O dia em que Arthur renasceu

Naqueles segundos em que acompanhou uma moto e uma ambulância do Samu pararem na frente de sua casa, no centro de Tramandaí, e viu quatro socorristas com pressa percorrerem o gramado do quintal, atravessando a sala e o corredor em direção ao quarto das crianças, uma vida de sonhos e planos assaltou a memória de Ana Maria Tarasconi Pereira, 30 anos.

Só que as cenas pareciam as de um filme antigo, armazenado em uma fita velha, em preto e branco, que talvez não estivesse mais em condições de rodar até o fim. A sensação era de que tudo estava se acabando ali. Tentava afastar o pensamento sobre o pior, mas era difícil elaborar qualquer pingo de esperança. Aquela vida se esfarelava.

Arthur, seu primeiro filho, havia chegado cinco dias antes, saudável que só ele. Veio ao mundo chorando com toda a força que reunia em seus 3,5 quilos. Tinha cabelo loiro e comprido, arrepiado o suficiente para um natural penteado moicano.

A mãe não escondia o orgulho:

– É um bebê de capa de revista.

Deixaram o hospital dois dias após a cesárea. Em casa, Ana Maria e o marido, o empresário Kelson Pereira, 33 anos, estavam completos. Eric, cinco anos, filho do primeiro casamento de Kelson, havia ganhado um pequeno cúmplice para as bagunças. Viveram as 72 horas horas seguintes como se a criança estivesse desde sempre ali. Arthur dormia bem, chorava pouco, mamava a cada duas horas. Elogiavam a tranquilidade do filho. Não dava qualquer trabalho. Tudo parecia seguir perfeitamente em ordem. Só se notaram aflitos no fim da manhã do último 2 de março.

Era dia de vacinas, e a família havia regressado para casa pouco antes do almoço. O pai ainda estava a largar as bolsas e pertences do recém-nascido sobre o sofá da sala, quando a mãe, ali também, pediu atenção. Ela se preparava para amamentar o filho, e tentava acordá-lo. A criança não respondeu. O pai deu uma sacudida no bebê. E nada. Ficou dividido entre o conforto do “está dormindo” e o desespero do “parece que tem algo errado”. Balançou mais um pouco, e a boquinha se abriu, deixando à mostra a língua, com aspecto rijo, virada para cima.

Kelson levou então a criança para o quarto, deitando-a sobre a cama de Eric. Ana Maria não o seguiu. Não podia mais ver aquilo – tentou se tranquilizar e buscar ajuda.

No quarto, Kelson erguia o braço de Arthur, e o braço caía. Beliscava a perna. Beliscava mais forte. Forte mesmo. E nada. A barriga parecia não fazer movimentos de respiração. Parecia não ter mais sinais. Era como se estivesse diante de um boneco, sem vida.

Ana Maria havia mal desligado o telefone, após descrever a situação para o serviço de regulação do Samu, quando moto e ambulância encostaram no pátio. Já não se recorda se chorava, se tentava se manter firme, o que fazia. O que lembra é que seguiu atrás da equipe até o quarto de Arthur, posicionando-se com o pai, atrás do médico, dos enfermeiros e do condutor. O bebê estava ainda mais pálido.

 

Ana Maria Tarasconi Pereira e seu filho Arthur, hoje com quatro meses

Socorristas coletaram os sinais vitais, fizeram um rápido exame, e injetaram glicose no menino. Em segundos, Arthur chorou. Um choro de pilha fraca, que não durou muito – mas o melhor choro que os pais poderiam ter ouvido. Melhor do aquele cheio de força de quando nasceu. Arthur não estava morto. Ou, como preferem: Arthur havia renascido. Renascia ainda uma mãe. Renascia também um pai.

A criança estava com hipoglicemia já em estágio avançado – faltava-lhe açúcar no sangue.

Tinha a respiração comprometida, estava inconsciente. Mais alguns minutos, correria o risco de sofrer uma parada cardiorrespiratória.

O quadro era o mesmo que o coordenador-técnico do Samu em Tramandaí, o enfermeiro Rodrigo Vieira, havia identificado em sua filha, meses antes, quando a menina também tinha poucos dias. Foi ele quem então tomou Arthur pelos braços, como se fosse sua cria, e disparou com a equipe até a ambulância. Kelson correu atrás, de pé no chão. Ana Maria pulou na parte dianteira da ambulância, ainda em pânico. Arthur havia chorado, mas quem garante?

No Hospital Getúlio Vargas, de Tramandaí, o bebê recebeu os cuidados da Unidade de Cuidados Intensivos (UCI) Neonatal. Logo no primeiro encontro, os pais ouviram da médica que o esforço conjunto havia assegurado a vida de Arthur – os pais que haviam identificado o problema rapidamente, e os socorristas chegaram em tempo até o paciente. Após exames, o recém-nascido foi diagnosticado com infecção urinária, e precisou ficar internado por 12 dias. Doze longos dias.

Ana Maria e Kelson iam juntos nas visitas. A cada duas horas estavam lá, batendo ponto. Encontravam Arthur dentro de uma cúpula, em uma sala ampla, cheia de prematuros. Não chegava ainda a ser um clima hostil, mas em nada lembrava o quarto azul do filho, projetado com tanto carinho para a sua chegada. Ali, eles

mal podiam tocar o menino.

Na primeira noite, cochilaram nos bancos do carro, estacionado em frente ao hospital. Em casa, pediram para que a empregada recolhesse tudo o que era de Arthur. Que colocasse chupetas, panos, lenços umedecidos dentro do quarto, cuja porta fecharam. Doía ver tudo aquilo. Poderia ser que o filho não voltasse. Ainda viviam o susto das horas anteriores, além da incerteza das próximas.

Só que, diferentemente daquela manhã, os dias seguintes seguiram com esperança. Kelson foi até o Samu para agradecer ao socorristas que haviam lhe devolvido o sentimento de pai. Escreveu ainda um depoimento público, no Facebook, homenageando a equipe. “Meu pequeno não teria resistido. Eles reanimaram meu filho na minha frente”, postou.

Hoje, aos quatros meses, Arthur já é outro. Nem se parece com aquele bebê quietinho dos primeiros dias. A amamentação da mãe foi intercalada com complemento alimentar, e o menino agora chora, esperneia, faz manha quando quer o bico e não é muito de dormir de dia.

Que alegria ver tanta vida. Arthur nasceu de novo.

 

Em Tramandaí, Kelson segura Arthur, que, no quinto dia de vida, sofreu uma crise de hipoglicemia