O funil

Publicado em 15 de julho de 2016

Entrar nas categorias de base de grandes clubes não é garantia de ingresso no milionário e glamouroso mundo dos jogadores de futebol. Ao retomar 11 personagens de uma série de reportagens publicada quase cinco anos atrás, ZH mostra os desafios diários desses adolescentes até realizarem parte de seu objetivo. Não raro, há uma revisão forçada de expectativas.

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Leonardo Oliveira

leonardo.oliveira@zerohora.com.br

Edição

Ticiano Osório

O funil

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Diogo Perin

Em 2011, Zero Hora acompanhou por dois meses meninos das categorias sub-11, sub-12 e sub-13 de Grêmio e Inter para construir a série de reportagens Família F.C., que mostrou a mobilização dos pais em torno dos filhos que queriam ser jogadores de futebol. Cinco anos depois, seguimos as pegadas de 11 desses guris. Seu caminho revela o quão estreito é o funil em clubes grandes. Somente três dos personagens seguem vinculados à dupla Gre-Nal. Desses, dois esperam a assinatura do primeiro contrato e vivem a incerteza do futuro. Apenas um parece acelerar rumo ao andar de cima, o dos profissionais.

Trata-se de Douglas Bohm, 16 anos, volante colorado com passagens pelas seleções brasileiras de base. No Inter, no Centro de Treinamento (CT) de Alvorada, o rótulo colado a seu nome é de promessa. Quando questionados sobre o rapaz vindo de Venâncio Aires, titular do time juvenil B, os dirigentes sorriem e exibem um ar de confiança.

Douglas passou pelo gargalo das categorias de base: os 16 anos. É quando os guris atingem a maioridade futebolística e se descortina de forma mais clara a carreira de jogador. A partir dessa idade, a legislação autoriza que os clubes firmem contratos de três anos. Uma assinatura representa segurança e tranquilidade para eles, e a certeza de que o investimento de tempo e dinheiro das famílias acabou recompensado.

Nem todos chegam a esse estágio decisivo. Alguns batem numa régua cruel, afiada como guilhotina. Os clubes querem adolescentes com biotipo de adultos. Baixinhos ou mirrados, só se forem craques. Como craque é raridade, a maioria luta contra a natureza. E, claro, perde. A ansiedade pelo crescimento é tamanha que os garotos, como se fossem estudantes de Medicina, falam com propriedade sobre maturação. Conhecem a fundo o assunto, fruto das consultas médicas ou das conversas e alertas quase semanais de técnicos e preparadores físicos.

Wesley, meia de 16 anos, ouviu no Inter que uma das razões para sua dispensa seria a altura. O mesmo escutou Lorenzo no CT do Grêmio em Eldorado Sul. Seu 1m80cm aos 15 anos o colocava no fim da fila dos goleiros dos infantis. Victor José, conhecido entre as mães do sub-11 gremista em 2011 como Anjinho, manteve o ar doce e infantil. Embora habilidoso, faltava-lhe compleição física. Os dirigentes vieram sem meias palavras:

– Você está demorando a maturar.

Agora, Victor busca um lugar no Ypiranga, de Erechim, cidade que deixou aos 10 anos com o sonho de defender o Grêmio. Os cabelos encaracolados que motivaram o apelido, inspirado no personagem de Maurício de Sousa, foram cortados. Mas no Colosso da Lagoa seguem chamando-o de Anjinho. O apelido é rara herança dos tempos tricolores.

 

O dono da braçadeira

Parece que Douglas Bohm nasceu capitão. Aos 16 anos, mostra certeza no que diz e clareza sobre o que vivencia. Não à toa, usa a braçadeira do Inter quase sempre desde a chegada ao clube, aos 10. Por isso, e por ser um volante que atua de cabeça erguida, ganhou status de promessa no CT de Alvorada.

