Publicado em 29 de abril de 2016

Motivadas pela insegurança, pela crise econômica e pelo acirramento dos conflitos políticos, famílias brasileiras mudam-se para a Flórida. ZH vai aos EUA e mostra o que elas encontraram e do que sentem falta

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Letícia Duarte

leticia.duarte@zerohora.com.br

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Andréa Graiz

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Ticiano Osório

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Diogo Perin

Quando perguntam se deixou mesmo Porto Alegre para morar nos Estados Unidos com a família, o empresário Mario Magalhães, 57 anos, costuma explicar que não é bem assim:

– A gente mora num lugar que faz fronteira com os Estados Unidos, a Flórida.

Entre praias de água cristalina e torres comerciais, o destino mais popular dos latinos que partem rumo ao sonho americano não se revela, afinal, tão americanizado. O  Consulado-Geral do Brasil em Miami estima que a comunidade brasileira na Flórida esteja entre 300 mil e 350 mil residentes – um crescimento significativo em relação a 2014, quando somavam 250 mil.

A presença de compatriotas é tanta que o gaúcho Alessandro Menezes, 35 anos, por exemplo, está há seis meses em Miami e ainda não aprendeu a falar inglês. O idioma quase não faz falta. Tampouco os recém-chegados precisam mudar o paladar. É fácil comer feijão e arroz em restaurantes brasileiros – e até comprar erva-mate em supermercados especializados.

Mesmo que o turista insista em se comunicar em inglês, é comum os atendentes locais responderem em espanhol. O aporte crescente de brasileiros dissemina também o uso do português neste enclave temperado pelo sotaque latino, abrigo histórico de dissidentes cubanos, venezuelanos e haitianos, entre outros.

Para entender os motivos que conduziram Mario, Alessandro e outros tantos brasileiros para lá e conhecer como vivem na parte norte do Atlântico, ZH passou cinco dias na Flórida. Em Miami e Orlando, entrevistamos famílias que deixaram suas casas e seus negócios no Rio Grande do Sul recentemente em busca de uma nova vida. Miami pode ter virado um símbolo de exílio político voluntário a partir das últimas eleições presidenciais – personalidades como Lobão declararam que, em caso de vitória petista, se mudariam para lá –, mas questões econômicas e a busca por mais segurança foram os motivos mais repetidos pelos entrevistados para a partida.

Ao menos por enquanto, nenhum deles pensa em voltar.

Dono de franquias da Hugo Boss fechou lojas no Rio Grande do Sul

Da sacada do oitavo andar, o empresário Hugo Ribeiro, 47 anos, contempla a vista de cartão-postal e quase não acredita que, a partir de agora, ela é sua:

– Surreal o lugar onde eu vim parar!

À esquerda, o azul cristalino de um mar sem ondas contrasta com o verde dos coqueiros que circundam condomínios com construções enfileiradas de teto baixo em tons pastéis, alguns com telhados horizontais pintados para harmonizar com a vegetação. Mais à frente, dois espigões envidraçados emergem da paisagem tropical da Ilha de Key Biscayne, que se liga ao centro de Miami pela ponte Rickenbacker Causeway, numa estrada de oito quilômetros sobre o mar.

Hugo e os dois filhos – Filippo, sete anos, e Giovanna, 14 –, chegaram com a mudança no dia anterior à visita de ZH, estabelecendo-se no apartamento mobiliado que alugaram no condomínio Key Colony, que reúne 1,2 mil unidades e dispõe de comodidades como 12 quadras oficiais de tênis. Do Aeroporto Internacional de Guarulhos, de onde partiram, postaram no Instagram uma foto com as oito malas que carregavam. Naquele 4 de abril, despediam-se do Brasil rumo à nova vida.

– Go Miami! – legendou Hugo.

A mudança começou a ser gestada em 2013, quando o empresário decidiu se desfazer da rede de lojas Hugo Concept, com grifes como Hugo Boss, VR Menswear e Calvin Klein, que administrava no Rio Grande do Sul e no interior paulista. Nos bons tempos, chegou a ter 22 pontos de venda. O cenário de crise o levou a repensar o rumo dos negócios. Com lucros menores ano a ano, achou que era hora de sair do mercado fashion. Diante do desafio de recomeçar, teve o lampejo: por que não se reinventar nos Estados Unidos? Começou a vender as unidades, ficando apenas com três, sendo duas no Estado: uma em Porto Alegre e outra em Novo Hamburgo. Com visto de estudante, matriculou-se em curso preparatório para aprimorar o inglês de negócios. Até o final do ano, em parceria com o amigo Beto Biscaia, que organiza as mais badaladas festas de Réveillon em Miami, pretende solicitar o visto L1, de trabalho, e entrar no ramo de concierge e eventos voltados ao público executivo.

– Prometi para mim mesmo que não iria mais abrir loja no Brasil. Não sou daqueles que acham que não há oportunidades no nosso país. Mas, no Brasil, pra você se dar bem, tem que ser um case de sucesso.

Nos Estados Unidos, quem faz o papai-e-mamãe bem feito já se dá bem – compara.

Hoje, ele diz que sente “preguiça do Brasil”. Enfadou-se de tanta burocracia, da alta carga tributária (“eu pago 13% de ICMS antecipado no Rio Grande do Sul; nos Estados Unidos, só paga imposto se tiver lucro”), dos processos trabalhistas (“o cara trabalha 12 meses ganhando R$ 1 mil por mês, e, no final, entra com um processo e ganha

R$ 18 mil na Justiça”).

–  A gente faz mágica no Brasil. Tive uma carreira maravilhosa, chega a ser triste que um cara como eu não consiga mais trabalhar lá – lastima.

