Descaso com acordo

ACeasa e outros órgãos de controle negligenciam, há quatro anos, acordo firmado com o Ministério Público para monitorar e melhorar a qualidade dos alimentos que abastecem quase a metade das casas e restaurantes do Estado. O pacto, que prevê a realização e emissão de laudos de até 20 testes de laboratório ao mês, jamais foi cumprido na integralidade.

Além das análises técnicas em número restrito – responsabilidade do Lacen, que faz os exames, e das vigilâncias sanitárias municipal e estadual, incumbidas das coletas –, o pacto já nasceu frustrado porque a Ceasa, ao longo dos anos, deixou de punir produtores flagrados em práticas irregulares com a suspensão da venda dos seus produtos na companhia.

Os primeiros testes de laboratório deveriam ter ocorrido em dezembro de 2012, mas nenhum foi feito. No ano seguinte, se as análises fossem feitas a pleno, poderiam chegar em 240, mas estacionaram em 143, sendo 54 consideradas comprometidas. Nos casos dos pêssegos e pimentões testados, 100% estavam impróprios para consumo humano. Todos apresentavam diferentes problemas, entre os quais quantidade de agrotóxicos acima do tolerável para o tipo de cultura. No mesmo ano, identificou-se contaminação em 36,3% das alfaces, 44,4% das cenouras, 50% dos morangos e 50% dos pepinos.

Os números preocupantes de 2013 sugerem mais rigor na fiscalização, certo? Errado. Ocorreu o contrário. Nos anos seguintes, a quantidade de análises realizadas despencou (veja no quadro abaixo).

Incapaz de fiscalizar na escala prevista, o Estado mostrou-se também tolerante com malfeitos. Produtores flagrados usando agrotóxicos proibidos no Brasil nunca sofreram as punições previstas.

EXAMES REALIZADOS PELO LACEN

2012 — Não houve coletas

200 COLETAS de alimentos na Ceasa para análise entre 2013 e 2015
50 PRODUTORES ADVERTIDOS e submetidos a cursos de boas práticas agrícolas
NENHUMA NENHUMA*

Punição com suspensão da venda de alimentos por 30 ou 90 dias ou por um ano. Segundo a Ceasa , porque não foi constatada reincidência.

Punição a três permissionários flagrados vendendo alimentos com produto proibido no Brasil, embora a previsão seja de suspensão da venda do alimento por um ano.

* Conforme a Ceasa, um caso foi tratado direto com a Justiça, outro produtor foi submetido  a curso de boas práticas e o terceiro aguarda retorno de contraprova desde 2013.

Testes feitos a pedido do GDI mostram que a situação piorou

O resultado dessa cadeia de descaso e impunidade está na mesa dos gaúchos. Os testes realizados por laboratório da UFSM, a pedido do Grupo de Investigação da RBS, em setembro de 2016, identificaram agrotóxicos proibidos ou em níveis ilegais em 45% dos vegetais analisados.

–  O TAC foi embrião para começarmos a trabalhar. A segurança alimentar é preocupação moderna, até pouco tempo atrás não se falava, não se sabia o que era agrotóxico. É recente e estamos correndo atrás – diz a promotora Caroline Vaz, coordenadora do Centro de Apoio Operacional de Defesa do Consumidor.

A justificativa para o acordo não ter engrenado recai sobre o Lacen. Diretor técnico-operacional da Ceasa, Machado diz que o laboratório do Estado não conseguiu fazer a quantia de exames combinada porque estava, seguidamente, com máquinas quebradas, sem pessoal ou com falta do material necessário.

Com base nos laudos das poucas análises realizadas, o MP assinou mais de 130 novos acordos com produtores e estabelecimentos comerciais que se comprometeram a garantir, na origem, a qualidade do produto que vendem.

– O Lacen teve dificuldades de estrutura. Estamos estudando auxiliá-lo com mais verbas dos TACs ou, quem sabe, tentar que outros laboratórios possam fazer sistematicamente as análises –  explica a promotora Caroline Vaz.

Duas metas não atingidas

De 2012 para cá, o Estado assinou dois compromissos oficiais para melhorar a qualidade dos alimentos vendidos na Ceasa. Nenhum foi cumprido.