Foram sete convocações para as seleções brasileiras. Nas categorias de base, já ter cantado o Hino com a camisa amarela eleva o patamar de um jogador. Douglas defendeu o Brasil na Venezuela, nos EUA e na França. Sua milhagem é de adulto – pelo Inter, disputou torneios em Dubai e acaba de desembarcar da Itália, onde o time enfrentou Roma e Milan na Scirea Cup. Voltou invicto, mas em terceiro. Tantas viagens já trazem uma preocupação. Em breve, será preciso providenciar um novo passaporte.

– Esse tem só umas quatro folhas em branco – mostra Douglas.

O guri não estranha a estrada. Sua jornada exigiu alta quilometragem. Em 2011, quando ZH publicou a série Família F.C., Douglas virou personagem pela situação inusitada do seu pai, Sérgio. Três vezes por semana, eles se empoleiravam na Captiva zero quilômetro da família e saíam de Venâncio Aires direto até o Beira-Rio. Enquanto o filho treinava, Sérgio improvisava dentro da caminhonete o escritório da fábrica de violões em que trabalhava – ainda hoje, segue como funcionário no setor administrativo da empresa.

O périplo na BR-386 aumentava conforme o guri subia de categoria. Em 2012 e 2013, passaram a ser quatro viagens por semana. Foi quando o pai reagiu: a rota de Venâncio ao Beira-Rio só funcionaria até janeiro de 2014. A partir dali, Douglas buscaria alojamento do clube. Ficaria longe de casa, mas com mais tempo para focar nos treinos e na escola.

Douglas Bohm, 16 anos, capitão na base do Inter, já foi sete vezes convocado para a seleção brasileira

Foi o que aconteceu em março daquele ano, quando Douglas Bohm completou 14 anos e atingiu a idade mínima para morar no CT de Alvorada. Antes, porém, a família passou por um susto. Em um sábado pela manhã, o Inter enfrentava o Vila Nova, de Passo Fundo, no campo de grama sintética do CT. Bem diante da área, a alguns metros de onde estavam seus pais, o guri dominou a bola e ergueu a cabeça, como de hábito. Mas o adversário deslizou e o acertou em cheio. Na queda, sofreu uma fratura no punho. A imagem foi tão forte que o auxiliar correu para o campo e encobriu a lesão com sua bandeirinha. Era tarde demais. Os pais já tinham visto e se aterrorizado. Coube a Douglas tranquilizá-los ao sair direto para o hospital de ambulância.

– O mais constrangedor foi ver meus pais preocupados daquele jeito. Quando passei por eles, disse: “Vai dar tudo certo, acontece” – recorda o guri.

Deu mesmo. Foram dois meses de recuperação em casa, em Venâncio Aires. Voltou a tempo de disputar o Efipan no início de 2014 antes de sair de férias. No retorno, foi direto morar em um quarto do CT.

A rotina é pacata. Aulas no 3º ano do Ensino Médio numa escola próxima ao CT, treinos e jogos. A cada 15 dias, visita a namorada, Ana Carolina, em Campo Bom. Estão juntos há dois anos. A guria mora com a irmã dele, professora de modelos no Vale do Sinos. Quando possível, vai a Venâncio ver a família.

Como bom capitão, Douglas dá o exemplo nos treinos e fora deles. Evita ao máximo andar com os olhos grudados no celular, como fazem quase todos no CT. Há pouco, retomou a leitura. Anda com O símbolo perdido, de Dan Brown, sob o braço.

Conexão EUA-França

Aformação cultural também vai na bagagem de Vinícius Lansade. E é uma bagagem já bastante rodada também.

Em agosto, quando o verão entrar na reta final na Europa, Vinícius se apresentará no Bastia, da primeira divisão francesa. Vai morar no alojamento ao lado do estádio do clube e finalizar o Ensino Médio na Córsega, um paraíso no Mediterrâneo e famoso por ser o berço de Napoleão Bonaparte.