As bagagens nem foram totalmente desfeitas nesta manhã de terça-feira, 5 de abril, a primeira como moradores permanentes, quando o trio recebe a equipe de ZH. Filippo está ansioso para descer e aproveitar. Antes, os três devem sair para almoçar e seguir para uma consulta médica obrigatória para o ingresso escolar. As aulas só começam em agosto, mas nos próximos dias já terá início a adaptação.

– Aqui tem mar, dá pra surfar, eu posso ir pra Disney todo final de semana, posso ir pra escola de bicicleta, posso descer sozinho lá embaixo – empolga-se o menino de cabelos dourados, empilhando as vantagens que associa à nova vida, com o sorriso deixando à mostra a janelinha banguela na arcada superior.

Por “conceito”, Hugo diz que matriculou os filhos numa escola pública. Antes, Filippo e Giovanna estudavam em um dos colégios mais requintados de São Paulo, o Santo Américo. A soma das duas mensalidades custava de “R$ 10 a R$ 12 mil”.

– O que mais pesa é que a gente não tem problema só econômico no Brasil, tem problema de educação, de valores. Lá, tinha um clima de “eu posso tudo, não preciso trabalhar, não preciso ser bom”. Não quero isso para os meus filhos – diz ele.

Com a mudança, Hugo quer que os filhos tenham a experiência de estudar com pessoas de diferentes perfis, podendo conviver tanto com o “filho do cara da casa de US$ 60 milhões até com o filho do zelador”.

– O ouro americano é a escola pública, é uma escola maravilhosa. O dono da Amazon estudou numa escola pública – entusiasma-se.

No início, Giovanna, 14 anos, resistiu ao plano de morar nos Estados Unidos. Não queria deixar a turma de amigos.

– Agora já tô amando – sorri, de óculos escuros na varanda, ao lado do pai, do irmão e do único membro da família que já tem o green card: o buldogue francês Buddy, que nasceu em Nova York há três anos.

Hugo e a mãe de Giovanna e Filippo estão divorciados, mas, por causa das crianças, fizeram um acordo para migrarem juntos. Até então, a família morava num condomínio no Morumbi, em São Paulo, com vigilância constante pelo medo da violência. Em Key Biscayne, apreciam o “conceito de cidade do interior ao lado da metrópole”. Cercada de áreas de preservação, a ilha está a 15 minutos da movimentada Miami Beach. Hugo sonhava em morar no local desde que ficou hospedado anos atrás ali durante um torneio de tênis. É o mesmo complexo onde mora o piloto brasileiro Christian Fittipaldi. Para pagar o aluguel no novo condomínio, Hugo alugou quatro imóveis que tem no Brasil.

– A ostentação está fora de moda. Estou vindo para trabalhar pesado. Aprendi com um advogado que está aqui há cinco anos, muito bem-sucedido, que disse: “O status do Brasil ficou lá. Aqui você não é o cara da Hugo Boss” – conta, enquanto toma um café americano em uma lancheria do condomínio.

Se quisesse, o empresário também poderia pedir um pão de queijo fresquinho. A oferta da iguaria brasileira foi uma reivindicação de moradoras mais antigas, como a vizinha Gabriela Figueiredo Kersting, 41 anos, que veio de São Paulo há três anos. Ela e outras quatro amigas brasileiras criaram um grupo de WhatsApp para manter contato. Com o desembarque constante de novas conterrâneas, hoje o Meninas de Key Biscayne conecta 80 brasileiras fixadas na ilha. Trocam informações sobre todo tipo de serviço, desde dicas de babás e pediatras para os filhos até as condições do trânsito na região.

– Tem muitos brasileiros por aqui, e estão chegando cada vez mais – atesta Gabriela.

Na hora do almoço, Hugo e os filhos percorrem os jardins do condomínio a pé e seguem em direção a um bistrô localizado a cinco minutos de casa. Celebram como uma conquista a segurança de andar na rua.

– O único delito aqui no ano passado foi o roubo de uma bicicleta – relaxa Hugo, que antes acompanhava relatos periódicos de arrastões em São Paulo pelo grupo de pais da escola.

No caminho até o restaurante, o empresário conta que só participou da última grande manifestação política pelo impeachment de Dilma na Paulista. Diz que não é “tão radical”, nem acha que apenas o PT é culpado pela corrupção no Brasil, mas sentiu que precisava “marcar presença”: – Não dá pra ficar reclamando só no sofá.

Acompanhado pelos filhos Giovanna e Filippo, o empresário Hugo Ribeiro fez a mudança para  Miami no início do mês

“Não tenho mais paciência praquela coisa que nunca vai, nunca acontece”

O fotógrafo Dede Fedrizzi, queixa-se das falcatruas, da burocracia e da “burrice generalizada” que  enxerga no Brasil

Embora não seja o único motivo, a ebulição política no Brasil, que incluiu Miami na rota das discussões polarizadas entre coxinhas e petralhas, tem contribuído para reforçar o interesse pela migração. Com quase 20 mil curtidas no Facebook, a comunidade Brasileiros em Miami virou um ponto de informações para gente que nunca tinha pensado no assunto. Um dos fundadores da página, Wanderson dos Santos, 33 anos, observa que a procura cresce na mesma proporção em que se avolumam as manifestações no Brasil:

– Cada vez que tem acontecimento político duplica o número de mensagens logo em seguida, é automático, como uma snowball (bola de neve).

Há 10 anos em Miami, Wanderson diz que recebe de cinco a 10 mensagens por dia com pedidos de informações. E observa que é comum entrarem em contato sem saber o básico.

– Muitos não sabem nem que precisa de passaporte, visto, não sabem que o diploma não vale – espanta-se.

