Legislação é omissa
e fiscalização falha
Alegislação brasileira, embora reúna uma série de normas a serem respeitadas, ainda atua mais no papel de vilã do que de mocinha para o enredo que termina com resíduos de agrotóxicos nos alimentos que você e sua família comem diariamente. Outra protagonista é a falta de fiscalização.
O regramento básico no Brasil nasceu em 1989 e, depois, houve detalhamento em decreto de 2002. Existe previsão de prisão para quem vender ou aplicar agrotóxicos em desconformidade com a lei. A venda dos agroquímicos somente poderia ocorrer com a apresentação da receita agronômica. Nas relações com o consumidor, é considerado crime vender alimentos contaminados. Apesar desse conjunto de regras, a fiscalização é precária:
– O que falta é fiscalização efetiva. Isso gera sensação de descontrole absoluto no uso e no comércio de agrotóxicos. Os órgãos administrativos, como a Anvisa, agem demoradamente – avalia o promotor de Justiça Daniel Martini, integrante do fórum gaúcho de combate aos impactos dos agrotóxicos.
A falta de controle é ampliada pela série de omissões na legislação, que permite, por exemplo, registro de agrotóxicos por tempo indeterminado. Só há reavaliação se surgirem estudos apontando risco ao homem ou ao ambiente. Atualmente, existem agroquímicos liberados no Brasil que foram registrados há décadas, quando pouco se sabia sobre os efeitos na saúde. E os custos da revisão técnica dos agrotóxicos recaem sobre o poder público, diferentemente do que ocorre nos Estados Unidos ou na União Europeia.
Normas ignoram efeitos do consumo simultâneo
Há ainda incentivos fiscais às indústrias de agrotóxicos como redução de ICMS, isenção de IPI e Cofins, com cobrança de impostos menores do que no setor dos medicamentos.
– Isso é um absurdo. Alegam que o alimento vai ficar mais barato, mas, às vezes, a economia não é repassada ao consumidor – afirma o bioquímico e sanitarista José Agenor Alvares da Silva, ex-diretor da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) entre 2007 e 2013, e ex-ministro da Saúde por breves períodos nos governos petistas de Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff.
A liberação de defensivos agrícolas depende de análises de impacto toxicológico em cobaias. Os testes, sob responsabilidade dos fabricantes, são feitos com uma substância de cada vez, em animais como ratos, coelhos ou cachorros. É avaliada a dose máxima para evitar danos aos rins, fígado, alterações imunológicas e no sistema nervoso. O problema é que os alimentos que consumimos trazem combinação de diferentes agentes químicos. E os impactos disso não são estudados.
– As pessoas comem mais de um alimento e, em geral, eles contêm mais de um componente químico. Essa mistura não é estudada nos animais de laboratório. Quando a empresa informa a dose segura de ingestão, é só para um tipo de veneno – adverte a biomédica Karen Friedrich, doutora em Ciências com ênfase em Toxicologia, professora do programa de pós-graduação do Instituto Nacional de Controle de Qualidade em Saúde da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
Engenheiro de alimentos Victor Pelaez, da Universidade Federal do Paraná (UFPR), complementa:
– É uma falha grave, e não só no Brasil. Atualmente, é tema de discussão nos EUA por causa do efeito sinérgico (simultâneo) no organismo. Os resultados dessa mistura ninguém sabe.
As normas vigentes sobre o período de liberação para registro, produção e uso de agrotóxicos.
BRASIL
• O tempo de validade é uma das falhas na legislação. Uma vez aprovado no Ministério da Agricultura, na Anvisa e no Ibama, o agrotóxico recebe registro eterno. Só passará por reavaliação caso surja estudo científico que demonstre que o agroquímico representa risco real para a saúde da sociedade.
• É a Anvisa que tem de pagar pesquisas sobre os riscos de um princípio ativo em reavaliação.
•O processo é lento. Em 2008, a Anvisa abriu rechecagem dos agrotóxicos derivados de Abamectina, Carbofurano, Glifosato, Tiram e Paraquate. Oito anos depois, não há conclusão.
ESTADOS
UNIDOS
• Os agrotóxicos registrados precisam ser reavaliados a cada 10 anos. O ônus de provar que aquele produto não passou a ser intolerável aos padrões atualizados da sociedade é das empresas, que precisam arcar com os custos dos testes. A cada novo processo, o registro de determinado agrotóxico pode acabar sendo cassado.
• As taxas cobradas são mais caras do que no Brasil. Atualmente, estão em US$ 630 mil (R$ 2.079 milhões). Por aqui, equivalem a US$ 20 mil (R$ 66 mil).