Aos 15 anos, nascido em Curitiba, filho de mãe argentina e pai francês, venceu a primeira etapa de quem sonha em ser jogador. Em abril, viajou até a Córsega e assinou contrato com o Bastia. O vínculo dura até ele encerrar sua vida escolar, quando o clube decide se exerce a renovação. Na França, a vida escolar tem 12 anos. O aluno que não repetir, fecha o lycée (as três últimas séries) aos 17. Ou seja, ele tem dois anos para mostrar seu talento e garantir a renovação que o tornará profissional.

Vinícius leva no currículo a passagem pelo Inter em 2011, quando foi personagem da série Família F.C. Antes de atuar no Beira-Rio, havia passado pelo Brest, também da França, e pelo Valencia. Para onde voltou depois que a família trocou Porto Alegre pela Espanha em 2012. O pai do guri é executivo de uma multinacional, e as mudanças se tornaram rotina na casa dos Lansade. No Valencia, o atacante dono de uma canhota hábil fez amizade com Jonas, o ex-atacante do Grêmio que, hoje, faz sucesso no Benfica. Os encontros no CT eram frequentes, sempre com conversas em português. Não raro o atacante o presenteava com ingressos para os jogos.

Vinícius Lansade, 15 anos, estava nos EUA (foto) e vai jogar no Bastia, da França

A família voltou para Porto Alegre em 2014. Ficou um ano na cidade. Vinícius havia deixado as portas abertas no Inter. Mas os horários de treinos no sub-14 colidiam com os da escola. O São José acabou como melhor alternativa. Mal deu tempo de conhecer o sintético do Passo D’Areia. Em 2015, o pai foi transferido para Fairfield, um condado à beira-mar em Connecticut, o terceiro menor estado americano.

É claro que Vinícius arrumou um time para jogar, o Beachside Soccer Club. Trata-se de uma academia bem ao estilo americano, com organização extrema, estrutura invejável e participação em ligas estaduais e torneios no Canadá. O Beachside é conveniado ao U.S. Soccer Development, um sistema de academias ligadas à federação e com padrão de formação de jovens jogadores. Mesmo ainda sendo sub-15, Vinícius joga pelo time sub-17. Os americanos se interessaram por ele. Mas o Bastia chegou antes.

O guri foi descoberto em um torneio no verão passado, na praia. É tradição na família do pai passar as férias na Córsega. Olheiros viram Vinícius em ação na areia e buscaram informações. Um primo dele já joga no clube. O fato de um tio morar lá facilita sua mudança para a ilha sem os pais.

– Nos Estados Unidos, não teria como fazer faculdade e ser jogador profissional ao mesmo tempo. Teria de optar, e eu não queria sacrificar esse lado do estudo – diz Vinícius.

O goleiro “baixinho”

Em Porto Alegre, Lorenzo Piaia mal cabe em si um ano depois de ser dispensado do Grêmio. Tanto que se repete para dizer o quanto está se sentido bem:

– Cara, minha vida melhorou muito. Muito mesmo. Esta melhor do que no Grêmio.

Aos 16 anos, Lorenzo está entre os adultos do São José – no início de maio, o clube o chamou para comunicá-lo que seria integrado ao grupo principal. Todos os dias, treina com Fábio, eleito melhor goleiro do Gauchão, e compartilha o vestiário com jogadores rodados. Participa das brincadeiras e até leva petelecos na orelha quando deixa a bola cair na roda de troca de passes. De chuteiras, Lorenzo caminha nas nuvens. Pouco importa que, nos finais de semana, jogue pelos juvenis no Gauchão da categoria. Não se incomoda com o rosto cravejado de espinhas a denunciar sua adolescência. Muito antes do imaginado, está de contrato assinado, e como profissional.

Lorenzo Piaia, 16 anos, 16 anos, é goleiro do grupo profissional do São José

O guri inspira-se em Fábio. O goleiro titular do São José fecha o gol com 1m82cm. Lorenzo tinha 1m80cm quando foi dispensado do Grêmio. Mesmo que os exames tenham apontado potencial para chegar a 1m89cm, era o terceiro goleiro e nem lugar no banco pegava. Depois de um treino, foi buscar sua caixa no vestiário para colocar o uniforme sujo. Não encontrou. O roupeiro se aproximou e deu o recado que a garotada da base encara como uma sentença:

– Passa na coordenação, eles querem falar contigo.