Nos quatro grupos de WhatsApp administrados por Wanderson, pelo menos 400 pessoas que já moram em Miami ou estão se organizando para se mudar também se mantêm conectadas. Entre piadas, mensagens de autoajuda e discussões sobre os escândalos de corrupção, gente de diferentes lugares do país compartilha o mesmo objetivo de sobreviver fora do Brasil.

– É uma Babilônia – define Wanderson, que trabalha como produtor de programas de TV e vive em Brickell, na área comercial e financeira da cidade.

A Miami que paira sobre o imaginário coletivo, com suas praias turísticas e seus centros comerciais, oculta rotas menos óbvias. Uma das regiões mais descoladas é o distrito de arte de Wynwood, onde muros e paredes viram obras de arte a céu aberto. Repleta de antigos galpões e armazéns abandonados, que até 2009 serviam de abrigo à criminalidade e ao tráfico, a área foi revitalizada com a participação de artistas como OsGemeos, irmãos grafiteiros de São Paulo, que emprestaram seu colorido ao concreto. Os grafites que decoram muros e paredes estão espalhados pelos quarteirões, onde galerias de arte disputam espaço com bares e feirinhas de artesanato.

Numa tarde nublada de sábado, 2 de abril, o fotógrafo Dede Fedrizzi, entra na galeria San Paul, na Segunda Avenida, administrada por uma amiga de São Paulo. Natural de Porto Alegre e nos últimos 10 anos estabelecido em São Paulo, Dede se mudou há três meses para Miami. Agora circula à procura de espaços para duas exposições, uma sobre arquitetura de favelas e outras de retratos indígenas, com imagens feitas no Brasil. O ambiente criativo que pulsa em Wynwood foi um dos ímãs que o atraíram para lá.

– Chegou num ponto em que eu não consigo mais criar no Brasil. Minha cabeça lá tá lotada de falcatrua, roubalheira… Não sobra espaço. Resolvi sair pra fazer um cleaning up de novo. Meu HD tá cheio. Quero tirar, ter espaço para criar  – diz ele, que tem o visto O1, direcionado a indivíduos com “habilidades extraordinárias”, seja em artes, ciências, educação, negócios ou esportes.

Dede nunca se sentiu preso a um território. Aos 16 anos, saiu de casa como mochileiro e foi conhecer o Marrocos. Na volta, começou a fotografar moda em São Paulo. Já morou na Suíça, na Espanha, na Alemanha, na Grécia e passou 15 anos em Nova York, até ter “enjoado” e sentido vontade de voltar para o Brasil. Era o período em que o país crescia e captava atenção mundial. Pensando que seria o regresso definitivo, chegou a devolver o green card, que obteve depois de ser casado com uma americana. A temporada brasileira durou 10 anos.

– Eu não tenho mais paciência pra burrice, praquela coisa que nunca vai, nunca acontece, nunca tudo. Você tem duas escolhas lá: ou você não se importa e vira um zumbi, vive tua vida, não lê jornal, não vê TV, não dá opinião. Ou você se importa, e eu não tenho a opção de não me importar, minha família é toda de jornalistas. Meu plano era me enraizar, ficar. Mas aí o país te expulsa. Chega uma hora em que você pensa: deu! E Miami é o caminho mais natural, mais suave, porque tem muita gente do Brasil, da América do Sul.

Enquanto estava no país, Dede acompanhou todas as manifestações verde e amarelas na Paulista. Durante as eleições, chegou a fazer uma campanha com um amigo distribuindo narizes de palhaço. Compraram “milhares de sacos de narizes” e saíam pelas ruas entregando. Mesmo assim, diz que não é ligado a nenhum partido.

– O Brasil não tem ideologia. Não tem esquerda, direita, são maquiagens que eles dão para encobrir roubalheira. Não existe partido de direita, esquerda, centro. Existe um bando de gente desqualificada que tá acabando com a vida do país e de um monte de gente – desilude-se.

Mesmo longe do Brasil, não consegue se desligar dos acontecimentos. Define-se como “viciado em notícias”. E acha que a situação do país virou uma espécie de novela, ou um “grande Big Brother”.

– Todos os amigos brasileiros que moram fora acompanham, e a gente conversa. Meu, você viu o que aconteceu hoje? Quem vai ser preso amanhã?

O que vão descobrir de mais roubalheira? Mas é bem melhor a sensação de acompanhar sem estar afetado por isso. Eu me importo com quem está lá. Mas a sensação de não depender daquilo é muito boa.

A burocracia do Brasil também o desanima. Lembra que foi contratado pela TV Cultura para um trabalho, em que precisava fazer um cadastro para receber. A lista de documentos exigia 15 certidões, que seu contador levou mais de um mês para juntar.

– Aqui o sistema te ajuda a ir para frente. Se você quer trabalhar, montar um business, tudo é feito pra facilitar. O juro é baixo, a legislação é simples. No Brasil, eles põem dificuldades para ver se você consegue mesmo. Será que você vai conseguir ultrapassar todas essas barreiras? Então o cara que tem uma empresa lá é um herói. Tudo é feito para dificultar. É dessa burrice que eu falo.

Indignado, Dede contesta o rótulo de coxinha, frequentemente associado a brasileiros que se mudam para Miami.

– O brasileiro ainda tem que aprender muito sobre preconceito. Essa coisa de coxinha é ridículo.

Na verdade, quem pensa é coxinha. E quem não tem educação e não sabe nem ler e escrever é bacana?

É só você ter uma opinião contrária...

A única coisa de que sente falta é dos amigos.

– Mas do jeito que a coisa anda, os amigos vão começar a vir um por um. Daqui a pouco vai estar todo mundo aqui – brinca.