O termo de ajustamento de conduta (TAC)

A Ceasa foi chamada, em 29 de outubro de 2012, para assinar um acordo com o Ministério Público (MP), chamado de termo de ajustamento de conduta (TAC). O objetivo era criar um programa para monitorar a qualidade das frutas, verduras e legumes vendidos pelo produtores. O pacto, ainda em vigor, prevê a realização de teste de laboratório periódicos para medir a quantidade de agrotóxicos proibidos ou acima dos níveis aceitáveis nos alimentos. O texto do compromisso deixa clara a intenção: “prevenir e reprimir abusividades”. Ficou definido que “até 20 coletas” de vegetais seriam feitas mensalmente na Ceasa e enviadas ao Laboratório Central do Estado (Lacen) para verificar se os produtos estavam envenenados. Nos casos de contaminação, o resultado seria repassado ao MP, que procuraria os agricultores para propor novos acordos ou, em caso de resistência, ingressaria com ações contra eles na Justiça. O termo definiu também punições para os vendedores da Ceasa flagrados pelo uso irregular de agrotóxicos: desde a obrigatoriedade de participar de cursos de boas práticas até a suspensão de autorização para venda de produto. O pacto, assinado por MP, Fundação Estadual de Produção e Pesquisa em Saúde, Secretaria Municipal da Saúde, Vigilância Sanitária Estadual e Crea, nunca foi integralmente cumprido.

O Acordo de Resultados

Foi criado pelo governo de José Ivo Sartori e estabeleceu metas para todas as estruturas de primeiro e segundo escalão do Poder Executivo. Em 2015, a Ceasa tinha quatro objetivos a serem alcançados, entre eles “monitorar a qualidade dos hortifrutigranjeiros comercializados, visando a identificar e corrigir o uso indevido ou inadequado de produtos agrotóxicos

através do termo de ajustamento de conduta (TAC) de outubro de 2012”. Ou seja, cumprir o pacto. O Acordo de Resultados ainda baixou a exigência do número de testes laboratoriais: deveriam ser 80 ao longo de todo o ano passado. Mesmo assim, a Ceasa fez menos da metade: 37.

Burocracia atrasa testes do Estado

O termo de ajustamento de conduta (TAC) assinado por autoridades e pela Ceasa previa até 20 testes do agrotóxico presente nas hortaliças, por mês. Em 2014, por exemplo, foram feitos 20 exames no ano inteiro. A Centrais de Abastecimento do Rio Grande do Sul (Ceasa) e o Ministério Público Estadual (MP), quando questionados, ressaltam que ocorreram dificuldades no exame das amostras coletadas, por parte do Laboratório Central do Estado (Lacen).

O órgão trabalha com cromatógrafo, máquina sofisticada, capaz de diferenciar cada produto químico presente nas frutas e verduras que são objeto de análise. Em 2015, o equipamento atravessou meses estragado, necessitando, inclusive, de peças importadas para substituição, ressalta o diretor do Lacen, biólogo Fernando Kappke:

– Ano passado, o técnico de São Paulo que conserta a máquina marcou e desmarcou três vezes a manutenção.

Diretor considera produtividade alta

Além disso, são usados insumos importados para os testes, ao custo médio de R$ 6,5 mil por mililitro, informa o Lacen. O valor médio para analise de uma amostra é de R$ 1,2 mil e, por vezes, são testados 65 produtos diferentes. Mesmo assim, Kappke diz que não faltou dinheiro, mas a burocracia do serviço público para compras e licitações emperrou o cumprimento do acordo.

– Tudo demanda justificativas detalhadas e minuciosos trâmites administrativos. Isso significa tempo – pondera.

Kappke considera que o Lacen tem alta produtividade, se levado em conta o fato de que não fez apenas análises do TAC. Também realizou testes para o Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos (Para), organizado em âmbito nacional pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

Entre 2012 e 2016, foram de 600 a 980 amostras anuais verificadas por meio do TAC (estadual) e do Para (federal).

FALHAS NA CADEIA DE RESPONSABILIDADE

Entre produção, coleta, análise e combate a irregularidades, vários órgãos deixaram de cumprir seu papel

1 — Quem deve fiscalizar resíduos de agrotóxicos proibidos ou acima dos níveis permitidos nos hortifrutigranjeiros?

