade. Os dois ainda aguardam julgamento pelas mortes.

Maicon Douglas de Lima, 16

Torcedor do Novo Hamburgo e do Grêmio morto com um tiro nas costas em São Leopoldo após jogo entre Aimoré e Novo Hamburgo, pelo Gauchão deste ano. O inquérito policial concluiu que os disparos foram realizados por soldados da Brigada Militar. Em julho, o Ministério Público denunciou oito PMs por homicídio triplamente qualificado e fraude processual – já que teriam tentado apresentar outra bala às autoridades para ocultar sua participação na morte.

Ederson Marcos Corrêa, 17

Morto com 14 facadas no bairro Campina, em São Leopoldo, em 2006. O adolescente Valdenir Ferreira, à época com 17 anos, respondia pelo crime e estava acompanhado de integrantes da Super Raça Gremista. O processo foi arquivado após a morte de Valdenir.

Valdenir Ferreira, 18, Lindolfo Ferreira, 61, e Alberi Ferreira, 36

Um ano após a morte de Ederson Marcos Corrêa, três integrantes da família Ferreira (Valdenir, seu irmão Alberi e o pai Lindolfo) foram mortos a tiros pelo irmão e pelo padrasto da vítima do crime de 2006. Everton Marcos Corrêa e Ailson Adamir Dalla Costa foram condenados em 2009: Corrêa cumpre pena de 45 anos de reclusão, e Dalla Costa de 48 anos de reclusão.

Tadeu Junges, 16

Gremista morto em São Leopoldo com dois tiros no peito, em 2004. Um adolescente com 17 anos à época do crime, torcedor do Inter, foi condenado a internação em unidades socioeducativas. Outros três colorados (incluindo Gabriel Eloi de Oliveira, executado em 2008) que estavam no carro utilizado pelo adolescente para chegar ao local e depois fugir foram absolvidos da acusação de participação no crime.

Daniel Soares Cierco, 29

Colorado morto em Gravataí com um tiro no pescoço após confusão durante a comemoração do título da Libertadores de 2010. Jéferson Augusto Ribeiro e Rodrigo da Rosa Paim foram acusados. Paim morreu durante o andamento do processo. Em setembro, a juíza responsável pelo caso deve definir a data do julgamento de Ribeiro.

Rodrigo Almeida Carvalho, 28

Colorado morto a tiro em Porto Alegre por um vizinho que reclamava do barulho da comemoração após a final da Libertadores de 2006. Wagner Lemos de Medeiros foi julgado em setembro de 2010, e a 2ª Vara do Júri da Capital determinou que fosse internado em uma instituição psiquiátrica.

Anderson Livi, 16

Colorado morto após ser alvo de uma bomba caseira na cabeça durante jogo entre Juventude e Inter, no Alfredo Jaconi, em 2002. O inquérito policial concluiu que o autor do crime foi Géferson da Silva Machado, morto horas depois na mesma tarde em que Anderson foi atingido.

Géferson da Silva Machado, 19

Gremista morto em Caxias com a explosão de uma bomba caseira durante revista a que foi submetido pelo PM Cleomar Vargas, após o jogo entre Juventude e Inter, em 2002. Vargas foi absolvido de acusação de homicídio culposo.

Gilberto Bonow, 62

Torcedor do Pelotas que sofreu um infarto após ser espancado, ao lado do filho Dimitri, por torcedores do Brasil-Pel quando retornava de um clássico no Bento Freitas, em 2003. Seis anos depois, em 2009, Carlos Alexandre Lúcio Ferreira foi condenado a 15 anos e meio de prisão por homicídio qualificado. Outros dois réus foram absolvidos por falta de provas. Segundo Dimitri, cerca de 20 torcedores participaram das agressões.

Júlio Cesar Ganzer da Cruz, 17

Gremista e torcedor do Joinville, nasceu em Panambi e a família se mudou para Santa Catarina. Foi morto em Biguaçu atingido por uma pedra quando voltava de ônibus para casa após partida entre o JEC e o Avaí, em 2006. A polícia investigou o caso, mas não conseguiu determinar a autoria do crime.

Emerson Luis Marques Goularte, 30

Colorado espancado até a morte em 2007, após uma discussão com gremistas que se iniciou pela derrota do Grêmio para o Boca Juniors na final da Libertadores. Seis pessoas foram acusadas do crime e respondem em liberdade a processo por homicídio triplamente qualificado. Ainda não há data definida para o julgamento.