Confira o que dizem autoridades sobre o problema, que condena crianças a crescerem nos abrigos enquanto os processos se arrastam na Justiça:

Falta de estrutura

— A 2ª Vara da Infância e da Juventude de Porto Alegre, encarregada de todos os processos de destituições de poder familiar, habilitação para adoção, guarda e tutela, está sobrecarregada, com 5 mil processos, enquanto há oito servidores no cartório (média de 625 processos para cada um). Para efeitos de comparação, a 1ªVara da Infância, que cuida de temas como acesso a medicamentos e vagas em escolas, tem pouco mais de mil processos.

— Faltam psicólogos e assistentes sociais responsáveis por pareceres técnicos. Na Central de Atendimento Psicossocial Multidisciplinar do Foro de Porto Alegre, há 23 profissionais dedicados à área da infância, responsáveis desde o atendimento a atos infracionais até ações de destituição familiar e adoção. Há pelo menos seis vagas de psicólogos e quatro de assistentes sociais não preenchidas, por aposentadorias e falta de concurso.

 

"É um absurdo que tenhamos 1,5 mil acolhidos em Porto Alegre, que é o mesmo número do Estado do Rio de Janeiro. Temos muita entrada, mas não temos saída. Falta estrutura do poder judiciário. Teríamos de ter aporte de funcionários, mas vou além: acho que deveria ter mais um juizado. Por que temos 12 varas de Fazenda Pública tratando de patrimônio e um único tratando de de 5 mil vidas? A situação em Porto Alegre é triste. Estou na minha sexta rodada de inspeção nos abrigos. As crianças que vi em março de 2014 são as mesmas que eu estou encontrando agora. Elas corriam para me perguntar: quando é que eu vou pra minha casa, ou quando vou ser adotado? Continuo com esse questionamento. Não vislumbro com a estrutura que temos hoje que elas retornem para as famílias de origem ou sejam adotadas a curto prazo."

Cinara Dutra Braga, promotora de Justiça da Infância e da Juventude da Capital

 

"Tudo demora muito, é angustiante. Quando tu me perguntas onde está o furo, a única coisa que eu consigo pensar é que é uma população que não tem visibilidade nenhuma. Quem é que vai reclamar que o processo está demorando? Não tem ninguém para reclamar. Eu trabalhei numa vara de família no outro Foro com mil processos. Se o processo chegava de tarde e, no outro dia de manhã, não tivesse sido feito um movimento nele, o advogado representava contra o funcionário do cartório que não movimentou. Então os funcionários iam voando. Aqui, tenho cinco mil processos e nenhum advogado particular."

Sonáli da Cruz Zluhan, juíza substituta da 2ª Vara da Infância e da Juventude da Capital

 

Entrave nos processos

— O prazo legal para a destituição familiar é de 120 dias, mas em Porto Alegre tem levado anos.

— Para que as ações de destituição familiar avancem, é preciso que os pais sejam ouvidos antes da decisão. A demora na localização dos responsáveis, que em muitos casos são moradores de rua, é apontada pela juíza Sonáli da Cruz Zluhan como um dos principais entraves para a demora nos processos.

— Mesmo em casos de sucessivos abandonos familiares, a Defensoria Pública costuma recorrer, sob o argumento de que é preciso esgotar as tentativas e encaminhar os pais a programas de assistência para buscar o retorno à família biológica.

 

"A gente tem muita dificuldade de localizar os responsáveis. A maioria são moradores de rua, e a gente não encontra. E se a gente não procurar em todos os lugares, acontece de a defensoria alegar a nulidade do processo. Então a gente tem que mandar ofício para as operadoras de telefonia, CEEE, fazer pesquisa na receita federal… Só que os oficiais de Justiça também estão sobrecarregados. Acabou de voltar um processo de um menino recolhido quando nasceu, que está há um ano e pouco o abrigo, mas o Tribunal de Justiça anulou o pedido de destituição dizendo que os pais não tinham sido procurados. A gente sabe que a mãe não vai ser encontrada, porque nunca apareceu no abrigo. Mas, por mais que se justifique isso na sentença, tem acontecido de anularem. A defensoria invariavelmente recorre, e estão cumprindo o papel deles, mas tudo demora muito."

Sonáli da Cruz Zluhan, juíza da 2ª Vara da Infância e da Juventude da Capital

 

"Uma Justiça às vezes muito rápida pode se transformar numa injustiça. A Lei diz que temos de esgotar todos os meios antes de destituir os pais, o Estado deve prover os meios para que as famílias se recuperem, é preciso investir na família. Temos um caso de sucesso com uma mãe moradora de rua e o pai drogadito, que tiveram quatro filhos, e dois conseguiram voltar ao convívio familiar. Demorou quatro anos para que se reorganizassem, ninguém sai do vício da droga em seis meses. Não aparece uma casa para que possam morar em dois ou três meses. Mas é possível. Quem disse que essa família não tem o que dar? Porque uma mãe é moradora de rua, já se coloca uma tarja: você é irrecuperável. Não pode ser assim, o Estado tem que promover o resgate da família. É mais fácil dizer que estão em "local não sabido", mas, se temos um serviço do município que cadastra moradores de rua, não posso fingir que não sei onde estão. Isso reflete uma falta de apostar nos programas, porque essas famílias podem se recuperar."