CONFORME O ACORDO DA CEASA COM O MP

Ceasa

É obrigada a “colaborar para identificar, qualificar e mapear a qualidade higiênico-sanitária dos hortifrutigranjeiros”. Deveria ter maior controle e poder de fiscalização sobre os produtores e comerciantes que estão ofertando vegetais contaminados por pesticidas nas suas dependências. Tem a atribuição de suspender agricultores flagrados de forma reincidente com produtos comprometidos, mas jamais fez isso.  (Leia abaixo o contraponto do presidente da companhia em entrevista)

 

Secretaria Municipal da Saúde (SMS)

É responsável por fazer as coletas de hortifrutigranjeiros na Ceasa. Depois, a pasta é obrigada a encaminhar o material ao laboratório. Teria, ainda, de enviar os laudos sobre alimentos contaminados para o MP. O Centro Estadual de Vigilância em Saúde (CEVS) tem as mesmas atribuições, em caráter complementar ao da SMS.

 

O que diz a Vigilância Municipal

Alega que participação do órgão é em apoio ao CEVS, coletando amostras de alimentos na Ceasa e as entregando ao Lacen para exames.

 

Laboratório Central do Estado (Lacen)

É responsável pelas análises de agrotóxicos, devendo remeter os casos de contaminação ao MP. Deveriam ser feitas até 20 análises conclusivas por mês.

 

O que diz o Lacen

Alega que trâmites para compra de material são minuciosos e que a máquina de testes ficou quebrada por meses em 2015.

 

Ministério Público (MP)

Deve alertar a Ceasa sobre casos de contaminação para que os infratores sejam enquadrados. Também ajuíza ações contra os produtores que discordam das penalidades e não aceitam firmar novo pacto para uso correto dos agrotóxicos.

CONFORME A LEGISLAÇÃO FEDERAL

Centro Estadual de Vigilância em Saúde (CEVS) e a Secretaria Estadual da Agricultura, Pecuária e Irrigação (Seapi)

A Lei Federal 7.802/1989 e o decreto federal 4.074/2002 colocam os dois órgãos como fiscalizadores de “resíduos de agrotóxicos e afins em produtos agrícolas”. Deveriam fazer testes em alimentos e propor punições aos produtores infratores. O secretário da Agricultura é Ernani Polo e a

diretora do CEVS, Marilina Bercini.

 

O que diz o CEVS

Afirma que presta orientações aos produtores sobre rastreabilidade e para que busquem assistência técnica, e que envia para a Ceasa e para o Ministério Público laudos de amostras insatisfatórias para que produtores sejam notificados.

 

O que diz a Seapi

Informou que “no ano de 2016 já foram fiscalizadas 430 propriedades”. Afirma que “neste ano, 209 amostras estão sendo coletadas para análise de resíduo de agrotóxico, em torno de 20 diferentes culturas”. Acrescentou que “fiscais retornaram às propriedades rurais onde foram coletadas as amostras, e orientaram o produtor quanto ao uso correto de agrotóxico” e que pode haver “multa ao produtor que infringir o que é recomendado na legislação”.

 

Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa)

Devem fazer o mesmo que a pasta estadual.

 

O que diz o Mapa

Diz cumprir seu papel adequadamente e que, somando ações com agências estaduais, fez mais de 60 mil fiscalizações anuais.

 

O que diz  a Anvisa

Não comentou os testes da reportagem. Admitiu deficiência de pessoal para fazer monitoramento da qualidade dos alimentos, registros e reavaliações de agrotóxicos. Sobre a presença de venenos não autorizados para determinadas culturas, ponderou que a “prática, apesar de irregular, não significa necessariamente que a população encontra-se em risco”.

2 — Quem deveria fiscalizar a aplicação de agrotóxicos nas plantações?

 

Secretaria Estadual da Agricultura, Pecuária e Irrigação (Seapi)

Comandada por Ernani Polo, a pasta tem obrigação de conferir a regularidade no uso de agrotóxicos nas propriedades rurais e também as empresas que prestam esse serviço, como a aviação agrícola. A secretaria também deveria fiscalizar as lojas agropecuárias que vendem pesticidas a qualquer um que solicitar no balcão, sem exigência de apresentação da

receita agronômica. O acordo da Ceasa estendeu a tarefa de fiscalização dos produtores rurais ao Crea.

 

O que diz a Seapi

Informou que “no ano de 2016 já foram fiscalizadas 430 propriedades”. Afirma que “neste ano, 209 amostras estão sendo coletadas para análise de resíduo de agrotóxico, em torno de 20 diferentes culturas”. Acrescentou que “fiscais retornaram às propriedades rurais onde foram coletadas as amostras, e orientaram o produtor quanto ao uso correto de agrotóxico” e que pode haver “multa ao produtor que infringir o que é recomendado na legislação”.