Lorenzo foi. Saiu da sala aos prantos. Vinícius, companheiro de time, estava esperando-o do lado de fora. Ofereceu o ombro. O ônibus que traria a delegação do CT de Eldorado até o Olímpico ficou com o motor ligado apenas aguardando a reunião do goleiro com o coordenador técnico. Quando entrou no veículo, o grupo inteiro veio ampará-lo. Essa imagem, Lorenzo não apaga da memória. A amizade com os amigos de Grêmio permanece. Hoje, é alimentada via WhatsApp.

O guri da capa

Um dos contatos gremistas no WhatsApp do goleiro Lorenzo é o meia Lucas Dezan. Os dois vieram de Cascavel, no Paraná. Lucas chegou primeiro, aos nove anos. Em 2011, ele foi capa de Zero Hora, na abertura da série Família F.C. Depois de sair de campo derrotado pelo Vélez Sarsfield (Argentina), em jogo no torneio Efipan de Primavera, em Alegrete, ele encontrou aconchego no peito do pai, José, que havia viajado 22 horas desde Cascavel para vê-lo jogar. Foi esta a cena que ilustrou a primeira página de ZH.

Hoje aos 16 anos, com ideias claras, Lucas segue firme nas categorias de base do Grêmio. Integra o grupo do juvenil B, dos nascidos em 2000. Mesmo com a mudança do Grêmio para o Humaitá, ele e a mãe, Silene, continuam morando nas imediações do Olímpico, em um residencial cujos principais clientes são familiares de meninos da base do clube. O pai cuida da transportadora da família, no oeste paranaense, e faz visitas periódicas. Neste ano, ainda não viu o filho em campo. O Grêmio decidiu ficar de fora do Gauchão Sub-16. A avaliação é de que os adversários oferecem pouca resistência. Os meninos treinam no CT de Eldorado e saem para amistosos e torneios. Foram a Santa Catarina, para enfrentar Criciúma, Tubarão e Avaí, e a São Paulo, para quadrangular com São Paulo, Corinthians e Palmeiras. Há chance de disputar um torneio no Uruguai em julho.

Lucas Dezan, 16 anos, é meia reserva no Juvenil B do Grêmio

Lucas foi tricampeão gaúcho (2011, 2013 e 2015) e ganhou o Efipan em 2014 – inclusive bateu pênalti na decisão. Mas isso nada garante. O clube já começou a chamar alguns guris do grupo para assinar o primeiro contrato. A fila anda devagar. O assunto é recorrente entre eles, e a expectativa se repete todos os dias, ao colocar o pé no CT: “Será que vão me chamar hoje?”.

Para aumentar a ansiedade, Lucas está na reserva neste ano. Fechou 2015 com lesão e, ao voltar das férias, faltou-lhe espaço no time.

– Mais de meio caminho eu já andei. Mas ainda falta. Por isso, tem de treinar cada vez mais – resume Lucas Dezan, sintetizando a pressão.

A esquina maldita

Douglas Tonholo, 16 anos, segue como goleiro na base do Grêmio

Era 9 de outubro de 2013. Douglas Tonholo estava no corredor do edifício em que morava, na Avenida Azenha. Havia dado meia volta atendendo a um chamado do pai, Luiz. Ele e mais um amigo já estavam a caminho de um bar para assistir ao jogo do Grêmio contra o Criciúma, pelo Brasileirão. Beberiam refrigerante e traçariam um xis. Quando se aproximava da porta do prédio, ouviu uma freada e o som seco de uma batida. Ao abrir a porta, Douglas viu estatelado sobre o asfalto Josué, atacante benquisto pela gurizada do time sub-13 do Grêmio. Onze dias depois, o menino viria a morrer no Pronto-Socorro.

– Era para eu estar com ele. Só voltei porque meu pai me chamou em casa. Sempre que passo ali, me lembro do Josué. A gente chama aquela esquina de maldita – conta Douglas.

