QUEM SOMOS?

Entre as muitas figuras regionais que habitam o imaginário brasileiro, poucas são tão icônicas quanto a do gaúcho. A imagem mítica do homem de pilcha, laço e espora, pronto a desbravar o Pampa e a proteger fronteiras, tornou-se tão representativa que chegou a ganhar versão em bronze, no fim da década de 1950, na célebre Estátua do Laçador.

 

Passados quase 60 anos, o retrato imortalizado em metal ainda traduz a devoção da maioria da população às tradições, mas já não consegue mais resumir a diversidade cultural do Rio Grande do Sul do século 21.

Um dos mais completos levantamentos já realizados sobre a identidade rio-grandense, a pesquisa “Persona – quem são e o que pensam os gaúchos?” mostra que a população se divide em cinco perfis básicos – batizados como “Fiel”, “Raiz”, “Não Praticante”, “Exportação” e “Desapegado”. Eles se diferenciam pelo grau de simpatia ao nativismo e variam desde quem vive o dia a dia dos CTGs até os que rejeitam a idealização da terra natal e não se identificam com a bombacha e o vestido de prenda.

Clique nos números e conheça os 5 tipos de gaúcho

Realizado entre agosto e setembro de 2017, o estudo contou ainda com a colaboração de seis especialistas em cultura e comportamento e de 28 pessoas de diferentes cidades, faixas etárias e profissões que concederam entrevistas mais aprofundadas para contextualizar as descobertas. Todas essas vozes expressam o que 11 milhões de rio-grandenses pensam a respeito de temas fundamentais como família, trabalho, consumo, valores e expectativa de futuro.

 

Uma das constatações é de que o nível de intimidade com as tradições condiciona uma série de opiniões e atitudes. Enquanto os mais tradicionalistas não cogitam viver fora do Estado e aceitam em menor grau o casamento de pessoas do mesmo sexo, por exemplo, o grupo menos regionalista não teria problemas em morar em outras paragens e admite a união gay com naturalidade.

 

O habitante do Pampa já serviu tantas vezes de mote para causos e caricaturas Brasil afora que é fácil acreditar na imagem cristalizada do homem de atitudes rudes, mas bonachão, ou na mulher de saia prendada e hábitos recatados. Mas, na vida real do campo ou da cidade, não existe um só tipo de gaúcho.

A tradição é um pilar importante da identidade no Estado, mas não há um tipo só de gaúcho. Por isso, procuramos analisar como a relação com as tradições influencia o comportamento e a visão de mundo das pessoas

diz Bruno Maletta, sócio-diretor da Consumoteca, empresa de Inovação e Pesquisa

Entre os gaúchos mais tradicionais...

Entre os gaúchos menos tradicionais...

...a renda média familiar é de R$ 5.051

...a renda média familiar é de R$ 6.712

70%

têm filhos

32%

têm Ensino Superior

48%

estão na Classe C

53%

têm filhos

61%

têm Ensino Superior

37%

estão na Classe C

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VÍDEO: o que é ser gaúcho?

Quando quisemos deixar o gaúcho de lado

Por que a identidade regional tem tanto peso no Rio Grande do Sul? Nem sempre foi assim. Nos anos 1940, quando nomes como Paixão Côrtes e Barbosa Lessa lançaram as bases do movimento tradicionalista, o Estado começava a assumir um perfil urbano, e Porto Alegre sonhava em ganhar ares de metrópole em vez de reverenciar hábitos rurais.

 

– Naquele período, a população da Capital cresceu 45% em 10 anos, queria ir ao cinema, tomar Coca-Cola, ser uma cidade grande. Não queria lembrar o gaúcho – afirma o professor de Antropologia da UFRGS Ruben Oliven.

 

No cenário nacional, o então presidente Getúlio Vargas combatia os regionalismos com o objetivo estratégico de acelerar a integração de um país multifacetado. Chegou a promover a queima simbólica das bandeiras estaduais em uma cerimônia no Rio de Janeiro, no final dos anos 1930. Com o fim do Estado Novo (1937-1945), os devotos da tradição encontraram campo livre para resgatar a identidade local. Contaram, para isso, com um protagonista irresistível: a figura do gaúcho aventureiro e implacável na guerra.

