Publicado em 16 de abril de 2016

Em meio às investigações da Lava-Jato e à discussão sobre o impeachment da presidente Dilma Rousseff, os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) ganharam protagonismo no país. Provocam polêmica tanto por decisões tomadas na Corte quanto por manifestações públicas. Abre-se um debate: até que ponto o Judiciário pode interferir no Executivo e no Legislativo?

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Fábio Schaffner

Especial

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Diego Vara

Edição

Ticiano Osório

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Diogo Perin

Sob o sol inclemente do Cerrado, uma mulher sentada, de olhos vendados e com a espada sobre o colo, vigia a Praça dos Três Poderes, em Brasília. Tem à frente o Palácio do Planalto, à esquerda, o Congresso Nacional e, às costas, o Supremo Tribunal Federal (STF). A colossal escultura em granito da divindade grega Themis, com 3m30cm de altura e 1m48cm de largura, simboliza a Justiça na capital da República. Por idiossincrasia do escultor mineiro Alfredo Ceschiatti, a estátua não segura a tradicional balança, representação do equilíbrio de quem precisa arbitrar o comportamento alheio. Essa ausência se torna mais sintomática em tempos de acirramento da crise política com as sucessivas fases da Operação Lava-Jato e a iminência da votação do impeachment da presidente Dilma Rousseff na Câmara dos Deputados. Seja por decisões controversas ou por manifestações de cunho político dos integrantes da mais alta instância da Justiça no Brasil, o STF exerce um protagonismo inédito. Não falta quem enxergue no ativismo da Corte uma subversão dos princípios de independência e de isenção entre os poderes.

Ao determinar a instalação de uma comissão processante contra o vice-presidente Michel Temer (PMDB-SP), suspender a nomeação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva à chefia da Casa Civil, retirar da alçada do juiz Sergio Moro as investigações contra o petista e externar preocupação com a eventual chegada do PMDB ao poder, alguns ministros do Supremo criaram uma enorme polêmica jurídica e se tornaram alvos de ofensas e protestos orquestrados por facções aliadas e inimigas do governo. Desqualificar decisões e posicionamentos dos magistrados virou algo corriqueiro, seja nas redes sociais, na saída da missa ou em mesa de bar. Aliás, as sessões do STF vêm sendo acompanhadas como se fossem novela. No capítulo desta quinta-feira, o enredo centrou-se em ações que questionavam a legalidade do processo de impeachment de Dilma e seus ritos de votação na Câmara dos Deputados.

Criado em 1808, após a fuga da família real de Portugal, o Supremo Tribunal Federal tinha na origem o singelo nome de Casa da Suplicação do Brasil. Com Lisboa tomada pelas tropas de Napoleão Bonaparte, não havia como enviar à capital portuguesa os agravos ordinários e as apelações judiciais. O príncipe regente, Dom João VI, decidiu então considerar a Relação do Rio de Janeiro – órgão responsável por julgar os processos das regiões Sul e Sudeste – uma Suprema Corte brasileira, “para se findarem ali todos os pleitos em última instância”.

Dois séculos depois, o STF ainda obedece a uma liturgia arcaica, segue um regimento interno cujas bases foram assentadas há 125 anos e até bem pouco tempo atrás seu presidente tomava decisões acomodado em uma cadeira do Império.

Casa vetusta por excelência, com rigor formal que proíbe a entrada de pessoas com penteados extravagantes ou mulheres de ombros desnudos, o Supremo demorou 192 anos para acolher uma mulher em seus quadros – 195 para um negro. Manda a etiqueta que, quando os ministros ingressam em plenário, todos se levantem em respeito à autoridade. Quem se demora no assento logo tem a atenção chamada por um dos seguranças. “Sentemo-nos”, conclamava com erudição no uso da ênclise o então presidente Carlos Ayres Britto, na abertura das sessões do mensalão, o mais longo julgamento da história da Corte.