O goleiro tinha 13 anos, já havia dado o estirão que faz dele hoje um alemão espigado de 1m86cm, integrante do juvenil B do Grêmio e com fama de pegador de pênaltis. Josué, recém-chegado de Paraíso do Sul para a mesma categoria, virara um dos grandes amigos e parceiro de treino, videogame e partidas do Grêmio pela TV.

Dodô, hoje com 16 anos, é eloquente. Amadureceu cedo. Talvez por carregar as esperanças da família. Ele tinha 11 anos quando o pai pegou a mulher e as malas e veio atrás do sonho do guri, indicado ao Grêmio por escolinha conveniada em Sinop (Mato Grosso). Mas basta falar em Josué para o cenho franzir.

– No dia em que ele morreu, foi incrível. O Cesinha (técnico) nos reuniu no campo aqui no CT. Desconfiamos. Ele mal conseguiu terminar de falar e começou a chorar. Todos nós choramos. Quando deixamos o campo, abriu um arco-íris no céu. Me arrepio quando lembro – conta Douglas.

O goleiro vive a expectativa do primeiro contrato. Para a gurizada da dupla Gre-Nal, a incerteza aumenta pelo fato de Grêmio e Inter serem os únicos clubes da elite a dividir a categoria juvenil em A (sub-17) e B (sub-16) – quem está nessa última e não desponta para se juntar aos mais velhos vive em uma espécie de limbo. Douglas tem cumprido todas as etapas com sucesso. Tanto que o ex-zagueiro Baidek, hoje empresário, o viu jogar e apresentou proposta para agenciá-lo. Ganhará uma ajuda de custo.

Zé Henrique, 16 anos, fez teste no Fluminense e agora defende o Novorizonte

Otempo e os descaminhos da bola separaram Douglas Tonholo de Victor Galli, o Anjinho, e de Zé Henrique, os outros dois guris que aparecem ao lado do goleiro na foto de 2011.

Zé Henrique chegou ao Grêmio na mesma época de Dodô. Também veio de Sinop e arrastou a família. O traçado do atacante de frases curtas e passadas largas, porém, tem sido mais tortuoso. Em abril de 2014, o Grêmio o dispensou. A alegação: falta de interesse nos treinos. O guri confirma, mas desconhece a razão da perda de motivação. A cirurgia para correção de septo, uma lesão e a reserva contribuíram.

A essa altura, o pai, representante comercial, já comprara uma casa no bairro Mário Quintana, na zona leste da Capital. A ideia de voltar para o Mato Grosso foi descartada. Quando dispensam algum guri, Grêmio e Inter o indicam para outros clubes da Capital e da Região Metropolitana. Assim, observam à distância o desenvolvimento deles. Zé Henrique topou ir para o São José. Mas a relação com o técnico não deu liga. Mesmo titular e fazendo gols, saiu no começo de 2016.

O pai acionou a rede de contatos tecida nos quatro anos em que acompanhou o guri a jogos e treinos. Fechou com o empresário José Kila para cuidar da carreira do filho. Foi ele quem conseguiu os testes no Criciúma e no Fluminense. Em Santa Catarina, Zé Henrique mostrou as credenciais de atacante ambidestro com 1m77cm. Fez gols, mas não ficou. No Rio, assustou-se com o ambiente e afundou. Desde maio, disputa o Estadual Juvenil B pelo Novorizonte, de Esteio. Seu empresário é dono do Estrela do Vale, de Canoas, mas, como falta registrá-lo na Federação Gaúcha de Futebol (FGF), usa o clube da cidade vizinha para abrigar seus guris. Os treinos são no Parcão, próximo à estação Fátima do trensurb. A distância de casa e as aulas noturnas no 2º ano do Ensino Médio deixam a rotina puxada. O campo usado é público. No dia da entrevista a ZH, a chuva da véspera havia criado duas lagoas de barro nas áreas. Zé Henrique não desanima:

– Agora, me sinto mais preparado, agora é a hora. Nunca pensei em fazer algo que não seja jogar bola.

