QUANDO O FUTURO RECOMEÇA

Vinte anos após sua morte, Renato Russo

é símbolo de uma relação entre ídolos

e fãs que é pouco comum no século 21

Texto

Gustavo Brigatti

gustavo.brigatti@zerohora.com.br

ilustraçÃO

Gilmar Fraga

Porta-voz de uma geração. Maior poeta do rock brasileiro. Arauto dos desajustados. Messias. Guru. Gênio. Renato Russo já era tudo isso quando morreu, na madrugada do dia 11 de outubro de 1996, aos 36 anos. Vinte anos depois, o culto ao vocalista da Legião Urbana segue firme entre aqueles que o conheceram em vida – e tenta fazer sentido para uma geração que parece não ter mais todo o tempo do mundo.

Foi Herbert Vianna quem verbalizou uma sensação conhecida por todos que viviam o auge do rock brasileiro nos anos 1980: a Legião Urbana estava mais para uma religião do que para uma banda. À frente dessa igreja, Renato Russo comandava shows tão épicos quanto catastróficos, discursava intensamente e gostava de conceder entrevistas bombásticas, quase sempre pontuadas por boas frases de efeito.

– E mesmo assim, mesmo trabalhando para isso, ele gostava de negar o rótulo de porta-voz de geração – comenta o jornalista e escritor Arthur Dapieve, responsável por uma das primeiras biografias de Renato, O trovador solitário. – Claro que ser contraditório fazia parte da figura pública que ele construiu.

De fato, pelo menos quando comparado com seus colegas de geração – como Cazuza, Paralamas do Sucesso, Engenheiros do Hawaii, Titãs e outros – Renato Russo reina absoluto entre os termos buscados na internet segundo o Google Trends. Só perde para sua própria banda, a Legião Urbana. No Spotify, também fica à frente com folga dos contemporâneos do BRock, com mais de 770 mil ouvintes mensais.

 

 

– O que o Renato conseguiu pouquíssimos conseguiram na música pop: foi idolatrado pelas letras e pela performance, pela poesia e pela energia, pela música e pela atitude – diz Carlos Marcelo, escritor e autor da biografia Renato Russo – O filho da revolução, que acaba de ganhar relançamento.

Estar no lugar certo e ter falado as coisas certas foi o segredo do sucesso de Renato, segundo o jornalista e crítico musical Marcélo Ferla. O momento de efervescência política que o país passava com a redemocratização e o boom do rock nacional também serviram de catapulta.

– Ele surgiu dizendo exatamente o que as pessoas da idade dele queriam dizer. E continuo fazendo isso. Pais e filhos, por exemplo, é o amadurecimento de Geração Coca-Cola – pontua.

Dapieve reforça que a atemporalidade das letras do legionário estão entre os segredos de juventude eterna:

– Mesmo adulto ele continuava, de uma maneira muito positiva, a escrever sobre angústias juvenis. Essas angústias continuam a existir para a molecada de hoje, o que mantém as letras do Renato atuais e acessíveis.

Mas chegar até essa nova audiência não é tarefa simples. Especialmente quando a própria música não tem mais a mesma força e importância que tinha quando Renato e outros gigantes dominavam o cenário.

– O Renato fala muito com o pessoal do século 20, certamente. Mas tenho minhas dúvidas se ele falar com quem tem menos de 20 anos, por exemplo, uma garotada que está mais interessada no youtuber da semana e esse youtuber sequer sabe quem é o Renato Russo – opina Ferla.

Não que Renato e sua banda estejam esquecidos. Pelo contrário: segundo a gravadora Universal, a Legião Urbana continua vendendo cerca de 250 mil cópias de discos por ano. Somadas, as vendas totais dos álbuns solo de Renato e da Legião chegam a 25 milhões de unidades vendidas. São números impressionantes para um mercado em franco encolhimento, mas que, sozinhos, podem ser insuficientes para manter viva a memória do trovador brasiliense.

Muito do esforço de tentar rejuvenescer a fórceps o culto de Renato parte da Legião Urbana Produções Artísticas. Comandada pelo filho do músico, Giuliano Manfredini, a produtora há anos desenvolve ações que visam deixa em evidência a obra de Renato Russo. Para a efeméride dos 20 anos de morte, por exemplo, a empresa promoveu o lançamento de um romance inédito, uma coletânea de releituras de músicas da Legião por novos artistas, a reestreia de um musical no Rio e uma caixa com toda a discografia solo de Renato – e ainda trabalha em uma exposição prevista para estrear em 2017 no Museu da Imagem e do Som de São Paulo.

