O filho sem rancor

e o pai sem memória

Tabajara Ortiz Netto retornou para a casa que havia deixado mais de uma década antes. Não por reconciliação no casamento desfeito ou vontade própria, mas sob a força de um diagnóstico: debilitado devido a um grave problema de memória causado por distúrbios circulatórios cerebrais, o engenheiro mecânico aposentado não poderia mais viver desassistido. Precisaria de ajuda para cumprir a prescrição diária de 10 medicamentos, além de ser incentivado a se alimentar e a manter os hábitos de higiene.

Comovida com a condição do ex-marido, Maria Clarice Gerhardt, 62 anos, não se opôs à iniciativa de Mariana, a mais próxima do pai entre os quatro filhos do casal, e o recepcionou na residência de Gravataí. Coube ao caçula, Luiz Felipe, supervisioná-lo durante boa parte da adaptação, no início de 2015. Recém-saído de um negócio desfeito, o empresário de 27 anos estava em busca de um rumo na carreira. Somou-se à angústia da indefinição profissional a reaproximação involuntária com Tabajara, com quem o contato, até então, restringia-se a um telefonema por mês, no qual geralmente tratavam de problemas.

– Você se separou de mim, não deles – suplicou Clarice ao antigo companheiro em um dos momentos de maior afastamento dos filhos.

Tabajara, hoje com 67 anos, e Luiz Felipe começaram então a exercitar de forma permanente, ainda que invertidos, os papéis de pai e filho, restituindo os laços quase desfeitos. Para acomodar melhor o recém-chegado, Luiz Felipe abriu mão do próprio quarto, mudando-se para o dormitório da mãe. Passava os dias envolvido com as demandas de Tabajara – idas ao médico, ao barbeiro, à farmácia. A nova rotina, imposta de súbito, alterou os ânimos dos familiares. O rapaz se flagrava irritado com a teimosia do pai, e surgiam brigas. Sentindo-se sobrecarregado na divisão de tarefas, impacientava-se também com os irmãos.

– Eu recordava algumas coisas do passado, juntava e despejava. Fui meio insensível – recorda o filho.

Desorientado, Tabajara confundia nomes, não se recordava de pontos elementares da própria história, perdia-se – por vezes, não era capaz de encontrar o caminho até o banheiro ou informar a cidade onde vivia, imaginando estar em um bairro da zona norte de Porto Alegre ou em uma cidade do Interior. Clarice se esforçava para que o ex-marido se situasse, mostrando envelopes de correspondência e apontando as placas dos carros na rua.

– É Gravataí – frisava ela.

Luiz Felipe (à direita) abriu mão do seu quarto para acomodar Tabajara, que voltou a viver na casa da família mais de 10 anos após a separação

A família vem procurando incluir Tabajara em pequenas tarefas domésticas, como varrer o pátio, alimentar os cachorros, retirar o prato da mesa após a refeição. O aposentado dedica horas à leitura de jornais, ainda que tenha dificuldade para fixar o conteúdo do noticiário ou até mesmo perceber que está relendo a edição da véspera. Nas palavras cruzadas, comete erros de ortografia que não ocorriam no passado, colocando “ç” no lugar de “ss”. A televisão ocupa parcela significativa do tempo.

– Qual foi o placar do jogo? – questiona Luiz Felipe, querendo testar a memória do pai duas horas depois do final de uma partida de futebol.

Tabajara geralmente não lembra. Com a insistência do filho, acaba recordando alguns poucos lances. A habilidade com a matemática, exercitada durante toda a vida, também se mostra desgastada. Até pouco tempo, o aposentado não sabia informar a própria idade. Um dia, ao filho José, disse ter 27 anos. O primogênito então propôs um cálculo que o pai não conseguiu responder:

– Se você nasceu em 1949 e estamos em 2016, quantos anos você tem?

A frequência dos lapsos de memória vem diminuindo. O neurologista que acompanha o paciente observa uma melhora no quadro. Na casa espaçosa onde Luiz Felipe implantou um serviço de telentrega de pizzas, parece ter sido superado o período de maior instabilidade, e vem se firmando uma atmosfera mais amena para a convivência da família refeita. Clarice e os filhos percebem traços até então adormecidos em Tabajara – definido como arredio e de gênio difícil, ele agora se mostra mais bem-humorado e afetuoso, capaz de gracejos com as meninas. Luiz Felipe se sente à vontade até para tomar a iniciativa de abraçá-lo.

– Foi um desafio. Acho que é uma prova de que podemos ser pessoas melhores. Tem que querer, correr atrás. Hoje podemos chegar mais próximo dele, tentar tornar ele também uma pessoa melhor. Temos que ajudar – diz Luiz Felipe.

Sobre um móvel na entrada da residência, estão dispostos 11 porta-retratos com cenas registradas ao longo dos últimos anos: encontros de família, a formatura de José em Engenharia de Produção, uma festa de aniversário para Nícolas, o primeiro netinho da casa. Tabajara não aparece em nenhuma das imagens. Constatando a lacuna, Clarice planeja:

– Temos que botar uma foto dele.