Foi nessa época que o STF alcançou os píncaros da popularidade. Os debates se arrastavam horas a fio, e a sociedade assistia ao vivo, pela TV, aos ministros decidindo o destino de políticos corruptos em um linguajar hermético, repleto de citações em latim. Aos espectadores, parecia grego. Por vezes, era.

A ocupação midiática do Supremo começou em 2002, quando as sessões passaram a ser transmitidas por meio de um canal próprio de TV. Antes disso, uma única vez um julgamento da Corte havia sido exibido na TV. Foi em 23 de setembro de 1992, quando o plenário analisou um mandado de segurança contra o impeachment de Fernando Collor. O pedido, rejeitado, era assinado por Gilmar Mendes, então chefe da assessoria jurídica da Presidência, e que 20 anos depois se tornaria ministro do STF. Em 2004, foi criada a Rádio Justiça, que além da transmissão das sessões, romanceia processos em formato de radionovelas, numa tentativa de aproximar a população do cotidiano do tribunal.

A TV Justiça foi ideia de Marco Aurélio Mello, um dos ministros mais loquazes do STF. Para aprovar a iniciativa, Mello redigiu um projeto, submeteu ao Congresso, angariou votos na Câmara e no Senado e, depois de aprovado, sancionou a lei, no exercício interino da Presidência da República, numa deferência concedida pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso. O ex-ministro Nelson Jobim, em depoimento ao projeto História Oral do Supremo, da Fundação Getulio Vargas, conta:

– Ele, Fernando Henrique, acertou com o vice-presidente, que era o Marco Maciel, e acertou também com o presidente do Senado e o presidente da Câmara, que depois de aprovada a lei, quando a lei fosse para a sanção, todos viajassem, porque aí assumiria o Marco Aurélio, e o Marco Aurélio é que sancionou a lei.

A judicialização da política

e a politização da Justiça

Há 26 anos no Supremo, Marco Aurélio só tem menos tempo de Corte do que Celso de Mello. Nomeado pelo primo Fernando Collor, é expansivo e tem um jeito peculiar de falar, escandindo e acentuando a última sílaba das palavras terminadas em “al”. O hábito de implicar com os votos dos colegas lhe valeu o apelido de “ferrinho de dentista”.

Marco Aurélio está no centro da discussão em torno de um eventual impeachment de Michel Temer. Em decisão individual, o ministro determinou ao presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), que acolha o pedido de afastamento do vice-presidente. O autor da ação, o advogado mineiro Mariel Márley Marra, requeria apenas uma nova análise de Cunha, ante a rejeição efetuada em dezembro do ano passado. Marco Aurélio foi além, ordenando a aceitação do pedido. No dia seguinte, Celso de Mello, o decano da Corte, negou provimento a ação semelhante. No entendimento de Celso, não cabe interferência do Judiciário em ato do Congresso, sob pena de “inaceitável nulificação do próprio Poder Legislativo”. O ministro entendeu ainda não haver evidência de que Cunha tenha “vulnerado” a Constituição ao arquivar o impeachment contra Temer.

Jorge Mussi, ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ), assinala:

– A decisão de um juiz é o exercício de sua consciência, mas não quer dizer que ela seja o pensamento do tribunal. Não dá para ficar uma hora decidindo para um lado, outra hora para outro. Vivemos um momento em que o Judiciário se firma cada vez mais na iminência de um julgamento que é político, o que não é bom.

Para o deputado Ibsen Pinheiro (PMDB-RS), presidente da Câmara no impeachment de Collor, Marco Aurélio extrapolou suas atribuições ao interferir em um ato que é prerrogativa exclusiva do presidente da Câmara. Deputado constituinte, Ibsen afirma que só se justificaria interferência do Supremo caso uma comissão de impeachment fosse instalada sem amparo legal:

– Quem define o caminho da política são o Executivo e o Legislativo. O Judiciário é o árbitro da legalidade. Como as instituições caminham mal no Brasil, há duas deformações em curso: a judicialização da política e a politização da Justiça. E esta última é muito mais grave.