– Mas e se não der certo? – pergunto.

Depois de uma pausa, ele responde:

– Policial. Queria ser policial.

Victor Galli, 16 anos, retornou à cidade de sua família, Erechim, e está no Ypiranga

Victor Galli passou quatro anos no Grêmio. Os cabelos loiros encaracolados, os olhos azuis e físico franzino lhe valeram das mães dos outros guris o apelido de Anjinho. Victor não crescia. Ao voltar das férias de verão em 2013, pareceu que o time inteiro tinha tomado chá de taquara. Menos ele.

Meia-atacante, Victor driblava a falta de estatura com a habilidade. Só em 2012  jogou com mais frequência, mas nunca como titular. O Grêmio apostava nele e esperava um estirão. Em julho de 2015, meses depois de a família trocar Erechim por Eldorado do Sul, o clube chamou Victor e o pai, Gladistone, no CT. Os dois se sentaram diante do coordenador da categoria e ouviram a má notícia: não havia crescido e, com a troca de comissão técnica, ele entrou no pacote de mudanças. Gladistone ainda tentou indagar. Italianão, falante, preocupou-se com o impacto dessa decisão no filho. Ao olhar para o guri, o temor se dissipou. Victor ria. Parecia aliviado.

Em menos de um ano na base do Ypiranga, Victor saltou de 1m57cm para 1m74cm. O pai mostra um exame dos ossos, que aponta espaço para crescer mais. A descontração do filho no campo suplementar do Colosso da Lagoa mostra que ele está em casa. Nem uma gripe nem o frio congelante nas imediações da BR-153 tiram seu sorriso.

– Ter saído do Grêmio foi até melhor – diz.

Em Erechim, Victor finaliza o Ensino Médio numa escola estadual. Estuda pela manhã e treina à tarde. O pai, aposentado da Corsan, leva e busca. As noites são em família – tem uma irmã caçula, de 12 anos. Tudo isso aquece o coração. O sonho de ser jogador será alimentado até os 20 anos. Em outubro, ele esteve 15 dias no Flamengo, em testes. Deve voltar depois que acabar a escola. Mas nada de pressão, avisa. O Anjinho cresceu. E sabe até onde pode chegar.

Os guris do apartamento de Leandro Damião

Oapartamento que Vanda Jaboinski alugava em 2011 havia sido, até meses antes da visita de ZH, o endereço de Leandro Damião, então grande ídolo do Inter. Vanda partira de Frederico Westphalen para cuidar do filho, o lateral-esquerdo do Inter Ariel, na época com 12 anos. Moravam junto mais três guris: o zagueiro João Victor, categoria 1997, o volante Leonardo, categoria 98, e o meia Wesley, 2000.

A mãe apostava que a luz de sucesso de Damião guiaria seu filho e os três agregados. Só não contava que essa luz, por coincidência, se apagaria conforme os gols do centroavante escasseassem. A partir do final de 2013, os meninos foram deixando o Inter – na mesma época em que Damião saiu do Beira-Rio e passou a rodar sem emplacar em clube algum.

O primeiro a ir embora foi o meia Wesley. No final de outubro, chegou para treinar no CT de Alvorada e recebeu o comunicado de que deveria se apresentar na sala do coordenador. Dali foi direto para casa, no Parque dos Maias. Chorou um dia inteiro no quarto. A mãe havia deixado Santa Cruz do Sul um ano antes para apoiar o caçula da família. Aplicava no aluguel os R$ 600 que um emissário do empresário Jorge Machado lhe pagava. Para o Inter, Wesley ainda precisava maturar e estava um passo atrás dos demais no aspecto técnico.

– Eu era meio preguiçoso. Aqui no São José o professor Rafael (Porto) insistiu para que marcasse também – admite.