UNIÃO
EUROPEIA
• A cada 15 anos, as empresas precisam pedir novamente o registro dos produtos agrotóxicos. Entram em período de reavaliação e, ao final, podem ter o registro
de utilização cassado. O ônus da prova, assim como nos Estados Unidos, é das fabricantes. As multinacionais do setor precisam provar cientificamente que os seus produtos não passaram a ser intoleráveis e de alto risco para os padrões atualizados da sociedade.
Falta de estrutura emperra processos de reavaliação
As fragilidades e deficiências no controle de agrotóxicos no país também são frutos de escassez estrutural. Enquanto nos Estados Unidos 850 servidores atuam em organismos reguladores, no Brasil, o número não passa de 50. Aí se incluem o Ministério da Agricultura (Mapa) – responsável por medir a eficiência do agrotóxico na lavoura –, a Anvisa – que avalia os efeitos toxicológicos na saúde da população – e o Ibama – que estuda o impacto de agrotóxicos no ambiente.
Enquanto isso, as importações de agrotóxicos cresceram 700% entre 2000 e 2013. Há 1,5 mil ingredientes aguardando registros na Anvisa e desde 2008 a agência não consegue reavaliar seis componentes, já proibidos em seus países de origem. Até isso ocorrer, eles seguem sendo utilizados.
O engenheiro de alimentos Victor Pelaez, doutor em Economia e professor da Universidade Federal do Paraná, lembra que, em alguns casos, o fabricante contesta judicialmente a reanálise do produto, atrasando ainda mais a retirada do mercado.
– Os recursos geram efeito protelatório. Isso é gravíssimo. O Paraquate, por exemplo, herbicida extremamente tóxico, está proibido nos EUA, na União Europeia e até na China, e a gente continua produzindo – reclama.
Mudanças na lei ameaçam mecanismos de controle
Outras iniciativas padecem. O Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos (Para) divulgou, depois de quatro anos parado, dados do período de 2013 a 2015. Em 2012, foi lançado o Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Planapo), política interministerial que pouco avançou. No ano seguinte, foi anunciado o Programa Nacional de Redução de Agrotóxicos (Pronara), que teve sua inauguração adiada três vezes e até hoje não saiu do papel.
Além de falhas na lei, a situação pode se agravar, segundo especialistas, com a aprovação de projeto que retira do Ibama e da Anvisa o poder de veto sobre o uso de agrotóxicos, centralizando a responsabilidade no Mapa.
– Esse projeto é um desastre. Será uma tragédia se for aprovado – critica Luiz Cláudio Meirelles, ex-gerente-geral de toxicologia da Anvisa, que atuou no órgão por 13 anos e hoje é ligado à Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco).
Confira as principais diretrizes da legislação:
PONTOS POSITIVOS
DEFINIÇÃO COMO CRIME
• Os artigos 15 e 16 da Lei 7.802 preveem penas de dois a quatro anos de prisão em caso de uso inadequado de agrotóxico. O técnico agronômico também pode ser responsabilizado.
• Somente será liberado no país o agrotóxico que contar com antídoto. Além disso, testes em animais avaliam a possibilidade de os pesticidas fazerem mal aos seres humanos.
AUTONOMIA PARA RIGOR NOS ESTADOS
• A norma permite que Estados e municípios tenham leis mais restritivas. Exemplo é a lei gaúcha, que proíbe a concessão de registro para uso no Rio Grande do Sul aos agrotóxicos que estão com aplicação vetada nos países de origem. É por isso que princípios ativos como o Carbendazim estão proibidos no Estado e liberados no restante do país.
PONTOS NEGATIVOS
FALTA TRANSPARÊNCIA
• O sistema é pouco transparente e os critérios para autorização de agrotóxicos seguem o mesmo caminho. A lista da Agência Nacional de Vigilância Sanitária dos pedidos de registro de novos agroquímicos no Brasil traz apenas números de protocolo.
ASSOCIAÇÃO NÃO É ESTUDADA
• Outra fragilidade – presente nas leis do mundo inteiro – é o não cruzamento dos efeitos no ser humano. Por exemplo: para liberar o agrotóxico A, são feitos testes em separado dessa substância. Mas, na hora de aplicação na lavoura, o agente químico A é misturado com agentes químicos B, C e por aí vai. O resultado dessas combinações é desconhecido.
SIGILO COMERCIAL
• Na maioria dos países, e aqui no Brasil não é diferente, a lei permite que as indústrias, sob alegação de segredo comercial, mantenham por anos em sigilo os resultados das pesquisas que investigam os efeitos de um agrotóxico na saúde e no ambiente.
EMPRESAS FORNECEM OS LAUDOS
• Com fiscalização precária, os órgãos de controle brasileiros recebem das indústrias os laudos sobre impacto dos agrotóxicos. O Estado acaba se contentando com as informações que estão no papel. Não são feitas análises posteriores para atestar a conformidade do produto e a veracidade dos dados entregues pela parte interessada.