Ibsen admite que Eduardo Cunha deixou uma brecha ao arquivar o impeachment de Temer: fundamentou sua decisão. Ao afirmar que não havia sinais de crime de responsabilidade do vice-presidente, teria invadido a seara do Senado. Esse foi um dos argumentos usados por Marco Aurélio para deferir a liminar, ao escrever que Cunha “procedeu a verdadeiro julgamento singular de mérito”.

– Quando eu era presidente da Câmara, resolvia isso com um travessão e um ponto. Escrevia apenas “Arquive-se”. No entanto, isso não justifica a decisão do ministro Marco Aurélio. Hoje, os ministros decidem conforme a conveniência, a necessidade e a oportunidade. Há juízes que gostam mais da ribalta do que da discrição, não podem ver um relâmpago que já arrumam a gravata – ironiza Ibsen.

A reação a Marco Aurélio foi imediata. No dia seguinte à divulgação do despacho, o Movimento Brasil Livre (MBL), que capitaneia os protestos antigoverno, protocolou no Senado um pedido de impeachment do ministro, prontamente rejeitado pelo presidente da Casa, Renan Calheiros (PMDB-AL).

Outro alvo do MBL foi o ministro Teori Zavascki. Relator da Lava-Jato no Supremo, Teori é um dos mais reservados integrantes do tribunal. Evita contato com jornalistas e se nega a comentar detalhes sobre os processos. Foi incensado pelos entusiastas do impeachment quando decretou a prisão do senador Delcídio Amaral (ex-PT-MS) e, mais tarde, quando homologou sua delação premiada, recheada de graves acusações contra Lula e Dilma.

Bastou determinar ao juiz Sergio Moro que remetesse ao Supremo todas as investigações contra Lula para entrar na alça de mira de ativistas. Faixas com os dizeres “Teori traidor”, “Pelego do PT” e “Deixa o Moro trabalhar” foram estendidas em frente às casas do ministro, em Brasília, e de seus filhos, em Porto Alegre. Ameaças e injúrias também foram enviadas por e-mail e em redes sociais, motivando uma investigação da Polícia Federal.

– Teori é um homem sério, competente e honrado. É incapaz de dizer uma palavra a mais.

É inconcebível essa reação porque, eventualmente, alguma decisão contraria o radicalismo de uma facção política.  Não estão antevendo as consequências disso – alerta o ex-ministro do Superior Tribunal de Justiça, Gilson Dipp.

– Não se faz justiça com base na opinião pública. A crítica pode e deve ser feita, mas quando se parte para a ofensa pessoal ou para a violência, não faz parte do Estado democrático de direito. A sociedade não pode ser complacente com fundamentalismo ou maniqueísmo. Esse é o caminho para a intolerância, que é o oposto de democracia – corrobora o desembargador do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e professor de Direito Constitucional, Ingo Sarlet.

O risco dos holofotes e

dos microfones da mídia

Na Lei Orgânica da Magistratura, há um capítulo dedicado a normatizar os deveres dos juízes. O terceiro inciso do artigo 36 expressa de forma cristalina ser proibido “manifestar, por qualquer meio de comunicação, opinião sobre processo pendente de julgamento, seu ou de outrem, ou juízo depreciativo sobre despachos, votos ou sentenças, de órgãos judiciais, ressalvada a crítica nos autos e em obras técnicas ou no exercício do magistério”. Num tribunal cuja missão maior é guarnecer a Constituição, tal regra parece letra morta, tamanha a desenvoltura de alguns ministros do Supremo diante dos microfones. No dia em que a presidente Dilma nomeou Lula para o ministério, Gilmar Mendes não se conteve durante a sessão plenária. Crítico contumaz das gestões petistas, disparou diante dos colegas de toga:

– Estamos diante de um dos quadros mais caricatos que a nacionalidade já tenha enfrentado. Como último lance, busca-se o ex-presidente em sua casa em São Bernardo do Campo. É quase como uma acusação que essa casa será complacente com os contrafeitos. É preciso muita desfaçatez para obrar desta forma contra

as instituições.

