Neste 12 de novembro, completam-se 50 anos do Projeto Eclipse, a missão da Nasa que lançou 14 foguetes de uma base montada no litoral gaúcho. É uma história que resiste sobretudo na memória de quem a testemunhou.
Duzentos e cinquenta – talvez até 380 – cientistas da agência espacial norte-americana, a Nasa, reuniam-se diante do Oceano Atlântico quando começou a contagem regressiva. Exatamente às 10h seria dada a largada de um dos maiores experimentos realizados em plena corrida espacial: o lançamento de foguetes de sondagem antes, durante e após um dos raros momentos em que a Lua se interporia entre o Sol e a Terra, fazendo com que o dia virasse noite. Munidos de equipamentos capazes de registrar características das camadas mais altas da atmosfera, 14 projéteis viajariam céu acima por mais de 100 quilômetros, enviariam informações aos radares instalados em solo e, segundos depois, mergulhariam no mar.
O eclipse solar total de 12 de novembro de 1966, há exatos 50 anos, não teve mais do que 24 minutos de obscuridade parcial e 120 segundos de escuridão total. Mas tratava-se de chance única para a realização de estudos que não poderiam ser feitos em condições normais, devido à intensa luminosidade do Sol. Por isso, foi motivo de investimento de uma fortuna de dólares, que possibilitaram o chamado Projeto Eclipse. Partiram dos Estados Unidos navios e aviões carregados de pesquisadores e mais de 800 toneladas de maquinário. Foram necessários três meses para que instalassem e testassem todo o material em um ponto estratégico, que por semanas chamou a atenção do noticiário mundial: um terreno colado à orla da praia do Cassino, no litoral do Rio Grande do Sul.
Tem gente com pé atrás que considera esta mais uma das tantas lendas que correm pelas ruas de Rio Grande, município ao qual pertence o balneário que já levou a alcunha de Cabo Canaveral Gaúcho – uma referência à famosa faixa de terra na Flórida de onde são lançados os foguetes e as naves espaciais dos EUA. Dá para entender o porquê: quem hoje busca o local que colocou o Brasil nos registros da Nasa encontra um terreno tomado pelo mato. As plataformas que por alguns dias de 1966 abrigaram lançadores, antenas e prédios de radares, sistemas de comunicação e geradores de energia são agora ocupadas por quero-queros, que, com rasantes, afastam os eventuais intrometidos.
Uma parte das informações que restaram é desencontrada – como a que diz respeito ao número de cientistas que os EUA mandaram para passar a temporada no RS. Outra virou enredo de um romance fictício escrito há anos e, recentemente, de um livro digital que, diz o autor, até agora ninguém baixou para ler. São memórias que não ganharam um museu para abrigá-las, mas resistem firmes na lembrança daqueles que, de uma maneira ou outra, acompanharam o projeto de perto. No caso de Ubiratan Freitas, então cabo do exército brasileiro, bem de perto: ele foi guardião dos equipamentos e da estrutura montada pelos cientistas.
– Acompanhei tudo desde o princípio, quando um navio enorme chegou no porto de Rio Grande. Tinha uns três andares. Nos dias em que eles faziam o descarregamento do material, distribuindo para diversos locais, eu ficava lá cuidando. Eram contêineres grandes, brancos, com “Nasa” escrito na lateral. Um caminhão engatava em cada um deles e seguia. Todas as plataformas vieram desmontadas. Depois tirei serviço nas bases americanas no Cassino, passava os dias e as noites rondando a área, e até acompanhei lançamentos de foguetes que foram feitos antes do dia, como teste. Tudo era novidade – lembra Freitas, aos 74 anos.
O antigo cabo hoje é fotógrafo do 6º Grupo de Artilharia de Campanha (GAC) de Rio Grande. Coleciona uma série de fotos próprias, mas o acervo que considera de maior valor ele herdou do irmão, o jornalista Tibiriçá Freitas, morto há 10 anos. O tesouro é uma série de imagens feitas por Tibiriçá, algumas aéreas, dos preparativos para o 12 de novembro.