Esse gaúcho tem um papel fundamental na formação da identidade cultural rio-grandense. A imagem desse personagem foi ressignificada

sustenta o historiador José Augusto Fiorin, autor do livro Do Gaúcho ao Tradicionalista: Imagem, Identidade e Representação.

COMO PENSAMOS?

Gaúcho fiel

Gaúcho raiz

Legenda

Gaúcho não-praticante

Gaúcho exportação

Gaúcho desapegado

Qual seu orgulho em ser gaúcho?

9,7

9,5

8,6

8,5

3,6

Qual a importância das tradições?

9,1

8

6,1

4,3

2,6

59%

52%

51%

54%

20%

O gaúcho é diferente de quem nasce em outras regiões

O antigo habitante do Pampa, citado por viajantes europeus algumas vezes até como pilhador ou contrabandista, passou a ter sua reputação reconstruída a ponto de virar herói e servir de modelo a toda Terra. A Guerra dos Farrapos (1835-1845), interpretada pelos regionalistas como uma epopeia vitoriosa, é a narrativa fundamental desse ícone.

 

– O mito fundador do gaúcho vem do conflito farroupilha – reforça Fiorin.

 

Outra circunstância fortaleceu o gaúcho da Campanha como símbolo de todo o Estado. Durante a 2ª Guerra Mundial, as culturas alemã e italiana, com forte presença no Rio Grande do Sul, foram duramente reprimidas pelo governo Vargas – era proibido até mesmo falar essas línguas. Abraçar os costumes gauchescos foi uma maneira de evitar perseguições e de se integrar ao país vestindo chiripá ou saia rodada. Além disso, entre os europeus, o cavalo sempre foi sinônimo de nobreza. Assemelhar-se à silhueta do Centauro dos Pampas era uma distinção social.

O primeiro CTG foi criado em Porto Alegre. O segundo não surgiu lá na Fronteira Oeste, mas em Taquara, que é uma região de colonização alemã. Caxias, de origem italiana, é outra cidade onde foram fundados muitos CTGs

observa a professora da UFRGS e antropóloga Maria Eunice de Souza Maciel.

Fronteiras do nativismo

Enquanto a herança cultural negra foi relegada a um segundo plano e submetida, conforme Oliven, a um processo de “invisibilidade” social, a valorização do nativismo se tornou um fenômeno galopante a partir dos anos 1980. Proliferaram festivais artísticos, CTGs e lojas de apetrechos gauchescos. Uma das hipóteses é de que o avanço da globalização tenha estimulado, como efeito colateral, a reação ao “american way of life” e a revalorização dessa identidade local.

Temos um processo de mundialização da cultura. Mas o que está acontecendo? Parece que quanto mais se tenta romper as fronteiras culturais, mais as identidades regionais se fortalecem

analisa Fiorin.

Hoje, segundo a pesquisa, é na Campanha que está a maior proporção de seguidores do tradicionalismo. Na Fronteira Oeste, 50% dos entrevistados se enquadram no perfil dos Gaúchos Fiéis, enquanto esse índice cai para 27% na região de Porto Alegre. Isso não significa que os Desapegados estejam concentrados na Capital, onde somam 16% da população. As áreas de Passo Fundo e Santa Maria apresentam percentuais semelhantes.

 

Os pesquisadores também descobriram que a idade não é determinante na paixão pelos costumes. Tanto o grupo com DNA campeiro quanto o cosmopolita têm proporção semelhante de jovens na faixa dos 18 aos 34 anos: 32% no primeiro grupo e 36% no segundo.

 

Renda e escolaridade variam mais entre os dois extremos. Apenas 32% dos Gaúchos Fiéis têm Ensino Superior, mas esse número praticamente dobra entre os Desapegados, com 61%. A renda média desses últimos também é superior: R$ 6.712 contra R$ 5.051. Bruno Maletta afirma não ser possível apontar com certeza a razão dessa disparidade. O resultado pode refletir uma maior concentração de tradicionalistas no Interior, onde a renda e o nível educacional tendem a ser, em média, inferiores aos da Capital.

COMO ESTAMOS

DISTRIBUÍDOS?