Dois dias depois, Gilmar concedeu uma liminar suspendendo a nomeação do ex-presidente. Nesse ínterim, Sergio Moro havia divulgado uma conversa telefônica mantida entre Lula e Dilma, disseminando suspeitas de que a presidente visava a conceder ao antecessor a proteção do foro privilegiado, benefício que o resguardava de um eventual pedido de prisão expedido pelo juiz da Lava-Jato.

No despacho, Gilmar escreveu: “O objetivo da falsidade é claro: impedir o cumprimento de ordem de prisão de juiz de primeira instância. Uma espécie de salvo-conduto emitido pela presidente da República. As conversas interceptadas com autorização da 13ª Vara Federal de Curitiba apontam no sentido de que foi esse o propósito da nomeação”.

O ministro do Trabalho, Miguel Rossetto, saiu em defesa do governo. Para ele, Gilmar Mendes atua como agente político e deveria ser “impedido de julgar ações que envolvem o PT, Lula e o governo”.

– É preciso muito cuidado ao expor posições, pois corre-se o risco de antecipar juízo. Eu me nego a comentar processos – diz Jorge Mussi, que julga os recursos da Lava-Jato na 5ª Turma do STJ.

Titular da disciplina de Direito Constitucional na UFRGS e na Fundação Escola Superior do Ministério Público, Eduardo Carrion observa que o STF adquiriu um ativismo judicial depois da Constituição de 1988 e que, por vezes, há excessos em algumas decisões. Para o professor, quando um magistrado fala fora dos autos, pode tumultuar o processo.

–  Cabe aos ministros comedimento e moderação nas manifestações. Também seria prudente evitar decisões polêmicas em caráter monocrático, de forte repercussão social e política – pondera Carrion.

Na avaliação de alguns juristas, decisões individuais são imprescindíveis, em geral pela urgente necessidade de intervenção do Judiciário. Quando tomadas em demasia, fragilizam o sistema colegiado, que mais tarde irá apreciar o mérito da questão. Antes da inauguração da TV Justiça, o Supremo não só emitia um número bem menor de decisões monocráticas, como também havia um alto índice de unanimidade. Um estudo da Fundação Getulio Vargas aponta que, do início dos anos 1990 até 2002, cerca de 70% das decisões em plenário eram consensuais. Esse índice praticamente se inverte em 2003, quando os julgamentos por maioria alcançaram 75%. Os autores da pesquisa, os professores Ivar Hartmann e Diego Arguelhes, atribuem essa variação à mudança de perfil na composição da Corte. A presença de ministros com um novo entendimento constitucional e mais afeitos aos holofotes da mídia contribuiu para a escassez de um convencimento mútuo. O resultado foi maior interferência do Supremo no cotidiano do Congresso e do governo, inclusive alterando regras eleitorais.

– Quando o Poder Judiciário substitui a lei e a Constituição por sua visão da moral e da politica, é ativismo. O STF acha que é o superego da nação. No fundo, acaba fazendo como o Executivo. Em vez de um presidencialismo de coalizão, faz um ativismo de coalizão, porque atende às pressões de grupos e segmentos políticos – critica o constitucionalista Lenio Streck, professor da Unisinos e ex-procurador de Justiça.

A postura mais incisiva da Corte e a exibição de divergências antes restrita aos gabinetes, além de dificultar a busca por unanimidades dos julgamentos, expõem o temperamento dos ministros. Em 2009, Gilmar Mendes e Joaquim Barbosa trocaram ofensas em plenário. Quando houve a altercação, Gilmar presidia um julgamento sobre a vigência de uma decisão que tirou os funcionários de cartórios no Paraná do regime de previdência do Estado.

