Barbárie nas organizadas

Qual o valor de uma vida em meio à guerra? Quem participou da mais violenta rixa de grupos organizados da história recente do futebol gaúcho não parece ter se preocupado com suas vítimas.

Na década passada, a rivalidade entre facções de São Leopoldo ligadas à Super Raça Gremista e à Camisa 12 foi responsável por sete mortes entre as 15 motivadas por conflitos ligados ao futebol no Estado desde 2000.

Arrastões, quebradeiras em estações do trem, tiroteios e mortes. Tudo a uma longa distância das arquibancadas, mas com a disputa clubística como combustível. O cenário devastador na cidade da Região Metropolitana serviu como um dos alertas para se chegar ao momento menos turbulento de hoje.

Um documento de 2005 que pede a prisão preventiva de integrantes das duas organizadas dá ideia do rastro de destruição que os grupos deixaram. O parecer do Ministério Público elenca 11 crimes cometidos no ano anterior e mais três naquele ano para sustentar a reclusão por formação de quadrilha, entre outros delitos. E não parou por ali.

Os incidentes impressionavam pela brutalidade. Quem trabalhava na Avenida Independência, no centro de São Leopoldo, já sabia. Em plena luz do dia, os grupos promoviam arrastões, roubavam e, se houvesse um encontro com integrantes da torcida rival, a briga chegava às últimas consequências.

Como em 2007, quando dois desafetos se cruzaram em um shopping, perto da praça de alimentação. A discussão virou confronto, e um deles atirou ali mesmo, em meio ao vai e vem nas lojas e nos restaurantes. Só não matou seu alvo porque ele levantou a perna para proteger a barriga e foi atingido no joelho.

Outros "soldados" na guerra de São Leopoldo não tiveram a mesma sorte. Execuções na sala de casa, na rua e chacinas de famílias inteiras entraram na conta da rivalidade. A inimizade iniciada nas arquibancadas deflagrou uma batalha cruel e sangrenta.

– À medida que esses líderes foram condenados pelos crimes, mostrando que não ficariam impunes, a violência foi diminuindo. Acredito que conseguimos minimizar muito este problema aqui na cidade – comemora Sérgio Luiz Rodrigues, promotor de justiça criminal em São Leopoldo.

Hoje, a rixa parece estar controlada. Os crimes geraram processos e, pouco a pouco, com uma ou outra exceção, os responsáveis pagaram pelo que fizeram. Motivados por matanças como essas, o Judiciário e o Ministério Público criaram órgãos especializados que ajudam a reduzir o poder destruidor de alguns destes grupos organizados.

O Juizado do Torcedor e dos Grandes Eventos, que iniciou suas atividades no ano passado, e a Promotoria do Torcedor, criada em setembro de 2013, trabalham nos estádios da dupla Gre-Nal e têm frequente contato com as organizadas. Sanções, como a proibição de frequentar as arenas em dias de jogos para quem se envolve em brigas e tumultos, e a instalação de tornozeleiras eletrônicas para quem descumpre ordens judiciais, inibem a escalada da violência.

–A preservação da vida e da integridade física dos torcedores é a nossa missão principal. Por isso demos uma sanção severa, por exemplo, a quem arremessou cadeiras na torcida rival. Para que não cheguemos ao ponto de um torcedor jogar um vaso sanitário em outro, como aconteceu em Recife – lembra o juiz Marco Aurélio Xavier, do Juizado do Torcedor.

As mortes por brigas de organizadas parecem ter estancado. A última registrada no Rio Grande do Sul data de 2008. Ainda assim há momentos de tensão, como a disputa interna pelo poder na Geral do Grêmio, entre o fim de 2012 e o início de 2013, que levou quatro integrantes a invadirem a casa de um líder da torcida para ameaçá-lo. Ou as brigas entre integrantes da Guarda Popular e da Nação Independente do Inter, que resultaram na destruição de uma loja de conveniências de um posto de combustíveis no ano passado.

