O vinil do aflito Escurinho

Ao meio dia do domingo de 14 de dezembro de 1975, dia da decisão, uma Kombi maltratada e barulhenta entrou no pátio do Beira-Rio. Àquela hora, um formigueiro de torcedores embandeirados e histéricos já vagueavam pelo entorno do estádio ou se aglomeravam aguardando a abertura dos portões de acesso.

Mas os três ocupantes da Kombi tinham outra preocupação na entrada do estacionamento a metros do estádio. Abriram a porta de correr do utilitário e improvisaram uma bancada com uma tábua repousada sobre dois caixotes de maçã.

Empilharam ali centenas de discos de vinis compactos, um pouco menor do que os velhos long plays.

A capa do disco era reveladora. Sob o título O Lance, trazia a imagem de Escurinho, de cabelo black power, violão às costas, moletom da Harvard University e calça boca de sino à beira das águas do Guaíba, que lambiam o estacionamento do Beira-Rio.

Escurinho dividia o tempo entre a bola e o violão

Vivendo em Belo Horizonte, o ex-atacante ainda contesta a falta de Piazza em Valdomiro que originou o gol.

- A dor maior se deve ao fato de jamais ter sido campeão nacional. Tentei por três vezes e, aquela de 1975, me parecia a chance mais próxima para erguer a taça - recorda o camisa 9 do Cruzeiro.

Em 1976, Palhinha foi o goleador da Libertadores com 13 gols. Ajudou o Cruzeiro a ganhar seu primeiro título continental. Dois desses 13 gols foram no 5 a 4 sobre o Inter, em um dos maiores jogos da história do futebol brasileiro. Palhinha acabou expulso no segundo tempo. Tentou revidar um cotovelaço em Figueroa, que havia quebrado o seu nariz na final do Brasileirão. Sem a mesma técnica do chileno, levou cartão vermelho.

- Eram dois times de altíssimo padrão, que sempre jogavam em busca de gols. Inter e Cruzeiro não tinham equipes para jogar por empates. Sinto saudade. Tínhamos dois times ousados, com jogadores inteligentes e de alta técnica - conta Palhinha. - Depois, fiquei amigo do Figueroa. Foi o maior zagueiro do mundo. Um dia disse que era mais fácil parar Pelé do que Palhinha - gaba-se o cruzeirense.

Do banco, Escurinho assiste à decisão diante do Cruzeiro

Ou seja, Escurinho sairia da equipe. Mas agora, na hora pantanosa da decisão, a torcida podia gritar o seu nome, como acontecia no Beira-Rio quando o time não resolvia e ele entrava e salvava com um gol ao final. De cabeça.

Os três da Kombi pensavam assim, Escurinho sonhava assim, seus parentes na antiga Ilhota rezavam e imaginavam assim.

O plano era esse, de aproveitar a comoção da multidão e vender o compacto. Aquele disco fora gravado em produção independente em 1974 como jamais um jogador de futebol havia se aventurado até então. Figueroa lançara um, mas ele apenas declamava poemas seus e de Pablo Neruda. O Lance, não. Continha quatro sambas de autoria do próprio Escurinho. Ele gravou escondido na madrugada porque no restante do dia tinha de treinar. Passou uma semana em claro tocando com duas bandas da noite de Porto Alegre, a Café, Som & Leite e a Ka-Sambão, na antiga gravadora ISAEC. Ao final das madrugadas, quase manhã, ele deixava o estúdio, dormia duas horas e corria para os duros treinos puxados pelo preparador Gilberto Tim. Metia um colete com pesos de chumbo e repetia à exaustão saltos e cabeceios.

Ninguém no Beira-Rio podia saber de suas aventuras musicais. Muito menos Minelli. Ainda assim, aos 24 anos, Escurinho marcou 24 vezes e foi goleador do hexa. Boa parte, de cabeça.

O problema é que havia 2 mil compactos encalhados.

Jogador gravou o disco "O Lance" escondido dos dirigentes colorados

A três horas da tensão de Inter e Cruzeiro, à espera da preleção na concentração, ali mesmo no Beira-Rio, Escurinho tentou localizar a Kombi no pátio, curioso por saber se a torcida comprava o disco.

Entorpecidos pelo ambiente da primeira decisão nacional de um clube gaúcho, a torcida pouco se deu conta da banquinha com os discos. Quem parava, cativado pela foto do ídolo na capa, prometia comprar após o jogo. Não andaria no arquibancada lotada carregando um disco.

-  É o disco do Escurinho? Depois a gente passa aqui.

Cantor na noite de Porto Alegre e produtor do disco, Delmar Barbosa gastou a voz grave anunciando O Lance. Ele e o irmão, Ismair, e o bancário Sílvio Aquino, os três da Kombi, estavam impacientes. O jogo se aproximava, a multidão corria para dentro do estádio e as pilhas de compacto continuavam lá. Quando a decisão começou, havia três ou quatro discos vendidos. Eles e uma imensa torcida sem ingresso permaneceram no pátio com radinhos histriônicos ouvindo urros e silêncios que vinham do estádio abarrotado.

Escurinho assistiu do banco ao primeiro tempo, e pensou convicto, tinha lugar naquele Inter que controlava Nelinho, Palhinha e Joãozinho mas não marcava. Com a tensão do jogo, esqueceu o disco. Assíduo frequentador do reservado, aprendeu a ler o jogo com cacoete de técnico. Sabia o que faria em campo caso fosse chamado. Mas veio o intervalo e Minelli exigiu pressão pelas pontas, chamou atenção para as ousadias de Nelinho e mandou o mesmo time voltar a campo. Quando Figueroa marcou de cabeça aos 11 minutos, Escurinho esqueceu o plano de ser o salvador e se agarrou aos companheiros de banco. Minelli, inclusive. E o Cruzeiro partiu em busca do empate.

Ismair não suportou a reclusão no pátio e conseguiu entrar na coréia. Mal via o jogo. Mas tomou a iniciativa de pedir "Escurinho, Escurinho".  Tentou três ou quatro vezes e não ninguém o acompanhou. Com a pressão do chute de Eduardo, da cobrança de Nelinho, do escanteio de Moraes, da cabeçada de Batata, a torcida caiu em estado catatônico. Queria garantir o 1 a 0. Não importunar o técnico numa hora dessas.

Comemoração tomou conta das ruas após o apito final

A 10 minutos do final, aflito, Escurinho estava disposto a implorar a Tim que intercedesse junto a Minelli. Queria jogar. Mas ao mesmo tempo torcia pelo fim do 1 a 0 do título.

Quando acabou o árbitrou Dulcídio Vanderley Boschillia apitou o final, com o Inter campeão brasileiro, 83 mil colorados tomaram enlouquecidos o pátio do Beira-Rio. E a banquinha com os discos desapareceu em meio à multidão e à histeria geral.

Os poucos que passavam pela Kombi só queriam saber de um outro herói:

- Tem disco do Figueroa?

Venderam apenas dez compactos.