Foram dias duros para Wesley. Um pouco antes, os pais haviam se separado. No São José, teve de pagar o primeiro uniforme, e os treinos eram em campos públicos. O empresário se afastou. Wesley pensou em desistir. Mas viu o que havia deixado para trás em Santa Cruz do Sul, onde começou aos sete anos, no Avenida, clube vizinho ao minimercado do pai.

Wesley acabou virando titular do São José nos primeiros treinos. Meia bom de passe – “estilo Oscar”, como se define –, destacou-se. No final de 2015, esteve em período de testes no Grêmio. Foi aprovado, porém faltou acerto entre os clubes. O Palmeiras também o assediou, mas era para testes, e o São José recusou. Enquanto espera que outro grande clube ponha os olhos nele, Wesley mantém a rotina de treinos e aulas no 8º ano do Colégio Benjamin Constant, na Zona Norte. Como o São José não tem sub-20, prepara-se para 2017, seu último ano de juvenil. É quando tem de estourar e, se der, crescer mais do que os sete centímetros ganhos desde a saída do Inter, que o fizeram bater em 1m75cm.

Para João Victor, tamanho nunca foi o problema. Em 2011, aos 14 anos, já passava de 1m75cm. Mineiro de Monte Sião, cidade a três horas de São Paulo, foi bem até os juvenis. Em março de 2013, voltou das férias e ouviu do alto do seu 1m85cm a notícia da dispensa. O grupo já contava com Eriks e Eduardo, ambos da seleção sub-17. Ele seria eterno reserva.

Antes de voltar para Minas, João Victor fez testes no Grêmio, no Juventude e no Atlético-PR. Sem sucesso. No Criciúma, agradou. Um mês depois, com lugar no alojamento e matriculado numa escola da cidade, acabou surpreendido por nova liberação. Buscou ainda o Deportivo Brasil-SP e o Cruzeiro, duas vezes. No início de 2014, sentou-se à mesa com a mãe, professora, e o pai, dono de uma malharia, para uma conversa definitiva:

– Não é isso o que quero para a minha vida. Se pegar firme na escola, posso fazer o vestibular daqui a dois anos.

Wesley, 16 anos, está no São José e já interessou a Grêmio e Palmeiras

Ariel, 17 anos, treina sem clube em Alvorada enquanto espera uma nova chance

João Victor, 19 anos, de férias em Paris, fará vestibular para Economia

Leonardo, 15 anos, é caixa na padaria da mãe, em Santa Cruz do Sul

Os três anos em Porto Alegre, longe da casa, haviam transformado o caçula dos Gaspardi. Em dezembro, ele acaba o Ensino Médio. O futebol o fez perder dois anos na escola, mas ele não lamenta. Diz que a concorrência diária por lugar no Inter e a pressão de um grande clube o prepararam para o mercado de trabalho. No final do ano, prestará vestibular para Economia. Talvez tente na UFRGS.

– Não é só jogar bola, tem outras coisas na vida – alerta o mineiro, que recentemente esteve em Paris, na casa de um amigo. Ainda iria visitar Bruxelas e Barcelona. – Nunca tinha ido à Europa. Se estivesse jogando futebol, jamais conseguiria ter férias assim.

O volante Leonardo, companheiro de quarto de João Victor em 2011, também foi dispensado pelo Inter em março de 2013. Aos 15 anos, voltou para Santa Cruz do Sul e precisou se reintegrar na sua própria cidade. O pai, supervisor de uma empresa de segurança, puxou conversa. Quem sabe o São José, como ofertado pelo Inter? O guri encerrou o assunto:

– Não, pai, deixa assim. Neste ano, quero só estudar.

Ainda hoje, Leonardo está digerindo a saída do Inter. O empresário Jorge Machado, de quem ganhava R$ 600 mensais, encerrou a relação. Em 2015, surgiu a chance no Juventus, de Jaraguá do Sul (SC). O guri sacolejou 14 horas de ônibus. O alojamento era sob a arquibancada, e o salário, R$ 50 mensais. Pior do que isso era o contrato de um ano. Se desistisse, haveria multa, entre R$ 15 mil e R$ 20 mil (o pai não soube precisar). Leonardo pegou o ônibus de volta. Treinou entre os profissionais do Santa Cruz no resto do ano e finalizou o Ensino Médio. Em janeiro, passou no vestibular para Educação Física na Unisc.