 

Conselho Regional de Engenharia e Agronomia do RS (Crea)

Deve fiscalizar a venda de agrotóxicos em agropecuárias, checando a existência e correção das receitas agronômicas de profissional habilitado. Também fiscaliza produtores para verificar se estão aplicando os pesticidas dentro das previsões legais.

 

O que diz o Crea

Afirma que fiscais vão nas propriedades rurais cobrar nota fiscal dos pesticidas e nas agropecuárias exigir as receitas agronômicas.

ENTREVISTAS

"Não vou julgar 3 mil produtores por dois ou três"

Ernesto da Cruz Teixeira

Presidente da Ceasa desde 2015

A Ceasa está cumprindo o termo de ajustamento de conduta (TAC)?

Cumpre todas as obrigações. Cobra quando tem algum problema, ou se o Lacen (Laboratório Central do Estado) tem dificuldade, como acontece de quebrar máquina. Não ficamos parados.

 

Mas desde a assinatura do TAC, em 2012, a Ceasa nunca alcançou os 240 testes previstos por ano. Qual o motivo?

A máquina do Lacen ficou estragada uns seis meses. Mandamos várias notificações para a Secretaria da Saúde dizendo que o TAC não estava sendo cumprido. Era um problema que não pertencia à Ceasa.

 

Há algum impedimento para realização das coletas?

A Ceasa está aqui todos os dias, atacadistas, produtores, a mercadoria está aqui. É só ligarem para nossos engenheiros agrônomos: “Olha, hoje, amanhã, agora, estamos indo para a Ceasa”. Não há problema.

 

Com auxílio da UFSM, o GDI testou 20 amostras de cinco produtos coletados na Ceasa em 15 de setembro. O resultado mostrou que 45% estavam contaminadas. Qual a gravidade do caso?

Isso, para nós da Ceasa, não é uma coisa oficial. O TAC envolve o laboratório do Estado, que é credenciado. Não vou julgar o outro laboratório. Lamentamos que os produtos, às vezes, tenham problemas. Quando têm, os produtores recebem cursos, são suspensos, ou o produto sai do mercado.

 

Nas análises do Lacen de 2013, surgiu amostra de pimentão com Metamidofós, vetado no Brasil desde julho de 2012. Pelo TAC, o produtor tinha de ser proibido de vender pimentão por um ano na Ceasa, mas não foi? Por quê?

(Em 2013) não estávamos aqui.

 

Diante da relevância da Ceasa na distribuição de alimentos, a saúde da população do Estado está comprometida?

Não posso dizer que está em risco. Não vou julgar 3 mil produtores por amostras de dois ou três.

"Não vejo forma para dar absoluta certeza de que os produtos estejam bons para consumo."

FRANCISCO PAZ

Secretário substituto da Saúde do Estado

As ações referentes ao termo de ajustamento de conduta (TAC) da Ceasa estão falhando?

Tem de ser mais, não tenho dúvidas. Mas está se fazendo. E o TAC é um termo entre entes públicos que fizeram pacto para atingir um resultado. Se não estão, bom, tem de ver por quê. Por que o Lacen (Laboratório Central do Estado) não fez mais exames? Porque não tem condições.

 

Nossas amostras apresentaram 45% de contaminação. Do ponto de vista da saúde das pessoas, isso é um risco?

Pode ser prejudicial. O morango é um dos produtos que mais necessita do uso de defensivos para não estragar. Esse pessoal que não tem morango identificado para rastreabilidade é incontrolável. Regra prática: não comer morango sem rastreabilidade. Isso garante? Não. Tu tem de saber que comendo moranguinho, estás ingerindo agrotóxico sempre. Podem ser mais ou menos graves? Podem. Só que não vejo forma adequada para dar absoluta certeza de que todos os produtos que tu estejas consumindo sejam bons para consumo. O único indicativo são os orgânicos. Mas não se pode proibir o consumo de alimentos com agrotóxicos se o país permite a venda deles com mecanismos de controle muitos frouxos. Se despejam milhares de toneladas (de pesticidas) no solo gaúcho por ano. Aí, não faz diferença comer um moranguinho contaminado. Toda a nossa cadeia alimentar tem indícios de resíduos de agrotóxicos.

 

A legislação é branda?

Tem de ser aprimorada. Mas certa vez, no tempo em que estava na direção do CEVS (Centro Estadual de Vigilância em Saúde), fui a Passo Fundo e perguntei a agricultoras se sabiam que agrotóxico fazia mal. A resposta de uma delas foi de que deveria se fazer um trabalho para o consumidor não ser tão exigente. Em casa, elas (produtoras) têm horta sem agrotóxicos, mas para vender no supermercado na cidade grande, (o alimento) tem de ser bonito. E aí, se coloca veneno.