Joaquim Barbosa – Eu sou atento às consequências da minha decisão, das minhas decisões. Só isso.

Gilmar Mendes – Vossa Excelência não tem condições de dar lição a ninguém.

Barbosa – E nem Vossa Excelência. Vossa Excelência está destruindo a Justiça desse país e vem agora dar lição de moral em mim? Saia à rua, ministro Gilmar.

Gilmar – Eu estou na rua, ministro Joaquim.

Barbosa – Vossa Excelência não está na rua não, Vossa Excelência está na mídia, destruindo a credibilidade do Judiciário brasileiro. Vossa Excelência, quando se dirige a mim, não está falando com os seus capangas do Mato Grosso, ministro Gilmar. Respeite.

Gilmar – Ministro Joaquim, Vossa Excelência me respeite.

Na tentativa de pôr fim a essas contendas públicas, ministros de tribunais superiores já sugeriram a criação de um código de conduta para a magistratura. Para teóricos do Direito, bastava terminar com as transmissões ao vivo das sessões plenárias. No depoimento à FGV, o ex-ministro Nelson Jobim confirma a influência que a exibição dos julgamento pela TV exercia sobre os colegas, sobretudo por exacerbar a vaidade dos ministros:

– Teve uma mudança muito forte no comportamento dentro do plenário. Então, aquilo que era voto de acordo começou a diminuir muito, aí os votos começaram a se espichar. Não terminava nunca aquilo. Eram votos longos. Por quê? Porque estavam sendo gravados. E, depois, também, havia uma mística, que não é verdadeira, de que todo mundo estava assistindo àquilo. A coisa mais chata do mundo é a TV Justiça.

Foi uma transmissão da emissora do Judiciário que expôs a opinião do ministro Luís Roberto Barroso sobre a reunião do diretório nacional do PMDB, na qual o partido rompeu com o governo. Barroso conversava com bolsistas de uma fundação em uma sala do Supremo e se sentiu à vontade para comentar o cenário político do país.

– A política morreu, porque o nosso sistema político não tem o mínimo de legitimidade democrática. Ele deu uma centralidade imensa ao dinheiro e à necessidade de financiamento. E se tornou um espaço de corrupção generalizada – disse o ministro. – Quando anteontem o jornal exibia que o PMDB desembarcou do governo e mostrava as pessoas que erguiam as mãos, eu olhei e disse: “Meu Deus do céu! Essa é nossa alternativa de poder?”. Não vou fulanizar, mas quem viu a foto sabe do que estou falando – concluiu.

Ao ser informado que a audiência estava sendo transmitida pelo sistema interno do STF, Barroso reclamou com assessores e pediu para que os áudios da reunião fossem deletados. Antes, durante palestra em uma universidade de Brasília, ele já havia reclamado da extensão do foro privilegiado a parlamentares e ministros de Estado, por “estimular a fraude à jurisdição”. Gilson Dipp avalia:

– Tem ministros que falam demais. Não é bom para o Brasil a personalização que cada um faz de si.

Nos bastidores da Corte, a manifestação de Barroso foi motivo de críticas veladas dos demais ministros, menos pela sinceridade do comentário e mais pela inconveniência do momento em que foi proferido, no qual o Supremo tenta mediar os conflitos da crise. Não por acaso, o ministro Marco Aurélio Mello já sentenciou: “O colegiado é um ninho de víboras”.

ENTREVISTA

José Néri da Silveira

Ex-presidente do STF

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Juliana Bublitz

juliana.bublitz@zerohora.com.br

"Se não fossem provocados pela imprensa, os ministros seguramente não estariam falando"

Natural de Lavras do Sul, José Néri da Silveira foi ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) e presidiu a Corte entre 1989 e 1991. Também foi presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) em duas ocasiões. Hoje, aos 83 anos, acompanha as decisões do STF de Porto Alegre, onde vive, como espectador ilustre.