Legenda

Gaúcho fiel

Gaúcho raiz

Gaúcho não praticante

Gaúcho exportação

Gaúcho desapegado

Região Metropolitana

27%

15%

24%

18%

16%

Região de Santa Maria

43%

13%

14%

12%

17%

Região de Lajeado

39%

13%

34%

12%

3%

Região de Caxias

32%

16%

40%

4%

8%

Região de Passo Fundo

44%

8%

23%

10%

16%

Região de Pelotas

41%

17%

14%

19%

9%

Fronteira Oeste

50%

14%

14%

14%

8%

De progressista a conservador

Por vezes, as diferenças entre os cultuadores da simbologia gaudéria e quem defende a modernização também resultam em tensões sociais. Muitos sem-bombacha avaliam que a rigidez cultural é retrógrada e machista, enquanto os pilchados sustentam que a flexibilização excessiva acaba por ameaçar a identidade local. Esse contraste que marca o Estado, segundo Maria Eunice, é fruto de um paradoxo:

 

– Para a cultura se tornar objeto de devoção, é preciso engessá-la. Mas os costumes não são engessados, mudam com o tempo.

 

Entre os Gaúchos Fiéis, 54% acreditam que uma das características de quem vive no Estado é ser conservador. Essa peculiaridade, na avaliação do sociólogo Gustavo Grohmann, da UFRGS, ajudaria a explicar, em parte, por que mudanças em áreas variadas como política e economia geram tanto embate hoje – e, por vezes, acabam levando ao imobilismo.

 

– Uma versão da tradição pode ter um viés conservador, mas é bom lembrar que, no passado, o Rio Grande do Sul já foi ponta de lança no cenário nacional – pondera Grohmann.

 

Mesmo no universo de quem valoriza as tradições, há divergências sobre como tratá-las. Até os anos 1990, os chamados nativistas travaram um debate público intenso com os tradicionalistas defendendo uma relação menos regrada entre os rio-grandenses e seu folclore, suas histórias, músicas e danças. Essa discussão perdeu visibilidade nos últimos anos, mas segue viva. Fiorin acredita que o debate sobre o que é ser gaúcho deverá se prolongar a perder de vista pelo Pampa afora:

O que deve ficar claro é que nenhuma sociedade moderna hoje consegue ser pura, todas são híbridas culturalmente. Não há como definir o que é certo e o que é errado, o que é e o que não é tradição.

A PESQUISA

• O levantamento realizado pela empresa Consumoteca sob encomenda do Grupo RBS ouviu 1,8 mil pessoas no mês de agosto.

• O estudo identificou a existência de cinco perfis básicos entre a população, agrupados conforme a identificação de cada um com a cultura regional.

• Os pesquisadores avaliaram ainda como a relação com a cultura local influencia opiniões e atitudes a respeito de valores, carreira e educação, dinheiro e crise, consumo, relação com marcas e a expectativa de futuro.

• Além da aplicação dos questionários, foram realizadas 28 entrevistas em profundidade com representantes dos cinco perfis, e consultados seis especialistas em história, cultura e comunicação.

EXPEDIENTE

Reportagem: Juliana Bublitz e Marcelo Gonzatto

Imagens: Fernando Gomes e Omar Freitas

Design e infografia: Thais Longaray e Thais Muller

Edição de vídeos: Luan Ott

Edição digital: Rodrigo Müzell

A identidade, os costumes e os anseios de quem vive no RS, hoje e no futuro, são traçados neste grande levantamento encomendado pelo Grupo RBS à empresa Consumoteca. Com 1,8 mil entrevistados em todas as regiões do Estado, a pesquisa mostrou que o apego ao universo do Pampa não significa que o gaúcho tenha opiniões padronizadas. O estudo, detalhado em reportagens publicadas ao longo de três semanas neste especial digital, mostra cinco tipos de gaúcho, derruba mitos e aponta tendências.

A identidade, os costumes e os anseios de quem vive no RS, hoje e no futuro, são traçados neste grande levantamento encomendado pelo Grupo RBS à empresa Consumoteca. Com 1,8 mil entrevistados em todas as regiões do Estado, a pesquisa mostrou que o apego ao universo do Pampa não significa que o gaúcho tenha opiniões padronizadas. O estudo, detalhado em reportagens publicadas ao longo de três semanas neste especial digital, mostra cinco tipos de gaúcho, derruba mitos e aponta tendências.

VÍDEO:

o que é ser gaúcho?