Tibiriçá era um aficionado pelo mundo dos foguetes. Em 1966, teve o privilégio de cobrir o Projeto Eclipse para a Rádio Minuano, de Rio Grande, narrando inclusive os lançamentos dos projéteis. Os recortes de jornais e documentos carimbados pela Nasa que guardou ao longo da vida, e que agora estão nas mãos de Ubiratan, contêm informações importantes. Elas trazem os pormenores desta história.
Durante a disputa com a União Soviética (URSS) pela supremacia na exploração e no desenvolvimento da tecnologia espacial, os EUA explicitaram ao governo brasileiro o interesse em estudar o eclipse. Assim, em 1965, foi elaborado um plano de colaboração técnica entre os dois países. Ao Brasil, representado pela então Comissão Nacional de Atividades Espaciais (Cnae), hoje Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), caberia fornecer transporte e todas as facilidades locais possíveis – entre elas, a comunicação entre as estações que abrigavam os pesquisadores.
– Cientistas se instalaram em 24 estações que estavam na área que seria coberta pela sombra do eclipse. E elas precisavam se comunicar entre si, só que não existia na época DDD e DDI, sistemas de discagem direta à distância e internacional. E aí tivemos de fazer tudo por radioamadorismo. Na época existia uma lei que não permitia estrangeiro falar por rádio em território brasileiro, mas não tinha como arranjar intérpretes de alemão, holandês, francês. Então abrandaram essa norma e as estações funcionaram – relata o coordenador-geral de todo o Projeto Eclipse, o então diretor científico do Cnae, Fernando de Mendonça, hoje com 92 anos.
Multidão toma conta da praia do Cassino. Foto: Alberico Lucchini, BD, 06/11/1966
Multidão toma conta da praia do Cassino. Foto: Alberico Lucchini, BD, 06/11/1966
Multidão toma conta da praia do Cassino. Foto: Alberico Lucchini, BD, 06/11/1966
Os foguetes fariam estudos da atmosfera que não poderiam ser realizados com a intensa luminosidade do Sol. Foto: Tibiriçá Freitas, Reprodução
Vista aérea da base montada pela Nasa. Foto: Tibiriçá Freitas, Reprodução
Eclipse solar. Foto: Alberico Lucchini, BD, 06/11/1966
5 - 6
<
>
Nos 120 segundos de escuridão total, a sensação térmica era de 10°C em Bagé, onde milhares, inclusive os uruguaios que estavam acampados nas praças para observar o fenômeno, somavam-se pelas ruas da cidade e pelas sacadas de edifícios. Na Campanha, tem quem conte até hoje que peões de estâncias mais afastadas dispararam para suas casas temendo o fim do mundo. Os pescadores do Litoral tiveram de, enfim, acreditar no tal do eclipse, passando o dia de conversa fiada, já que não podiam pescar – era grande o risco de levar uma bordoada de estágio de foguete na cabeça. E os porto-alegrenses nada viram do eclipse, já que a nebulosidade era grande na Capital.
O 14º foguete foi lançado às 14h, quando o sol já brilhava novamente no Cassino. Mas o congestionamento de carros na saída da praia foi até tarde da noite. Ninguém se importou.
– A gente costumava ver foguetes no cinema, antes dos filmes, nos cinejornais que passavam na tela. Mas, ao vivo, a emoção era inexplicável. Naquele momento, Rio Grande já não era mais aquela cidadezinha no fim do mundo. Por um dia, aliás, por vários dias, Rio Grande deixou de ser a cidade do fim do mundo para a ser a cidade que estava aos olhos do mundo. E nós éramos participantes daquele evento – resume Fernanda Castillo.
Na segunda-feira, jornais gaúchos, fluminenses, paulistas e internacionais estampavam o sucesso do Projeto Eclipse. Para os holandeses instalados em Bagé, o índice de rendimento dos experimentos de observação havia sido de 95%. Os italianos sinalizaram o bom trabalho com um “tudo ok”. Os cientistas brasileiros estavam felizes com o material colhido, que seguiria sendo estudado nas décadas adiante, e teve um norte-americano que foi embora se considerando um “gaúcho honorário de Bagé”, tamanha a receptividade na cidade. Não por pouco: teve churrasco na “Rainha da Fronteira”, com direito a um espetáculo demonstrativo da destreza do gaúcho no manejo do cavalo. A gineteada foi aplaudida em pé pelos cientistas estrangeiros, e o presidente da Comissão Nacional do Eclipse, Abraão de Morais, declarou ao jornal Folha da Tarde:
– Tivessem os astrônomos condições de manipular as datas e localizações dos eclipses, Bagé seria por eles escolhida como sede permanente do fenômeno.
