A vingança

Ocolorado Ederson Marcos Corrêa e o gremista Valdenir Ferreira não eram torcedores fanáticos, não frequentavam o Beira-Rio e nem o Olímpico. Mas a história do desentendimento entre os dois, que resultou no fim de quatro vidas em dois incidentes marcados pela barbárie, confunde-se com o rastro de violência deixado em São Leopoldo por facções ligadas a organizadas na década passada.

Em 18 de junho de 2006, Valdenir, o "Neninho", matou Ederson com 14 facadas no bairro Campina. Na noite do crime, segundo a denúncia do Ministério Público, estava acompanhado de integrantes da Super Raça Gremista, um grupo que espalhava sangue por São Leopoldo em meio a uma rivalidade feroz com integrantes da Camisa 12. Os dois lados promoviam quebradeiras, arrastões e mortes.

Questionado em juízo se o motivo do desentendimento com Ederson estava relacionado com futebol, Neninho respondeu:

– Era sobre time, daí no dia a gente estava indo para uma festa...

Ele conta, então, que após a discussão "sobre time", estava a caminho de um aniversário de 15 anos com amigos e encontrou Ederson, também acompanhado de um grupo. A briga foi feia, e Neninho "levou uma ruim", de acordo com seu próprio relato. A morte de Ederson, portanto, teria sido um troco pelas agressões.

Autor confesso das facadas que mataram Ederson, em 2006, Neninho passou a responder pelo crime e enfrentar a possibilidade de uma condenação. Como tinha menos de 18 anos, seria internado em uma unidade socioeducativa no caso de a Justiça lhe considerar culpado.

Do outro lado, a família Corrêa, que se recusou a falar com a reportagem, deve ter se remoído pelo ódio. Morrera um garoto de 17 anos de forma estúpida. A vingança era necessária, devem ter pensado o irmão Éverton e o padrasto Ailson Dalla Costa.

"Quem é o Neninho?", perguntou a dupla ao chegar em frente à casa dos Ferreira, em 20 de maio de 2007.

Quando a moto de Ailson e Éverton encostou no pátio, Amauri Ferreira recém havia deitado para uma soneca depois do almoço. O irmão de Neninho tinha motivo para estar cansado: sua filha, Xanaia, nascera dois dias antes e ele recém havia voltado do hospital com o bebê. A família se mobilizou para receber com galinhada festiva a nova integrante. Enquanto o novo pai descansava, os outros Ferreira batiam papo na calçada.

A soneca de Amauri não durou muito. Acordado por estampidos e gritos de desespero, correu para a frente da casa em São Leopoldo. Viu três irmãos e o pai no chão, baleados, enquanto a mãe, dona Eva, distribuía cadeiradas sobre dois homens em uma moto.

O que ele não viu foi a reação cruel dos vingadores de Ederson assim que Neninho se levantou, em resposta à pergunta que fizeram ao chegar. Foi a senha para que começasse uma saraivada de balas.

Tudo foi muito rápido. Neninho foi logo atingido e os irmãos, o pai e a mãe saíram em sua defesa. Alberi, 36, e Lindolfo, 61, foram alvos. Auri, 33, outro irmão, também levou um tiro, mas se salvou. Ailson e Everton só pouparam dona Eva, a despeito dos repetidos golpes com uma cadeira antes da moto arrancar em fuga.

Logo após as mortes, a mãe e os irmãos se mudaram. Amauri, porém, demorou algum tempo para deixar a casa que carregava tantos traumas.

Como trabalhava na mesma rua, em uma empresa de processamento de peixes e frutos do mar, sair de casa significava abandonar esse conforto. Mas ficar, como percebeu meses depois, era doloroso demais.

No fim da tarde, quando retornava do expediente, via na mureta as marcas de bala que barravam qualquer chance de esquecer. Sozinho na casa que antes abrigava a numerosa família, chorava as mortes e o peso das lembranças daquele lugar. Três meses após a tragédia, finalmente saiu.

Hoje há outro Ferreira trabalhando na mesma empresa. Com alguma frequência, Valdenírio, irmão de Amauri e Neninho, depara com o terreno da antiga casa que transformou-se em garagem para os funcionários. Quando vai de carro ao trabalho, estaciona no local de tantos traumas. Procura manobrar em um gesto automático, sem prestar atenção em onde está. A vida segue, e a memória carregada pode paralisar a luta do dia a dia.

A rotina ajuda Valdenírio e Amauri a esconder o que restou do trauma. Em conversa com ZH, os irmãos revelam que procuram não falar nem lembrar da tarde em que perderam três membros da família.

Quando são questionados, entende-se o motivo de varrerem a dor para baixo do tapete. Ela é forte demais.

Quase que de imediato, a voz embarga e as lágrimas vêm aos olhos. Falam com orgulho do pai, Lindolfo, e dos irmãos Valdenir, o Neninho, e Alberi, todos vítimas dos tiros que despertaram Amauri para testemunhar a tragédia. A saudade se agrava porque a mãe, Eva, morreu em um acidente de carro apenas um ano depois.

Os Ferreira hoje recolhem os cacos que restaram.  São unidos, se ajudam, mas os almoços e jantas festivas patrocinadas por seu Lindolfo já não fazem parte da rotina.

– Ele era o esteio da casa, o cara que reunia todo mundo ao redor dele – diz Amauri.

Ao falarem das mortes, com frequência usam a frase "quando aconteceu aquilo lá...", como se não fosse necessário explicar o que houve, ou talvez como uma artimanha para não entrar em detalhes e remoer a dor. Nos momentos em que a conversa leva para um relato cheio de pormenores, têm dificuldades para controlar o choro, que às vezes vem aos soluços.

Do outro lado, os Corrêa também devem conviver com uma boa dose de sofrimento. Quem ficou enfrentou a dor da perda de Ederson para logo depois ver dois parentes presos pelo cruel revide.

Ferido em meio aos próprios disparos, Éverton foi atendido no Hospital Getúlio Vargas, o que interrompeu seu plano de fuga. Ele e Ailson foram julgados em janeiro de 2009. Everton foi condenado a 45 anos de prisão, Ailson a 48.

Ainda que a Justiça tenha condenado os autores da chacina, Amauri não apaga da mente a cena devastadora daquela tarde, em que se viu sem saber quem socorrer primeiro. Os feridos pediam atendimento urgente, enquanto havia a mãe desesperada que também precisava de ajuda. Em meio aos corpos ensanguentados, aproximou-se do pai e ouviu suas proféticas últimas palavras, que, oito anos depois, servem à realidade das duas famílias devastadas:

– Meu filho, acabou a brincadeira.

Valdemírio e Amaurí tiveram a família destroçada motiva por uma rivalidade com origem no futebol

PRÓXIMO

PAIXÃO

QUE MATA