Dede Fedrizzi busca inspiração no distrito de arte de Wynwood

Em condomínio de luxo em construção, um a cada três compradores é brasileiro

Quando a tarde cai, Dede e mais três brasileiros se reúnem para o happy hour em um bar concorrido nos fundos da San Paul Gallery, com fila para entrar e cerveja vendida em copos de plástico. O ambiente descolado, com gente de pé e sentada em uma escada a céu aberto, surpreende a amiga mineira Fábia Castro, corretora de imóveis da Fortune, uma incorporadora que vende 80% dos prédios de Miami.

– Esse tipo de coisa não tinha antes aqui – observa.

Ao falar sobre o mercado de imóveis, Fábia observa que os brasileiros estão “mais calmos”, mas nem por isso menos interessados em comprar.

– Não é que não têm dinheiro, estão esperando pra saber o que vai acontecer no Brasil, se vai ter guerra… Mas o dinheiro continua – analisa.

No lançamento do empreendimento Jade Signature, que está em construção em Sunny Isles Beach, a praia dos “brasileiros ricos”, um em cada três compradores é brasileiro. O valor mais acessível de um apartamento, com metragem de 270 metros quadrados, é de US$ 4,5 milhões. Já uma cobertura pode ir de US$ 14 milhões a US$ 30 milhões.

O empreendimento só vai ficar pronto no ano que vem, mas já tem 88% das 192 unidades compradas.

– Estive lá no Brasil para apresentar o projeto com óculos 3D, que permite ver o apartamento por dentro. Fui numa festa, e estavam todas as mulheres comentando: “Fui a Miami, voltei de Miami”. Todo mundo tem casa aqui. Uma delas comentou comigo que a amiga sempre pergunta: você está em São Paulo ou você está feliz? Se está feliz é porque está em Miami – lembra.

A oscilação econômica do Brasil afetou o mercado imobiliário em Miami, mas de maneira diferente da esperada.

– Até a reeleição da Dilma, era a classe A querendo comprar imóveis caros para férias, quando a economia estava bem. Agora, aumentou o número de pessoas de classe média querendo se instalar aqui para morar. Todo dia alguém bate à porta – analisa Leo Ickowicz, brasileiro que é diretor e sócio-proprietário da Elite International Realty, instalada há 25 anos em Miami.

Quando o dólar começou a subir, Leo diz que chegou a ficar assustado, achando que iria diminuir a procura. Com a mudança de perfil dos clientes, a imobiliária, em vez de apenas vender apartamentos, passou a auxiliar com informações sobre visto e escola para as crianças. Dos 85 corretores que trabalham para a Elite, 50 são brasileiros.

– Se fizermos uma lista com 10 coisas que fazemos, hoje vender seria a última – explica.

“Pra mim, Miami não é um sonho. É uma necessidade de sobrevivência. É triste”

Se para alguns o destino é a concretização de um sonho, para outros, como o empresário Alexandre Lopes, 53 anos, representa o seu avesso.

Foi no terceiro assalto a seu escritório, que atua no ramo de entretenimento em Porto Alegre, que ele tomou a decisão de partir. Chegou em casa tremendo, depois de ser rendido por dois assaltantes armados, em março de 2011, na Cidade Baixa, e avisou para a família, reunida em volta da mesa para o almoço:

– Enquanto eu estiver sendo assaltado no meu escritório, tudo bem. No dia em que formos assaltados dentro de casa, nós vamos embora do Brasil. Não dá pra ficar correndo risco todo dia. Não sei quando vão me dar um tiro e não quero morrer disso.

Dois meses depois, o que era uma preocupação virou enredo de terror. Dezoito homens invadiram o prédio em que morava, no bairro Mont’Serrat, num domingo à noite, e entraram no seu apartamento, no terceiro andar, depois de renderem um técnico que chegava para entregar o CPU da empresa da mulher de Alexandre.

– Caiu a casa, caiu a casa! – anunciaram na chegada.

– Só não esculacha a minha família que eu não reajo! – suplicou.

O casal e a filha estavam no quarto vendo televisão, enquanto a empregada preparava uma sopa para o jantar. Armados e com luvas para não deixar impressões digitais, os invasores começaram a procurar por joias e dinheiro. Durante três horas, 20 moradores do condomínio foram mantidos como reféns na adega de Alexandre, até a fuga da quadrilha.

Traumatizada com o episódio, a família começou a preparar a mudança. A ideia do empresário era ir para a Argentina, terra de sua avó, mas amigos de lá o alertaram de que não seria uma boa opção.

– Se o Brasil tá ruim, aqui tá 10 vezes pior – advertiram.

A família então cogitou ir para a França, mas via poucas perspectivas para os filhos adolescentes na Europa. Acabou escolhendo Miami meio por acaso, no meio de uma viagem a Los Angeles, graças ao convite de um amigo construtor para que conhecesse seus imóveis.

– Eu só conhecia Miami como turista, de levar as crianças para a Disney, ir pra lá comprar bugiganga. Não conhecia praia, até porque a Miami de 20 anos atrás era outra, com traficantes, máfias e tal, era um lugar meio exótico – diz Alexandre.

Depois de uma primeira experiência em 2012, a família retornou para o Brasil no ano seguinte. O filho adolescente não havia se adaptado, e os negócios em Porto Alegre exigiam maior atenção após a tragédia da boate Kiss, que abalou o setor de entretenimento para jovens. Em um ano no Brasil, o filho Luiz Felipe, hoje com 19 anos, foi assaltado mais quatro vezes. Decidiram que não tinha mais jeito. Partiram de vez em outubro do ano passado. O contêiner com a mudança chegou em fevereiro deste ano.