O último dos Messias

Surgir um novo messias nos moldes de Renato, portanto, é algo praticamente impensável. Também professor de Jornalismo na PUCRJ, Dapieve atesta que a música é apenas um elemento na vida de seus seus alunos na faixa dos 20 e poucos anos – e nem é o principal.

– A relação com a música hoje é diferente, tem um caráter mais utilitário. Por isso, acho difícil surgir outra figura como o Renato, porque não há messias sem seguidores.

O biógrafo Carlos Marcelo aponta que o máximo de culto que o mundo da música experimentou nos últimos tempos foi com os Los Hermanos. E, mesmo assim, com ressalvas:

 

– Em menor proporção, mas com a mesma intensidade e fervor, percebi nos shows do Los Hermanos uma aura também de idolatria, mas não de messianismo. E a adoração parecia ser mais à estética da banda do que aos integrantes isoladamente.

O LEGADO

DE RENATO

O romance perdido

THE 42ND ST. BAND

De Renato Russo

Romance, Companhia das Letras, 216 páginas, R$ 34,90

Uma banda de rock formada por garotos que alcançou a fama nos anos 1970, responsável por discos icônicos, entrevistas espirituosas e shows catárticos. Poderia ser o Led Zeppelin ou o Black Sabbath, mas era a The 42nd St. Band, banda que só existiu na cabeça do estudante brasiliense Renato Manfredini Jr. – mas cujos planos de dominação mundial seriam utilizados mais tarde quando seu mentor assumisse a alcunha de Renato Russo e formasse a Legião Urbana. O livro foi escrito quando Renato tinha entre 15 e 16 anos e se recuperava de uma cirurgia mal sucedida para tratar uma doença óssea – ou seja, estava com muito tempo livre. Em suas mais de 200 páginas, a obra reconstrói, com riqueza de detalhes, a história da banda fictícia, incluindo a vida pregressa de seus integrantes, entrevistas com grandes veículos de comunicação, críticas dos discos, mapa de turnês, repercussão de conflitos internos, resenhas de shows, trechos de letras e uma detalhada linha do tempo contendo formações e discografia comentada. The 42nd St. Band acaba sendo mais do que um mergulho na intrigante mente do adolescente consumidor voraz de cultura pop que era Renato Russo: é também uma espécie de planta baixa da carreira que pretendia construir assim que voltasse a andar. Um dos seus trechos, uma fala de um dos personagens, é profético a respeito do que a própria Legião Urbana enfrentaria mais tarde:

– Um dia a imprensa vai se cansar da gente. Quer dizer, se partirmos pra algo novo, completamente diferente do que estamos fazendo agora (e acho que vamos fazer isso mesmo), eles vão nos apunhalar pelas costas. 'Ei, malucos da 42nd St., voltem pro som original.' Não que a gente se importe, que fique claro.

Novas versões das canÇões

Cantora Duda Brack está entre os 12 artistas de Viva Renato Russo 20 anos

Versões de músicas da Legião Urbana existem desde sempre nas mais diferentes interpretações – algumas consideradas até melhores que as originais, como costumava dizer Renato Russo a respeito de Por enquanto na voz de Cássia Eller. Lançado no final de setembro, o projeto Viva Renato Russo 20 anos reuniu 12 artistas nacionais para um tributo ao messias do BRock. A opção foi pela novíssima safra do pop rock brasileiro espalhada pelo mapa – da banda do Rio Grande do Norte Plutão já foi planeta aos paulistas da República, passando pela banda paraense Molho Negro e os curitibanos new wave do Uh La La. O repertório escolhido é também variado, indo de hits como Tempo perdido e Faroeste caboclo a faixas menos conhecidas, como Mariane (do álbum póstumo Uma outra estação) e Bumerangue blues (gravada originalmente pelo Barão Vermelho em 1983 no disco Declare guerra!). O resultado final é irregular e, em sua maioria, serve para comprovar que as versões originais são superiores. Há honrosas exceções, como a releitura cheia de personalidade de Bumerangue Blues pela cantora Duda Brack e a psicodelia acelerada da Codinome Winchester para Índios.

Na sequência, um box com os discos da carreira solo de Renato Russo será lançado pela Universal. No pacote, estarão The stonewall celebration, Equilíbrio distante, O último solo, Presente e Duetos.