Os dias seguintes foram dedicados ao desmanche das instalações. As torres de observação nunca mais seriam vistas em Bagé, e o cabo Ubiratan Freitas voltou para o porto de Rio Grande porque era hora de embarcar novamente todas as mesmas toneladas de equipamentos de três meses antes. Na base de lançamento do Cassino, ficaram só o concreto no chão e alguns parafusos que seguravam as plataformas. Nada mais.
Alguns foguetes não lançados e aparelhos menores foram levados para o Centro de Lançamento da Barreira do Inferno (CLBI), no Rio Grande do Norte. A base da Força Aérea Brasileira (FAB) havia sido criada no ano anterior, como parte do programa de estudos espaciais brasileiros.
– A Barreira do Inferno estava começando seus trabalhos na época, e a maioria dos técnicos brasileiros foi para o Cassino para aprender com os cientistas estrangeiros. O projeto serviu como um treinamento para os pesquisadores brasileiros – afirma o engenheiro eletricista e pesquisador Keble Danta Rolim, autor do livro digital O dia em que o Sol se escondeu, aquele citado no início desta reportagem, o que não teve downloads (para baixar, acesse bit.ly/osolseescondeu).
Rolim trabalhou por anos na Barreira do Inferno, onde um pequeno museu chama a atenção e atrai turistas que passeiam pelas praias do Rio Grande do Norte. Em viagem a Rio Grande para outra pesquisa, acabou colhendo material para o livro sobre o eclipse de 1966 – ao deparar com as informações dispersas e plataformas de concreto tomadas pelo matagal, tornou a ideia de escrever o livro uma missão.
– É uma história que está se perdendo – diz.
Os resultados obtidos durante o Projeto Eclipse estão guardados em um relatório disponível na biblioteca do Inpe, em São José dos Campos, São Paulo, onde, dois anos após o evento, foi realizada a exposição de todos os dados. No mundo da ciência, aponta Fernando de Mendonça – o então coordenador da operação no Cassino, que é até hoje considerado o maior nome por trás das pesquisas espaciais brasileiras –, os experimentos costumam trazer respostas que geram ainda mais perguntas.
E não foi diferente com os realizados em 1966. O conhecimento é um processo lento e não é possível dizer exatamente qual foi a grande descoberta decorrente do projeto realizado em solo gaúcho. Quem participou, no entanto, não tem dúvidas de que, de um jeito ou outro, ele entrou para as melhores páginas da memória.
– Sabe, às vezes eu não lembro muito das operações, mas sempre recordo das pessoas – afirma Mendonça. – E metade dos participantes do Projeto Eclipse já morreu, são 50 anos, afinal. Então existe a frustração de não poder mais se comunicar com aquelas pessoas que já se foram. Mas há uns três anos consegui o e-mail de oito cientistas norte-americanos e marquei uma reunião em um restaurante em Washington (EUA). Fazia 30 anos que não nos víamos. E eles compareceram. Ficamos lá a tarde inteira, resumindo em poucas horas o que havíamos feito nas últimas décadas. Tem coisas que acontecem e são importantes para o progresso da humanidade. Mas o progresso de cada um é muito importante também. Para além de qualquer resultado material, existe o envolvimento pessoal. De tudo, é isso que fica.
EDIÇÃO
Ticiano Osório
ticiano.osorio@zerohora.com.br
TEXTOS
Bruna Scirea
bruna.scirea@zerohora.com.br
DESIGN
Amanda Khal de Souza
amanda.souza@zerohora.com.br
O dia em que a praia do Cassino virou o centro do mundo
EDIÇÃO
Ticiano Osório
ticiano.osorio@zerohora.com.br
TEXTOS
Bruna Scirea
bruna.scirea@zerohora.com.br
DESIGN
Amanda Khal de Souza
amanda.souza@zerohora.com.br
Wagner Passos (à esquerda), 37 anos, cresceu ouvindo o pai, Ivonei Peraça, 62, contar as histórias que marcaram sua infância