COM O FIM DO SEQUESTRO,

A CAÇA AO DINHEIRO

Desde o início dos anos 1970, a Bunge & Born vinha ampliando sua atuação no Brasil. Entre outros negócios, comprou um banco, uma casa de câmbio e uma agência de seguros. O ambiente belicoso na Argentina forçou a companhia a transferir o comando do grupo para São Paulo. Também trocou de presidente. No começo de 1976, depois de 20 anos, o patriarca dos Born se aposentou, substituído pelo sócio Mário Hirsch. Para a capital paulista, se mudaram 17 executivos com seus familiares e um batalhão de seguranças. Jorge se instalou no bairro Jardim América. Juan se negou a deixar a Europa.

Jorge Born, hoje aposentado e octogenário, vive em Buenos Aires

Em 23 de março de 1976, as forças armadas derrubaram Isabel Perón e assumiram a Casa Rosada, empregando uma caçada feroz aos guerrilheiros. E o nome do banqueiro Graiver entrou para o índex dos "gorilas", como eram chamados os generais repressores. De Nova York, ele gerenciava US$ 17 milhões dos guerilheiros (US$ 12 milhões do sequestro dos Born e US$ 5 milhões do sequestro de Heinrich Metz, gerente da Mercedes-Benz na Argentina). O investimento rendia U$ 160 mil mensais aos montoneros. Em 7 de agosto de 1976, o avião dele, um Jet Falcon, no qual era o único passageiro em viagem de Nova York para Acapulco, explodiu contra uma montanha no México. Um raio teria derrubado a aeronave, mas suspeitas de sabotagem com o dedo da CIA persistem até hoje. Acidente ou atentado, os montoneros ficaram sem o sócio e sem a fortuna administrada por ele.

A ditadura argentina era comandada pelo general de Exército Jorge Rafael Videla, e, em setembro de 1977, arquivou a investigação contra a Bunge & Born. A prioridade era enfrentar inimigos. Os montoneros cobravam US$ 17 milhões da viúva de Graiver. Ela, parentes e empregados do banqueiro foram presos e torturados por militares. A maioria acabou condenada sem direito a defesa, acusada de ligações com terrorismo. E a junta militar confiscou dezenas de empresas e bens da família.

Os militares foram atrás também do tesouro enviado para Cuba, sequestrando dois diplomatas da embaixada cubana em Buenos Aires. Na sucursal da agência de notícias Association Press, apareceram documentos pessoais dos cubanos com uma carta, sugerindo deserção. As mortes de ambos só foram confirmadas em 2012, quando foram identificadas as ossadas dos dois diplomatas dentro de tambores metálicos cobertos com concreto.

A Marinha perseguia, preferencialmente, montoneros. Uma parcela considerável de militantes fugiu para o Brasil, o Uruguai e a Europa. Mesmo assim, em apenas um ano 2 mil combatentes foram capturados. A maioria foi levada para a Escola de Mecânica da Armada (Esma), símbolo dos anos de chumbo argentino onde desapareceram 5 mil pessoas. Lá, os guerrilheiros eram torturados, espancados e obrigados a trabalhos forçados.

Sequestrado com a mulher e dois filhos, um integrante do serviço de relações exteriores dos montoneros confessou ter a chave de uma caixa-forte em banco de Zurique, mas fez questão de ele mesmo abrir o cofre. Os repressores não hesitaram. Imobilizaram com gesso uma das pernas do montonero e permitiram a viagem, acompanhado de três policiais, disfarçados de seguranças. Na Suíça, os militares pegaram uma mala com US$ 1,4 milhão.

O sequestro de outro montonero e da mulher dele, grávida de gêmeos, deu pista para a captura de Firmenich e dois integrantes da cúpula montonera que viviam no México. O preso seria isca para uma cilada. Mas, por um descuido dos militares, o homem conseguiu avisar os companheiros a tempo. Firmenich e sua trupe fugiram para Cuba. A "recompensa" do falso delator foi ser sentenciado pelo tribunal revolucionário como traidor. A justificativa: colocar em risco a vida do chefe. Obrigado a voltar para a Argentina como clandestino e enfrentar a ditadura, o homem foi preso e se suicidou. A viúva dele deu à luz os gêmeos, mas os bebês foram arrancados de seu colo e ela nunca mais foi vista.