Antes de começar as aulas, empreendeu mais uma tentativa. O Ypiranga e o Lajeadense toparam recebê-lo nos juniores. Mas a crise financeira fez com que os clubes desistissem da categoria. Agora, Leonardo cuida do caixa da padaria da mãe, que é passagem obrigatória em Santa Cruz do Sul: as Cucas da Rosana foram tricampeãs no festival da cidade. O guri garante que só retornará ao futebol se vierem buscá-lo em casa. A mãe entrega:

– Ele está aqui, mas a cabeça fica lá no futebol.

Do quarteto que vivia no ex-apartamento de Damião, Ariel foi o último a deixar o Inter. Lateral-esquerdo, fechou 2015 campeão gaúcho. Em janeiro, viu os companheiros serem dispensados dia a dia. Achou que ficaria, mas havia um último grupo a ser deletado. Era o dia do aniversário da namorada, Amanda. À noite, houve comemoração numa pizzaria de Alvorada. Nada lhe descia. Os sorrisos já andavam escassos pela perda da avó e a impossibilidade de ir ao velório – na mesma data, estava a caminho de Três Passos, para jogar a final do Gauchão.

– O futebol não respeita nada – suspira Ariel, 17 anos, repetindo uma frase que é bordão nos vestiários. Como espécie de compensação, ele tatuou no braço a imagem de Nossa Senhora de Fátima, de quem a avó era devota.

Com o filho sem clube, Vanda, a mãe, voltou para Frederico Westphalen. Ariel ficou. A família da namorada o acolheu e, em Alvorada, estaria mais perto das oportunidades. Por sorte, um empresário apareceu, Felipe Carvalho, que tem contato em alguns clubes. Em abril, Felipe levou-o para a Ponte Preta. Ariel treinou com garotos. Saía-se bem até que um adversário acertou-lhe com força na coxa. Mal conseguia caminhar no retorno para casa. Enquanto faz fisioterapia e se exercita numa academia de Alvorada, aguarda uma nova chance. Quem sabe sua luz volte a brilhar.

 

A reportagem original

Dicas para filhos e pais

"O processo de seleção afunila, e os garotos precisam lidar com a expectativa da família e dos empresários. Essa transição não é fácil para um adolescente, exige esforço, aprender a tropeçar. Temos uma geração hoje com muitas habilidades físicas, mas que não sabe lidar com as frustrações. Cabe aos adultos da rede de apoio orientar os atletas de que existe uma possibilidade de não dar certo. E os clubes deveriam oferecer variadas alternativas na formação do cidadão, para que o garoto vislumbre outras oportunidades que não apenas o futebol."

Evanea Scopel, psicóloga do Inter

"Lógico que todos os meninos querem começar em um grande clube, mas nem todos conseguem. Quem começa em um clube menor pode chegar ao mesmo objetivo no futuro, só que com um pouco mais de demora. O mais importante para o atleta é, desde cedo, conhecer suas limitações. Se souber trabalhar concentrado em cima delas, crescerá."

Daniel da Costa Franco, ex-lateral-esquerdo e ex-treinador dos juvenis e juniores do Inter

"A formação nas categorias de base obedece a uma seleção natural, conforme a exigência de qualidade. Para a família, diria que a cobrança precisa ser motivacional e não por resultado. Isso é o que mais prejudica. Vejo muitos garotos de 16, 17 anos cansados da rotina de jogador, estressados. É necessário ter convicção na carreira. A jornada é longa, e a competitividade, diária. Para quem teve de sair do clube grande e foram atuar em um de menor expressão, a receita é seguir trabalhando porque é possível retornar em outro momento, mais preparado e até à frente dos ex-colegas."

Júnior Chávare, diretor executivo interino do Grêmio