Para o magistrado aposentado, as manifestações polêmicas dos atuais membros do STF decorrem basicamente de provocações da imprensa e não depõem contra os ministros, porque, ao externar seus pontos de vista, eles falam "em tese", sem entrar em detalhes do caso. A seguir, confira os principais trechos da entrevista concedida por telefone.

 

Os ministros do STF vêm se envolvendo em debates polêmicos, com manifestações em entrevistas e palestras. Em um momento tão crítico da vida nacional, eles estão agindo bem?

Ordinariamente, os juízes falam nos autos, mas eles também não podem deixar de responder às constantes indagações da imprensa. E eles têm sido provocados a se manifestar. Se não fossem provocados, seguramente não estariam falando. Se são provocados e não falam, são censurados por não colaborar.

 

O protagonismo dos ministros não pode acabar acirrando ainda mais os ânimos?

Não vejo como protagonismo. Ser protagonista é querer aparecer e tomar o lugar de outro no assunto. O que acontece é que, quando são chamados, os ministros não se omitem.

 

No seu tempo, os magistrados se manifestavam tanto quanto hoje?

Hoje, com a amplitude dos meios de comunicação, essa exteriorização está mais visível. Além disso, o Poder Judiciário passou a transmitir julgamentos pela TV, pelo rádio, e os ministros ganharam mais visibilidade. Na minha época, não havia tanta divulgação.

 

É normal que os ministros critiquem uns aos outros pela imprensa, como fez Gilmar Mendes, sobre o fato de Marco Aurélio Mello ter determinado a abertura de processo de impeachment contra o vice Michel Temer?

Debates e discussões sempre aconteceram na vida do tribunal, só que agora tudo está mais visível. Quanto às manifestações dos ministros, é preciso distinguir o aspecto acadêmico do estrito exercício do ofício. Quando fala academicamente, um juiz fala em tese. Fiquei 32 anos em Brasília e sempre tive muita discrição ao me pronunciar, mas o fiz amplamente quando se tratava de matéria administrativa, quando presidi o Tribunal Superior Eleitoral e o STF. Academicamente, sempre externei meus pontos de vista. Mas é claro que isso é um juízo de cada ministro.

 

Estamos vivendo uma politização do Judiciário? Ou seria uma judicialização da política?

Têm sido levadas ao Judiciário questões que têm forte conteúdo político, mas são questões que estão a merecer solução jurídica também, não só política.

 

Para alguns críticos, o ativismo da Corte ameaça o princípio constitucional da independência entre os poderes. O que o senhor acha?

Até agora não vi problemas que desbordem da competência do STF.

Como funciona o STF

PRESIDENTE

INDICADO

SENADO

11 MINISTOS DO STF

Localizado na Praça dos Três Poderes, em Brasília, o Supremo Tribunal Federal é a mais alta instância do Judiciário brasileiro.

 

É composto por 11 ministros indicados por sucessivos presidentes da República. Para assumir, um novo ministro precisa ser aprovado pelo Senado, na chamada sabatina.

 

Um ministro é indicado cada vez que uma vaga é aberta por aposentadoria, morte ou exoneração. Nos últimos 20 anos, todas as saídas ocorreram por aposentadoria do ministro.

 

O presidente do Supremo e seu vice são eleitos por votação do plenário dos ministros. Os atuais são Ricardo Lewandowski e Cármen Lúcia (ambos nomeados por Lula).

 

O Supremo analisa questões relativas à Constituição e casos envolvendo réus com foro privilegiado. O Supremo também cria súmulas que passam a orientar a atuação do Judiciário em casos com teor semelhante.

 

Os casos chegam à Corte depois de escalar os graus de recurso do sistema judiciário (o STF é a última instância), por ações diretas ou por meio de investigações que o próprio Supremo decide fazer em questões constitucionais.