 

CONFLITOS ENTRE A LIDERANÇA EM HAVANA 
E A BASE PROVOCARAM DESERÇÃO NA GUERRILHA

 

Exilados com familiares em Havana, os líderes do alto escalão montonero esbanjavam status de diplomata. Contando com a solidariedade dos camaradas da União Soviética e a "mesada" do governo cubano por conta do dinheiro do sequestro, ocupavam uma casa no bairro Miramar, entre prédios de embaixadas, com uma Kombi à disposição na garagem. No local funcionava uma creche para cuidar dos filhos dos combatentes dispostos a retornar para a contraofensiva à ditadura militar.

O conforto caribenho desfrutado pelos chefes da organização contrastava com a opressão implacável aos militantes na Argentina. Perseguições, prisões, torturas, mortes e desaparecimentos se multiplicavam, abrangendo sindicalistas e operários da Bunge & Born, alinhados ao movimento guerrilheiro. E, em vez de mais dinheiro, de Havana chegavam exigências, ameaças de condenações por traições e ordens para intensificar a contraofensiva.

A sequência de tropeços e o ambiente antagônico entre a cúpula e as bases só poderiam provocar divergências. O jornalista e escritor Rodolfo Walsh, figura destacada da organização e no sequestro dos Born, se manifestava contra os rumos da guerrilha quando foi morto em um cerco policial em março de 1977. Dias depois, os montoneros lançaram um comunicado negando as fissuras internas. Garantiam ter dinheiro em local seguro e disponível às organizações populares de qualquer nação que combatiam o imperialismo. Mas não era bem assim. A fortuna sob a tutela do governo cubano (que seria de US$ 25 milhões) girava pela Checoslováquia e retornava a conta-gotas para Havana, que devolvia em ritmo ainda mais lento aos montoneros.

 

– Jamais falaram em valores. Sabe-se que uma boa parte do dinheiro foi para Cuba, como empréstimo nunca quitado. Outra ficou com o banqueiro (Graiver), mas uma terceira parcela foi salva e ficou à disposição da condução montonera – lembra Jair Krischke, gaúcho presidente do Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH), que conheceu militantes de esquerda, ajudando a salvar a vida de argentinos perseguidos pela ditadura daquele país.

 

Galimberti exigia acesso ao saldo das contas em Cuba, mas Firmenich estava preocupado em boicotar a Copa do Mundo de 1978, tentativa que fracassou com centenas de baixas entre os guerrilheiros. Outras centenas deles abandonaram a Argentina pela ponte internacional em Paso de Los Libres.

Pela proximidade, Porto Alegre e seus arredores eram estratégicos para os montoneros. Foi esconderijo temporário e base para encontros. Em outubro de 1984, 34 deles discutiram durante quatro dias os rumos da organização em uma colônia de férias em Cidreira, no Litoral Norte. A reunião foi monitorada pelo Serviço Nacional de Informações (SNI) brasileiro. Dois anos antes, outro debate foi realizado no seminário de Viamão.

Naquele período, ocorreram duas debandadas entre os montoneros. A primeira por influência de Galimberti. Ele e seus seguidores criticavam a falta de democracia e de dinheiro. Mas abandonaram a organização com os bolsos cheios, raspando gavetas a que tiveram acesso. Antigos companheiros reclamaram que foram levados milhões. A rebeldia incluiria ainda dois assaltos em carros que buscavam no aeroporto de Ezeiza malas desembarcadas de Cuba. Cada uma com US$ 200 mil.

A última ditadura militar argentina sucumbiu em dezembro de 1983, após um fracassado conflito externo com ingleses pelas Ilhas Malvinas e a sangrenta guerra interna que teve um saldo de 30 mil mortos e desaparecidos. Eleito presidente naquele ano, Raúl Alfonsín determinou o julgamento de militares por homicídios, torturas, cárcere privado, entre outros, e a retomada das investigações dos crimes da guerrilha peronista. Os principais alvos: o ex-presidente Videla e o líder montonero Firmenich.

Havia um mês Firmenich estava no Brasil. Convidado para um seminário na Assembleia Legislativa de São Paulo, discursou, comeu bolo com políticos dos chamados partidos democráticos e passou a morar no Rio. Apontado como autor intelectual do sequestro de Jorge e Juan e das duas mortes de funcionários da Bunge & Born, Firmenich foi capturado em um apartamento em Ipanema, onde viveu por três meses. Extraditado para a Argentina em 1984, foi condenado a 30 anos de prisão, pena máxima no Brasil – pela lei brasileira, nenhum extraditado pode ser punido além desse limite em seu país de origem.

O general Videla recebeu pena perpétua, e parentes do banqueiro Graiver foram absolvidos e soltos. Alfonsín mandou devolver à família Graiver 40 propriedades e determinou uma indenização de US$ 84 milhões, a ser paga aos poucos, a título de prejuízos causados pela ditadura.