Uso de agrotóxicos ainda é imprescindível para manter agricultura em larga escala

Anecessidade de produzir alimentos em larga escala, a preços mais baixos, e o clima tropical do Brasil, propício ao desenvolvimento de resistências pelas pragas, estão na base da justificava para a aplicação de agrotóxicos nas lavouras ainda ser imprescindível.

Em décadas de hegemonia deste modelo de produção, as argumentações sempre estiveram relacionadas à necessidade de evitar o risco de desabastecimento da crescente população e a fome. Além de a aplicação de pesticidas combater outros seres vivos que tentam sobreviver no campo se alimentando de plantas, como os insetos.

Diretora de Segurança e Produto da Bayer na América Latina, Carla Steling faz uma analogia entre a aplicação de agrotóxicos e o uso de medicamentos pelos seres humanos. Assim como os indivíduos precisam, frequentemente, tomar fármacos para atacar doenças, o mesmo valeria para as plantações, ameaçadas por insetos, fungos, ácaros e ervas daninhas. Caso contrário, os predadores das lavouras poderiam comprometer grande parte das produções, trazendo consequências para o abastecimento.

– Com a quantidade de vírus que temos por aí, não podemos abrir mão de antibióticos, analgésicos. Da mesma forma, não podemos abrir mão do defensivo para combater as pragas – justifica Carla.

Ela ainda explica que o clima do Brasil, com calor e chuvas em boa parte do ano, exerce papel importante para elevar a aplicação dos pesticidas nas lavouras.

– As pragas sempre vão existir em todos os lugares. O que acontece é que elas desenvolvem maiores resistências e surgem em abundância por causa do clima tropical. A questão não é acabar com o defensivo, mas continuar desenvolvendo novos porque as resistências estão aí. O ponto é fazer o uso responsável e correto – avalia Carla, alertando sobre a necessidade de seguir fielmente as indicações de aplicação dos químicos.

 

"Revolução Verde" pós-guerra firmou padrão de produção

O modelo agrícola atual, incrementado pelas tecnologias de fertilização e por pesquisas sobre sementes e mecanização do campo, entrou em vigor após a Segunda Guerra, em um contexto de Guerra Fria, no movimento que foi batizado de “Revolução Verde”. Essa lógica, oferecida à época pelo então bloco capitalista, previa o aumento da produtividade das plantações e o crescimento da oferta de alimentos a preços mais baixos.

–  Uma mudança de modelo levaria décadas. O atual se viabilizou porque teve investimento massivo, inclusive do poder público. Todas as grandes empresas são subsidiadas. Os agrotóxicos têm isenção de até 60% de ICMS, dependendo do Estado, além do IPI e outros impostos. Há uma série de isenções para viabilizar. Também houve pacote de extensão rural para que se fizesse uso dessas tecnologias. Foi por isso que esse modelo vingou em um processo longo – explica o engenheiro de alimentos Victor Pelaez, doutor em Economia e professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR).

Em resposta a questionamentos do Grupo de Investigação da RBS (GDI), o Ministério da Agricultura (Mapa) avalizou a concessão dos benefícios a indústrias de agrotóxicos como parte da política de Estado.

– Esse tema diz respeito a redução do custo desse produto (agentes químicos), responsável por um impacto de 20% em média no custo de produção da agropecuária brasileira. Os incentivos fiscais, a princípio, reduzem este impacto para a produção agrícola – explicou o Mapa, indicando que esse barateamento chega ao preço final do alimento.

O professor Pelaez avalia que o “risco da fome” ainda é muito presente no discurso de justificativa do uso predominante de agrotóxicos. Para ele, a consolidação de qualquer alternativa menos danosa à saúde – seja a produção orgânica ou o controle biológico de pragas – dependerá de investimentos e políticas públicas de longo prazo.

– Não existe só um modelo possível. Existem vários. O que vai viabilizar é a decisão e o investimento. A tecnologia não é neutra. Ela atende a interesses que podem ser públicos ou privados – destaca Pelaez.

Em Pernambuco, acordo funcionou

Os resultados preocupantes em amostras de tomate, mamão e morango coletadas para o Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos (Para) da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), em 2002, que poderiam ter sido encarados como mera estatística, motivaram nova postura no combate ao uso irregular de veneno nos alimentos em Pernambuco.