 

Cada processo tem um ministro relator, que analisa o caso e o apresenta para consideração do Plenário. O relator da Lava-Jato, por exemplo,

é Teori Zavascki.

 

Os julgamentos são realizados às quartas e quintas, às 14h, e transmitidos ao vivo pela internet e pela Rádio e TV Justiça. É necessário o quórum mínimo de oito ministros presentes para dar

início à sessão.

OS 11

ministros do

Supremo

O impacto na sociedade

O STF não é protagonista apenas quando o assunto é político. Ao longo da última década, tomou pelo menos oito decisões polêmicas, em temas que vão do aborto às biografias, da união homoafetiva à prisão na segunda instância.

Pesquisas com células-tronco

Em 2008, por seis votos a cinco, o STF decidiu que as pesquisas com células-tronco embrionárias não violam o direito à vida. Assim, liberou os estudos sem restrição, como previsto na Lei de Biossegurança. Relator da matéria, Ayres Britto sustentou a tese de que, para existir vida humana, é preciso que o embrião tenha sido implantado no útero humano.

Não à revisão da Lei da Anistia

Por sete votos a dois, julgou improcedente, em 2010, ação da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) que contestava a Lei da Anistia, de 1979, que perdoou os crimes relacionados à ditadura militar. A OAB defendia a anulação do perdão a policiais e militares acusados de atos de tortura. O relator do caso, Eros Grau, concluiu que não cabia ao STF rever a lei.

União homoafetiva

Por unanimidade, em 2011, reconheceu a união estável para casais do mesmo sexo. Ao defender a decisão, o relator das ações sobre o tema, ministro Ayres Britto, argumentou que a Constituição Federal proíbe “qualquer discriminação em virtude de sexo, raça, cor”.

Aborto de anencéfalos

Em 2012, após dois dias de discussões, os magistrados decidiram, por oito votos a dois, que grávidas de fetos sem cérebro podem interromper a gestação com assistência médica. Com isso, ficou estabelecido que aborto nos casos de anencefalia não seria considerado crime. Na decisão, o relator da ação, Marco Aurélio Mello, concluiu que “no caso do (feto) anencéfalo, não existe vida possível”.

Julgamento do mensalão

Transmitido ao vivo, em rede nacional, o julgamento da Ação Penal 470 – sobre esquema de compra de votos parlamentares na primeira gestão do

ex-presidente Lula – marcou época. O caso foi julgado no STF em 2012. Ao final, foram condenados 24 dos 38 réus, entre eles nomes célebres como

o do ex-ministro-chefe da Casa Civil José Dirceu e o do ex-presidente do PT José Genoino.

Financiamento de campanha

Por oito votos a três, em 2015, a Corte julgou inconstitucional a legislação que, até então, permitia as doações de empresas a campanhas eleitorais. Ajuizada pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil contra dispositivos da Lei das Eleições, a ação foi concluída depois de ter ficado mais de um ano parada, devido a um pedido de vista do ministro Gilmar Mendes.

Biografias sem autorização

Em 2015, por unanimidade, os ministros decidiram que obras biográficas não precisam de autorização prévia para publicação. A relatora, Cármen Lúcia, concluiu que “não é proibindo, recolhendo obras ou impedindo sua circulação (...) que se consegue cumprir a Constituição”, em referência a casos como o do cantor Roberto Carlos, que se envolveu em polêmica ao impedir a circulação de um livro sobre ele.

Prisão na segunda instância

Em fevereiro deste ano, por sete votos a quatro, o STF decidiu que réus condenados na segunda instância da Justiça passem a cumprir pena de prisão, mesmo que ainda recorram aos tribunais superiores. Até então, eles podiam recorrer em liberdade ao Superior Tribunal de Justiça (STJ)

e ao próprio Supremo. Para a Corte, a medida não ofende o princípio constitucional da presunção da inocência.

 

OS 11

ministros do

Supremo

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