Claudia Barros, dirigente do Núcleo de Defesa da Criança e do Adolescente da Defensoria Pública

 

Perfis desencontrados

— Embora a maioria dos pretendentes à adoção prefira bebês e crianças pequenas, 85% dos 278 acolhidos que já estão aptos à adoção em Porto Alegre têm mais de 11 anos.

 

"Muitos querem crianças brancas, abaixo dos dois anos. Quem quer crianças doentes, neurolesionadas? Quem quer grupos de irmãos? Nem sempre a criança é tão bonita quanto aquela do comercial de margarina. A gente que trabalha com isso quase se deprime todos os dias, envolve a miséria espiritual do ser humano. mas são temas complexos, não é A+B, envolve sentimentos".

Claudia Barros, dirigente do Núcleo de Defesa da Criança e do Adolescente da Defensoria Pública

 

Leis divergentes

— Em alguns Estados e municípios, os juízes determinam que o processo de destituição familiar corra junto com o processo de adoção para garantir maior celeridade, autorizando a criança a ficar com uma família, em guarda provisória, enquanto o processo transcorre.

— No Rio Grande do Sul, a tradição é esperar até o final do processo para encaminhar a criança para adoção, o que alonga a espera.

 

"O Brasil não sabe bem o que pensa de verdade sobre o que é ser família. Uma hora faz uma lei dizendo que o que importa são os vínculos afetivos, e aí a gente tem lá todas as leis que dizem respeito às varas de família, de preconizar o vínculo afetivo. E o Estatuto da Criança se volta para a família de origem, os vínculos biológicos. E aí está tramitando no Congresso o Estatuto da Família, que não considera nem família biológica, mas "pai e mãe". A verdade é essa: o Brasil não sabe no que acredita, o que é direito de família. E a gente oscila nisso, as crianças estão sofrendo com isso. É fora da realidade. Essas leis não estão acompanhando o que é a realmente a necessidade dessas crianças que estão no acolhimento. Essa família (idealizada) é absolutamente irreal. O que existe é uma mistura de pessoas que se amam e se cuidam, seja pai com pai, mãe com mãe, tia."

Verônica Petersen Chaves, psicóloga do Centro de Atendimento Psicossocial e Multidisciplinar do TJRS

 

O que está sendo feito

— Até o início do próximo ano, a Central de Central de Atendimento Psicossocial Multidisciplinar (CAPM) do Foro de Porto Alegre promete criar um grupo focado exclusivamente em reinserções familiares e adoções, com o objetivo de desabrigamento.

 

"Vamos ter fotografias, nas paredes, dos adolescentes que estão sem família, vamos ter que chegar de manhã, as técnicas responsáveis, e olhar todos os dias, pensando: tenho que dar um destino para esse menino, para essa menina. Esse é o foco da equipe. A gente constatou que essas crianças caíram nesse vácuo. Eu assumi há quatro meses e isso para mim é uma das coisas mais importantes, foi uma falha que não poderia ter sido admitida."

Marco Aurélio Martins Xavier, juiz responsável pela CAPM

 

— Depois de seis meses de trabalho de uma força-tarefa, Ministério Público, Poder Judiciário e Defensoria Pública assinaram no dia 10 de dezembro um termo de cooperação para "regulamentar fluxos e procedimentos referentes ao acolhimento institucional de crianças e adolescentes em Porto Alegre". A ideia é garantir maior agilidade no atendimento.

— Uma das determinações é substituir ofícios em papel por uma comunicação eletrônica entre Juizado, MP e Defensoria.

— Outra decisão é que, ao abrigar a criança, já seja realizada a primeira audiência, com a participação da família e de todos os órgãos de proteção, para desburocratizar os contatos e definir no ingresso que providências podem ser tomadas. A ideia é também buscar uma aproximação com o Conselho Tutelar e a Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc), para a inclusão de famílias vulneráveis em programas sociais.

 

"Vamos constituir um sistema de audiência de acolhimento, a porta de entrada do sistema, para que nunca leve tempo superior a 30 dias para que haja uma audiência com o juiz, o promotor e a defensoria com a criança e o adolescente acolhido, a família e a rede de atendimento. Vamos sistematizar o controle e desburocratizar o sistema, porque em alguns casos acabava acontecendo uma comunicação escrita de que houve um ingresso, mas de fato não havia uma audiência onde se podia ver o todo, para que isso pudesse ser resolvido de forma imediata. Agora vamos tornar isso oficial, estabelecer como padrão de trabalho, inclusive com uma dinâmica que vai permitir que MP e Defensoria possam ser comunicados eletronicamente de uma audiência, dispensando a necessidade de autos."

André Guidi Colossi, juiz corregedor da 2ª Região.

 

"É importante lembrar que os abrigos não estão lotados de crianças abandonadas, elas não estão ali para adoção, a prioridade é que voltem para suas famílias."

Angelita Rebelo de Camargo, dirigente do núcleo de coordenação de Infância e Juventude do Tribunal de Justiça.

 


Quem espera por uma família
Perfil das crianças aptas à adoção em Porto Alegre

Total de crianças e adolescentes: 278*

 

*Números atualizados em 14 de dezembro de 2015