Como se vê, apesar do aparente fim da guerra de São Leopoldo, as autoridades de segurança deparam todos os dias com o desafio de frear ânimos e impedir que novos desentendimentos reproduzam os efeitos devastadores de um passado recente.

 

 

 

Cenas de faroeste levaram Jeferson

Gelson (com a mãe, Clarita) agora evita os grupos que acabaram tirando a vida do seu irmão Jeferson

Oolhar soturno e as mãos sobre o retrato do irmão Jeferson, morto com dois tiros na nuca em 2008, denunciam algum sentimento. Mas Gelson Ferreira, 35 anos, não se despedaça em lágrimas como a mãe Clarita ao relatar os efeitos da tragédia. Os tumultos e conflitos da década passada ainda lhe atormentam, e o temor de que seja o próximo alvo indica: não é hora de mostrar fragilidades.

Há sete anos, Gelson deu boa noite ao "Mano", como Jeferson era chamado na casa dos Ferreira, e o deixou ao lado do amigo "Feijão". Na sala da casa próxima à rodoviária de São Leopoldo, os dois acertavam detalhes da excursão que levaria torcedores colorados a Porto Alegre para o Gre-Nal do dia seguinte, 28 de junho. Gelson, que costumava ajudar, estava cansado. Deitou-se e acordou pouco depois com o barulho de tiros.

A cena era de faroeste: os corpos cravejados de bala e sangue para todo lado. Os gremistas que ameaçavam e já tinham tentado matar o irmão e o amigo 10 meses antes cumpriram a promessa.

Enquanto a família convive com a dor da perda, a Gelson restou o medo. Ele fazia parte daquele mundo de torcidas organizadas e violência. Envolvera-se em brigas. Sabia quem eram os desafetos de seu irmão – e, principalmente, eles o conheciam. Tanto que depois da prisão de um dos assassinos, recebeu na rua, em pleno centro de São Leopoldo, uma ameaça vinda de dentro da cadeia.

Traumatizados e temerosos, os Ferreira se mudaram. Pediram à reportagem que não revele o novo endereço. Gelson se sente seguro em casa, mas sabe que da porta para fora a situação é diferente.

Nem no trabalho tem paz. Segurança terceirizado em festas e eventos, já deparou com antigos desafetos. Os encontros lhe gelam a espinha:

– Quando vejo gente da antiga torcida do Grêmio, imagino mil coisas: será que eles estão pensando em vingança? Será que estão brabos porque o amigo deles está preso? O que estão pensando de mim?  Para evitar conflitos, faz questão de abordar os rivais e dizer que o passado ficou no passado – mesmo que o medo esteja presente. De um ex-inimigo, recebeu uma resposta reconfortante:

– Acabei de virar pai. Só quero curtir a festa.

Gelson teme que não vá ser sempre assim. Lembra dos responsáveis por matar o "Mano":

– Um dia eles vão sair (da prisão).

A ameaça se mistura à saudade que aflige a família. Dona Clarita, a mãe, tem problemas de saúde desde a morte do filho caçula. Deprimida, parou de trabalhar e sofre com hipertensão e diabetes. O pai, José da Silva Pereira, entregou-se à bebida e perdeu o apetite. Definhou até morrer, segundo Clarita, "de desgosto".

Ainda que a paixão pelo Inter tenha, em parte, resultado na morte do irmão, Gelson não consegue se afastar do Beira-Rio. Segue a rotina de ir ao estádio com amigos próximos e evita grandes grupos. Procura ir de carro para evitar confrontos no trem. É a forma que encontrou de manter algum contato com Jeferson:

– Com ele, foi no Beira-Rio que vivi os melhores momentos. Cada vez que sai um gol e eu comemoro com os amigos, lembro dele.

Há, porém, um preço a pagar pelas idas aos jogos. Não raro Gelson tem de explicar ao filho Jackson, de nove anos, que suas idas ao estádio são seguras. O pequeno soube do que houve com o tio. Pergunta se não há risco. O pai garante que não, mas não quer vê-lo envolvido em torcidas organizadas quando crescer.

 

 

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