Mesmo sentindo que tomou a decisão certa, Alexandre guarda consigo certa melancolia:

– Eu me sinto meio como expatriado da minha terra. Talvez assim se sintam os refugiados da Síria, obviamente com seus diferentes matizes e agravantes. Isso me fez pensar: o que seria pior, tu ter que partir forçado porque tua terra foi arrasada e tu não tem mais alternativas ou ter que partir e olhar para trás e ver que a tua cidade ainda está aparentemente inteira mas as circunstâncias não te dão segurança de ficar?

Alexandre embarga a voz quando pensa na própria condição. Sente falta do convívio na produtora de shows que ainda mantém no Rio Grande do Sul, enquanto se dedica à produção executiva de filmes de baixo orçamento nos Estados Unidos. Em visita à Capital no feriado de Páscoa, conversou com ZH durante o almoço em um de seus restaurantes preferidos, a Casa de Portugal, na Cidade Baixa.

Mas não consegue pensar em voltar a fixar residência no Rio Grande do Sul.

– Para mim, ir para Miami não é um sonho, é uma necessidade de sobrevivência. É triste – resume, depois de um instante de silêncio, com os olhos marejados.

Afirma que sempre foi um cara de “esquerda”, identificado com os ideais de Brizola, e ao migrar se viu enfrentando as contradições do próprio discurso.

– Dizem que os americanos são exploradores. Mas, cara, os Estados Unidos são o maior país socialista do mundo, lá todo mundo tem acesso a tudo. Uns 5% têm acesso a tudo e uns 5% não têm acesso a nada, mas no meio está todo mundo incluído. Existe inclusão. A custo de quê? De exploração do terceiro mundo? Mas quem tá fazendo sacanagem na Petrobras não são eles – reflete Alexandre, que saiu das redes sociais para evitar discussões belicosas, já que volta e meia batia boca tanto com coxinhas quanto com petralhas.

FOTO: Cris Ulla

A designer de joias gaúcha Rosa Leal, 38 anos, também não se apaixonou de imediato por Miami. Da primeira vez que esteve lá, para cinco dias de férias, com a irmã, ficou decepcionada.

– Achei que parecia Balneário Camboriú – lembra.

Já que estava lá, fez um check-in e viu sua popularidade aumentar. Seus braceletes italianos na época faziam sucesso na novela das nove, Amor à Vida, nos braços de Amarilys, a personagem de Danielle Winits na trama. As mensagens não paravam:

“Ah, tu tá em Miami, eu quero comprar o bracelete!”.

Desprevenida, Rosa acabou vendendo peças de uso pessoal. A demanda fez com que acabasse voltando mais uma vez, e outra, e tanto que acabou decidindo se mudar para lá, há dois anos. Fez os cálculos e viu que, com o que gastava ficando hospedada uma semana em hotéis cinco estrelas na Collins Avenue, em Miami Beach, poderia alugar um apartamento.

– Quando estou em Miami, minha vida é muito mais interessante. Meus likes no Insta dobram, minha popularidade aumenta. Quando vi, comecei a ficar mais lá do que no Brasil – conta.

Se os negócios impulsionaram sua ida para lá, a segurança e a qualidade de vida a conquistaram de vez. Em Porto Alegre, já tinha sido assaltada cinco vezes, só andava de carro blindado. Por trabalhar com joias, era visada e esperada em casa, no escritório, no bairro Moinhos de Vento.

– Cansei de ser prisioneira da minha vida. Em Miami posso usar minhas joias, minhas roupas, meu rolex – enumera, citando as diferenças de morar nos Estados Unidos e no Brasil.

“Quando estou em Miami, meus likes no Insta dobram, minha popularidade aumenta”, diz a  empresária Rosa Leal

FOTO: João Passos

FOTO: Cris Ulla

Abalada pelo histórico de violência no Brasil, lembra que da primeira vez se assustou quando viu um mendigo em Miami. Tensa, começou a gritar. Uma amiga a repreendeu.

– “Ô, sua idiota, aqui eles não assaltam ninguém” – lembra Rosa, entre risos.

A empresária aluga por US$ 2,3 mil mensais um apartamento em um “super resort” em Downtown, a área mais comercial de Miami. O complexo tem oito piscinas e 10 andares de estacionamento. Certo dia, contou 23 Ferraris estacionadas ali. E se surpreendeu ao descobrir que o gerente de restaurante badalado que frequenta, o Zuma, também morava por ali.

– Em Miami, o garçom que te atende fala contigo de igual para igual, porque ele é igual a ti. Quando vai embora, pega a Mercedes-Benz dele. No Brasil, parece que a gente vive uma guerra civil de rico contra pobre – compara.

As tensões políticas nacionais reforçaram sua convicção de ir embora. Mas o olhar de fora também a ajudou a entender melhor as contradições do país.

– Hoje que eu moro num país em que as pessoas têm os direitos iguais, entendo o porquê dessa violência no Brasil. Porque a vida de quem não tem dinheiro no Brasil é muito difícil. Em Miami, não são três horas de ônibus, engarrafado no trânsito. A minha empregada do Rio sai de casa às 5h para chegar lá em casa às 9h30min – contrapõe.

Apesar de ter reduzido seu padrão de vida no Exterior – não tem motorista nem empregada, por exemplo –, não pensa em voltar a residir no Brasil:

– Não posso viver na instabilidade. Eu amo o Brasil, sou feliz no nosso país, mas não posso ficar vendo a casa cair.

À esquerda, Rosa em lançamento de coleção na Maison Versace, com Danielle Winits e Karina Bacchi. À direita, em produção com Bárbara Evans, num condomínio em Miami Beach

Na migração, há os empreendedores e também os que chegam sem dinheiro

Depois de fazer carreira como estilista no Rio Grande do Sul, Xandão hoje tem dois subempregos em Miami: lavador de carros e manobrista

As manifestações realizadas em Miami contra o governo de Dilma Rousseff e a votação maciça em Aécio Neves no segundo turno das eleições de 2014 reforçaram a imagem da região como um refúgio da “elite branca”, mas nem todos cabem nesse estereótipo.