No teatro e no cinema

Bruce Gomlesvsky está na remontagem de Renato Russo – A peça

Que Faroeste caboclo e Eduardo e Mônica deveriam virar filmes, disso pouca gente tinha dúvidas. A trágica história de amor entre João de Santo Cristo e Maria Lúcia ganhou os cinema em 2013 – com Isis Valverde no papel da mocinha e revelando Fabrício Boliveira como o anti-herói do serrado. Agora, é a vez do guri de apartamento e da descoladona de Brasília se encontrarem nas telas.

– Estamos aguardando a liberação da conta do projeto para dar início à produção, que esperamos que seja breve. Cumprindo o cronograma, estaremos filmando em março e lançando o filme no final de 2017 – diz Bianca de Fillipes, da Gávea Filmes, mesma produtora de Faroeste caboclo.

Do longa de 2013 o novo filme herda também o diretor (René Sampaio) e o processo de escolha dos atores, uma oficina ministrada pelo preparador de elenco Sérgio Penna. Segundo Bianca, Eduardo e Monica será trabalhado em cima do roteiro escrito por Domingos Oliveira e Victor Atherino – considerado mais solar e divertido que a primeira versão apresentada por Luiz Bolognesi.

– O objetivo é fazer um filme com qualidade técnica, que agrade ao público e também aos fãs da Legião como nós – explica Bianca. – Nosso sonho é ter fila na porta do cinema, mas também fazer um filme com a qualidade que a obra do Renato merece.

Fila certa terá Renato Russo – O musical, que estreia em curta temporada no dia 11 de outubro no Rio. Remontagem de Renato Russo – A peça, o espetáculo estrelado pelo ator Bruce Gomlesvsky já está com ingressos esgotados, mesmo sem qualquer suporte financeiro.

– A montagem é a mesma que estreou, com a mesma equipe, desde os músicos da Banda Arte Profana, até todos os técnicos que são apaixonados pelo trabalho e toparam entrar no projeto ganhando menos que o valor de mercado para viabilizar a montagem – detalha Bianca, também produtora do musical.

 Megamostra

em 2017

Acervo recuperado do apartamento do cantor no Rio

Quando vivo, Renato Russo era avesso a quase todo tipo de exposição e discreto com sua vida pessoal. Morto, não terá como escapar de ter sua vida privada e profissional exposta, em uma nababesca mostra no Museu da Imagem e do Som (MIS), em São Paulo. Desde 2015, os técnicos do MIS trabalham no acervo recuperado do apartamento do cantor no Rio, que estava fechado desde sua morte, em 1996. Do lugar, foram retirados para preparação centenas de objetos de Renato, como pinturas, rascunhos e letras com trechos inéditos, fotografias raras, desenhos, manuscritos de livros e peças de teatro, além de roupas, quadros e pertences pessoais. O projeto está programado para ser estrear em 2017 e já é considerado uma das mais emblemáticas do MIS.

Mais do filho da revolução

RENATO RUSSO – O FILHO DA REVOLUÇÃO

De Carlos Marcelo

Biografia, Editora Planeta, 464 páginas, R$ 49,90

Lançada originalmente em 2009, Renato Russo – O filho da revolução trouxe um dos mais completos panoramas sobre a vida do músico. Para além de organizar informações notórias a respeito de Renato, o jornalista Carlos Marcelo trouxe elementos inéditos da obra do cantor – como rascunhos de sucessos como Faroeste caboclo, Eduardo e Monica e Tempo perdido e letras vetadas pela censura. Para a nova versão, lançado no final de setembro, o autor reconstitui os últimos anos de vida do líder da Legião Urbana, com ênfase no processo de criação e produção dos últimos trabalhos em estúdio.

– Foi um período curto, de muito sofrimento e angústia, mas artisticamente produtivo: ele gravou dois discos solo e os dois últimos discos da Legião – explica Marcelo. – Por meio de novas entrevistas, com amigos, como Marisa Monte, e músicos que trabalharam com ele nesses discos, como o tecladista Carlos Trilha, foi possível reunir mais informações e também falar sobre o que aconteceu com a obra da Legião depois da morte do Renato, em 11 de outubro de 1996.

Mais do que um apêndice, o novo conteúdo costura informações que vieram à tona nas autobiografias lançadas nos últimos anos por Dado Villa-Lobos (Memórias de um legionário) e Fê Lemos (Levadas e quebradas) em livros de memórias de integrantes do New Order e de Morrissey – duas das maiores influências de Renato. Nada, no entanto, que interfira na narrativa.

– Quase sempre as mudanças são imperceptíveis – e esse é o objetivo, que os acréscimos estejam integrados naturalmente à narrativa original. O que, claro, exigiu muito mais trabalho do que simplesmente acrescentar um capítulo – comenta Marcelo.

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