Por meio de um termo de ajustamento de conduta (TAC) com o Ministério Público (MP) daquele Estado, os supermercados começaram a fazer mensalmente testes laboratoriais de hortifrutigranjeiros para verificar o controle de qualidade. O acordo prevê o envolvimento de grandes redes e que cada uma banque as avaliações.

– Entendemos que os supermercados são corresponsáveis pelo que colocam a venda – explica o diretor Agência Pernambucana de Vigilância Sanitária (Apevisa), Jaime Brito de Azevedo.

O pacto começou com oito supermercados. Hoje, abrange quatro grandes redes e a Ceasa pernambucana, por onde passam 90% dos hortifrútis consumidos por lá. Nos supermercados são coletadas 30 amostras por ano, e na Ceasa, 20 por mês.

No Rio Grande do Sul, um TAC firmando em 2012 entre MP, Ceasa, órgãos de vigilância sanitária do Estado e do município de Porto Alegre previa as mesmas 20 análises mensais, mas desde a assinatura, nunca atingiu a meta e o objetivo de reduzir o uso inadequado de agrotóxicos nos alimentos vendidos na maior central de distribuição gaúcha. Testes realizados em reportagem do Grupo de Investigação da RBS (GDI) comprovaram contaminação em quase metade de 20 amostras colhidas na Ceasa em setembro e mostrou que as punições previstas no acordo não são aplicadas.

 

Arrecadação de tarifa pequena garante custeio dos testes

Segundo o diretor técnico e operacional da Ceasa de Pernambuco, Paulo de Tarso, quando o TAC foi estabelecido, 70% das amostras tinham agrotóxicos acima do permitido ou proibido para a cultura. Hoje, caiu para 20%. Com o rigor, ele afirma que os produtores e as cooperativas também começaram a rever suas práticas:

– São 80% dos produtos aptos. É um trabalho contínuo e que se você relaxar ou abrir mão, tende a voltar ao que era.

Cada veículo que chega na Ceasa paga taxa de R$ 1 para entrar no local, o dinheiro é usado para bancar os exames nos alimentos.

– Se for encontrado algum índice insatisfatório, o produtor é proibido de entrar na Ceasa.Se a Ceasa não cumprir a regra, paga multa de R$ 1 mil por dia – acrescenta Azevedo.

O promotor de Justiça do Consumidor do Recife, Maviael de Souza Silva, classifica a Ceasa como a principal parceira do TAC.

Se a coleta é bem feita lá, é possível proteger grande parte da população:

– Alguns produtos podem ser alvo de constante investigação. Um tempo atrás foi o pepino e depois o pimentão, que vinha com níveis escandalosos de agrotóxicos – exemplifica Maviael.

Para voltar a comercializar um produto banido, é o próprio produtor quem paga a análise laboratorial para comprovar que os itens não possuem mais substâncias proibidas ou acima do permitido para a cultura.

– É um programa de alto custo, mas bancado pelos empresários, e que a Ceasa arrecada para pagar. E esta penalidade de retirar o produto do mercado é fatal, tem repercussão direta porque o produtor para de vender. A multa é pesada se a Ceasa ou o supermercado descumprirem – justifica Azevedo.

O empenho para banir o excesso de agrotóxico dos alimentos não evita que todos os meses sejam encontrados produtos com excesso de veneno ou itens proibidos para a cultura. Por isso, segundo o diretor da Apesiva, o trabalho precisa ser ininterrupto:

– É uma briga constante, que nunca acaba. Todo mês tem produto que sai do mercado.E são produtos do Brasil todo. Fazemos a coleta, é provado, sai, volta, coletamos mais uma vez, coletamos de novo. É assim, e acho que isso nunca deve parar. O governo tem pouco custo e um resultado interessante.

EXAMES REALIZADOS PELO LACEN

 * Por enquanto, o Lacen entregou apenas os resultados das batatas, todos satisfatórios. O restante, mesmo que algumas coletas tenham sido feitas no início do ano, segue engavetado.

Duas metas não atingidas
50 PRODUTORES ADVERTIDOS e submetidos a cursos de boas práticas agrícolas 200 COLETAS de alimentos na Ceasa para análise entre 2013 e 2015
NENHUMA
NENHUMA*
FALHAS NA CADEIA DE RESPONSABILIDADE CONFORME O ACORDO DA CEASA COM O MP
CONFORME A LEGISLAÇÃO FEDERAL
ENTREVISTAS