Há 20 anos em Miami, o consultor de marketing Ernesto Ortiz, natural de São Paulo, observa que há dois tipos de brasileiros que chegam: de um lado, famílias e empreendedores bem estruturados, que migram de forma legal. De outro, pessoas em situação econômica difícil ou que perderam o emprego arriscam tudo em busca de uma esperança. Distinguir quem é quem por vezes pode não ser tão simples à primeira vista.

No domingo ensolarado de 3 de abril, o gaúcho Alessandro Menezes, 35 anos, anda de jet-ski pelas águas transparentes do Lake Ida Park, em Delray Beach, a 40 minutos do centro de Miami. É seu dia de folga, e ele aproveita para relaxar entre amigos no parque arborizado e bem sinalizado. Em volta de uma mesa comunitária com bancos de cimento sobre o gramado que costeia o lago, Xandão, como é conhecido, e seis amigos acabaram há pouco de saborear 10 quilos de picanha. Num cooler, guardam cerveja gelada e refrigerante, mas o chimarrão também passa de mão em mão.

A cena sugere uma vida confortável, mas a aparência engana. Alessandro já foi um estilista bem-sucedido no Rio Grande do Sul, chegando a lucrar R$ 1,5 milhão no melhor ano, em 2011. Hoje tem dois subempregos nos Estados Unidos: trabalha durante o dia como lavador de carros e, à noite, como manobrista. A transformação está no corpo. Desde que chegou, há seis meses, já emagreceu 24 quilos, baixando de 113 para 89 quilos.

– Antes, eu mexia com seda italiana. Quando cheguei, fui carregar pedra em obra. Perdi todo meu orgulho. Agora, se precisar limpar lixo, vou limpar lixo – diz, ao final do churrasco.

A reviravolta começou quando os negócios declinaram. Depois de um ano de bonança, desenhando e confeccionando peças de roupas femininas para uma rede de 117 lojas, pensou que estava com a vida feita e administrou mal os negócios. Esbanjou dinheiro e acumulou prejuízos. Com R$ 950 mil em dívidas, teve de demitir os 11 funcionários e começar a vender bens, como uma lancha e uma caminhonete X3, da BMW, avaliada em R$ 300 mil. A ideia de ir para Miami surgiu depois de um amigo que já tinha parentes na cidade oferecer hospedagem. Com a venda dos móveis de seu sobrado no bairro Igara, em Canoas, e de um iPhone 6, comprou a passagem de avião. Chegou aos Estados Unidos sem reservas, disposto a trabalhar no que aparecesse.

Logo nos primeiros dias, soube que tinha vaga numa obra e se candidatou. Na estreia, carregou 3 mil pedras e uma caçamba de areia. A mão acostumada a bordar vestidos de noiva começou a verter sangue.

– Eu trabalhava sangrando, com vontade de chorar. Na minha mão, abriram 10 bolhas. Descobri que tenho uns 200 músculos a mais, porque doíam todos – lembra, com o sorriso aberto que lhe é característico.

Xandão, que nunca foi religioso, começou a rezar. Sem amigos, passou a frequentar uma igreja com coral gospel, da qual não lembra o nome:

– Comecei a falar com Deus: já entendi o recado, Senhor, eu fiz tudo errado!

Aguentou por 10 dias o tirão na obra, que lhe rendia US$ 100 diários, em uma jornada das 6h às 18h, com meia hora de almoço. Os dias seguintes não foram melhores: ao mudar de casa, após desentendimentos com a família que o hospedava, chegou a caminhar 10 quilômetros para ir para o serviço – e outros 10 para voltar para casa.

– Muitas pessoas acham que, se botou o pé nos Estados Unidos, já tem uma Lamborghini te esperando, tem um milhão de dólares, é tudo fácil. Não é assim – observa.

Com os dois subempregos, ganha uma média de US$ 140 por dia. E consegue mandar US$ 1,6 mil para o Brasil todo mês – dinheiro usado para abater as dívidas, que ainda somam R$ 400 mil. Às vezes chora de saudade da mãe, mas a chance de juntar dinheiro rápido e a segurança que tem ao andar nas ruas são para ele motivos para permanecer em Miami.

– Todo dia saio do serviço à meia-noite e deposito meu dinheiro. Aqui nem tem detector de metal nos bancos. Posso chegar ao banco correndo, todo sujo, e os caras te tratam bem, porque tu é trabalhador – afirma.

Xandão mora em Pompano Beach, o maior reduto de brasileiros, a 40 minutos do centro de Miami. Segundo pesquisa do Consulado do Brasil em Miami sobre a comunidade brasileira na Flórida, que ouviu 1,2 mil pessoas em 2014, 47% dos entrevistados viviam no condado de Broward, onde fica Pompano.

– É um Brasil melhorado – resume uma amiga de Xandão, a mineira Renata Lagares, 38 anos, que trabalha como vendedora de acessórios para carro.

O convívio com compatriotas é tanto que Xandão nem aprendeu a falar inglês. Só decorou umas frases padrão para recepcionar os clientes quando trabalha como manobrista. Às 17h de domingo, já está com seu uniforme vermelho em Boca Ratón, uma praia de alto padrão onde trabalha no estacionamento de um restaurante italiano, com patrões brasileiros.

– Car wash tonight? – pergunta.

Nem sempre entende as respostas, mas vai se virando. Acredita no sonho americano. Depois de quitar as dívidas no Brasil, quer voltar a ser estilista.

– Futuramente vocês vão vir aqui falar da minha marca de roupa – profetiza.

Enquanto esse dia não chega, segue na batalha. Pela dedicação, conquistou a confiança do chefe, que também é brasileiro: mora em uma peça cedida pelo patrão ao lado da lavagem de carros e ganhou dele um carro usado sem para-choque. Depois de reformá-lo, conseguiu revender o Chrysler 2000 por US$ 1,7 mil – e comprou um Passat por US$ 900.

Em uma tarde de folga, Alessandro andou de jet-ski com amigos brasileiros. No final do dia, voltou a vestir o uniforme para manobrar carros de clientes de um restaurante italiano

Gravidez inesperada antecipou viagem de técnica em enfermagem e tatuador

Thamy e Juliano chegaram a Miami quando ela estava com seis meses de gestação e agora alugam uma quitinete em Miramar, a 30 minutos do centro de Miami

Foi o tatuador gaúcho Juliano Torres, 30 anos, quem comprou o carro de Xandão. Precisava dele porque a qualquer momento teria de levar a mulher, Thamy Martins, 28, para o hospital.

A primeira filha do casal, Alícia, estava prestes a nascer.

Juliano e a mulher desembarcaram em Miami no final de janeiro, quando a barriga saliente contava seis meses de gestação. Em Porto Alegre, ele trabalhava como tatuador num estúdio conceituado na Cidade Baixa. Ela, como técnica de enfermagem da Santa Casa. Os dois já pensavam em se mudar quando descobriram a gravidez.

– E agora? Não vamos poder ir – reagiu Thamy.

– Agora é que a gente vai – respondeu Juliano.

Thamy tinha sido assaltada três vezes no ano anterior, já tinha deixado de usar bolsa quando saía de casa. Não queriam esse cotidiano de insegurança para a filha. Anteciparam os planos para que Thamy pudesse viajar antes de entrar no período de restrições. Sabiam que corriam risco de não serem aceitos pela imigração norte-americana, mas decidiram tentar. Oficializaram a união de cinco anos em um casamento pouco antes de viajar e disseram que pretendiam passar a lua de mel nos Estados Unidos na hora do visto. Na chegada, apresentaram a passagem com data de volta para fevereiro, já sem intenção de retornar.

– Decidi que não ia esconder a gravidez, mas também não ia sair falando se não perguntassem – disse Thamy, que viajou com uma blusa larguinha e não foi questionada sobre a gestação.

Como seu tempo de estadia legal no país como turistas só vence em julho, planejam entrar com o pedido de permanência nos Estados Unidos em maio. Dois dias antes de embarcar, avisou ao médico brasileiro sobre os planos de deixar o Brasil.

– A única saída para este país é o aeroporto – ouviu do obstetra.

Na manhã de segunda-feira, 4 de abril, Thamy acordou sentindo dores.

– Acho que ela vai nascer hoje – previu a gestante, quando a equipe de ZH chegou para visitá-los, em Miramar, cidade localizada a 30 minutos do centro de Miami, num quitinete alugado diante de uma estrada movimentada.

Já tinham se informado com outros imigrantes e escolhido o hospital para onde rumariam quando as contrações começassem.

– Eles não podem negar atendimento, porque ela já é uma cidadã americana – disse Thamy.

Sabiam que depois o hospital iria mandar os boletos com a cobrança pelos serviços. Imaginavam que custaria de US$ 25 mil a US$ 30 mil, mas planejavam recorrer ao programa de assistência social, alegando falta de recursos, para serem dispensados do pagamento.

Juliano trabalha como tatuador no estúdio de um dominicano, com quem se comunica em portunhol. Nas segundas-feiras, como o estúdio fecha de manhã, o casal costuma ir à praia e almoçar em algum restaurante brasileiro. Levam a térmica e o chimarrão, que saboreiam enquanto caminha pela areia branca, contemplando a água transparente.

– Na primeira vez que a gente veio na praia, ficávamos nos olhando: será que a gente tá aqui mesmo? – recordou Thamy.

Alicia, a filha de Juliano e Thammy, nasceu uma semana depois da visita de ZH. Já é cidadã americana

Depois de passar no estúdio, o casal levou amigos dominicanos para almoçar num restaurante brasileiro. Escolheram o Aconchego Restaurant, em Pompano Beach, depois de passarem no Café Brazil Restaurant, “que estava muito cheio”, e no “Rio Grande Steakhouse”, churrascaria com proprietários gaúchos que estava fechada naquela segunda. Os três restaurantes ficam a menos de cinco minutos de carro um do outro, numa prova da variedade da culinária brasileira na região.

Em repouso por causa da gravidez avançada, Thamy costuma ouvir rádios gaúchas. Pela internet, acompanha em tempo real as notícias.

– Às vezes fico mais informada do que a minha mãe, que tá lá – contou, enquanto comia um frango à milanesa, com arroz, feijão e fritas.

As contrações ressurgiram com força no dia 10 de abril, quando deram entrada no Memorial Hospital Miramar. Avisaram que Thamy estava em trabalho de parto e foram atendidos por uma médica que falava espanhol. Horas antes, o casal postou uma selfie, com a frase “ Chegou a hora da #Alicianopaisdasmaravilhas”.

A mais nova cidadã americana nasceu no dia 11 de abril, com 49 centímetros e 3,1 kg. Como a família planejava, foi inscrita no programa Medicare e encaminhada à assistência social, ainda sob avaliação.

– Não caiu a ficha ainda sobre ter feito o parto aqui e minha filha ser americana. Mas é incrível a maneira que ela foi tratada o tempo todo, e mesmo nós, sendo estrangeiros, sentimos todo o respeito – celebra a nova mãe.

Sem muros nem grades, um conto de fadas ao lado da Disney

Em Orlando, Mario – com a mulher, Flávia (de blusa laranja) e as filhas Valentina e  Victória – não se sente constrangido de ter uma Ferrari

Atrês horas e meia de carro de Miami, outro destino popular encanta brasileiros. Conhecida como sede dos parques da Disney, Orlando oferece entorno sossegado para quem busca qualidade de vida.

– Quem mora aqui tem uma vantagem. Todo mundo quer ver o Mickey, o Pateta e, agora, nós – brinca a empresária Flávia Magalhães, 43 anos, que se mudou com o marido e as duas filhas há um ano e dois meses para lá, e tem recebido mais visitas do que quando vivia na zona sul de Porto Alegre, no primeiro condomínio com campo de golfe da Capital.

A família mora em um empreendimento tipicamente americano: sem muros nem grades, a casa de 650 metros quadrados, com cinco quartos, é cercada por duas faixas recortadas de um gramado impecável, lado a lado com outras construções com os mesmos vitrais amplos e pintura em tons cappuccino. No lado oposto, a piscina de fundo infinito se encontra com o Lake Hancock, contrastando matizes de azul até o horizonte.

Na calçada, três carros estão estacionados, sendo o mais vistoso uma Ferrari amarela. Longe da violência, a família celebra a possibilidade de desfrutar dos próprios bens.

– Aqui não é constrangedor você estar num carro melhor, entende? Lá, não tinha uma Ferrari como eu tenho aqui porque era uma coisa muito ostensiva – diz o empresário Mario Magalhães, sócio de uma rede de escolas de inglês e de um portal de cursos de empreendedorismo na internet.

A adaptação das filhas adolescentes era a maior preocupação. Ter de abandonar a turma do colégio Pan Americano foi dolorido especialmente para Victória, agora com 18 anos. Era frustrante não ter amigos para sair no final de semana.

– Numa sexta lá, tenho 10, 12 pessoas diferentes pra sair, poderia comer sushi, me divertir com as amigas. Aqui, tenho uma coisa só, e se eu for naquela coisa vai estar toda a brasileirada lá – conta.

Para criar maior conforto para as meninas, a família investiu em espaços de lazer: construiu uma sala de jogos, como sinuca, ao redor da piscina. Mesmo que na cultura local não seja tão comum receber amigos em casa, os pais estimulam as filhas a convidar colegas. Latinos e brasileiros são os mais assíduos.

A reapropriação da liberdade é uma das vantagens celebradas. Antes, quando moravam em Porto Alegre, qualquer saída era vigiada. A mais nova, Valentina, só ia ao shopping com motorista e seguranças. Em Orlando, as meninas podem ir para a academia de bicicleta e até ao supermercado sozinhas.

A empregada, Cíntia, uma carioca, chega servindo tortinha de frango com suco de laranja. A anfitriã, simpática, oferece:

– Não querem uma saladinha?

Manter alguém cuidando da casa foi pré-requisito imposto por Flávia quando decidiram migrar.

– Não é normal ter empregada todo o dia aqui, mas em função da nossa família e da nossa rotina precisávamos de uma ajudante – conta Flávia, que em Porto Alegre tinha quatro empregadas e um motorista.

Antes, a família costumava visitar a Flórida de quatro a cinco vezes por ano. Com o agravamento da violência no Brasil e a decisão de Mario de vender ações da empresa de inglês em que era sócio e tirar um “ano sabático”, resolveram se fixar em Orlando, em princípio com um ano de duração, prazo agora renovado por mais um ano.

Chegaram com visto de estudante. As meninas frequentam a escola, e Flávia estuda inglês todas as manhãs, enquanto Mario trabalha em home office. Administra de Orlando os negócios de sua escola de inglês no Brasil.

Interessada em manter os vínculos com o país, a família vai visitar Porto Alegre no meio do ano, quando começam as comemorações do debut da filha Valentina, prestes a completar 15 anos. Seguindo os passos da irmã mais velha, vai debutar no Country Club. Preocupada com a segurança, Flávia já mandou blindar seu carro.

– Na primeira vez que voltamos, tínhamos muita saudade, a gente estava amortecido com o que era o Brasil. Na segunda, parece que a gente já começa a ver que essa violência está mais gritante para nós – justifica.

Ainda assim, os Magalhães se esforçam para cultivar boas lembranças do Brasil. Não querem ser daqueles que saem e “ficam falando mal”. Combinaram de valorizar as coisas boas que a Flórida oferece quando estão ali e de matar as saudades quando voltam.

Victória é a mais saudosa. Quando pensa em voltar para o país, vai direto para a internet.

– É bater a saudade e eu entro nas notícias, pra ver como estão as coisas. É só notícia ruim... Nessa hora passa a vontade.

A família torce por melhorias no Brasil, mas não acredita que apenas a operação Lava-Jato vai resolver todos os problemas. Dedicado ao empreendedorismo, Mario vê na crise também espaços de oportunidades:

– Não nos movemos por essa percepção dos escândalos que existem no nosso meio político.  Eu me incomodo, claro, gostaria que fosse diferente, como qualquer brasileiro, mas procuro me vacinar, me higienizar, para que eu não seja paralisado pela difusão da ideia de crise que existe em nosso país.

Eles ainda não sabem quanto tempo vão permanecer em Orlando, estão estudando o terreno. E satisfeitos em poder regressar ao Brasil como visitantes.

– Aqui a gente pode aproveitar o melhor dos dois mundos – reitera Flávia.

Todas as noites, assistem juntos da varanda à queima de fogos de artifício do parque temático Magic Kingdom, que reflete suas cores no Lake Hancock, a partir do castelo da Cinderela. Para eles, o conto de fadas é cotidiano.

Família investiu em espaços de lazer ao redor da piscina da casa para facilitar a adaptação das filhas adolescentes. Na parede, imagens de Porto Alegre