Inversão

de papéis

Publicado em 24 de junho de 2016

Quando os filhos passam a cuidar dos pais: Larissa ajuda Donato, que tem Alzheimer. Quatro irmãos se revezam no amparo a Leonor, que sofreu um AVC. Luiz Felipe acolheu Tabajara, que, com grave problema de memória, voltou a morar na casa da ex-mulher.

Na casa dos Breitenbach, em São Leopoldo, Larissa, que tem Down, ajuda a mãe a cuidar de Donato, que sofre de Alzheimer

Texto

Larissa Roso

larissa.roso@zerohora.com.br

Imagens

Júlio Cordeiro

julio.cordeiro@zerohora.com.br

 

Edição

Ticiano Osório

design

Diogo Perin

Donato é levado até a mesa da cozinha, senta em uma cadeira com uma folha plástica para proteger o estofado e recebe um avental de pano com estampa de corações, amarrado atrás do pescoço, improvisado como babeiro. Tem o olhar fixo em um ponto indistinto à frente, murmura frases desconexas. É hora do jantar na residência dos Breitenbach, em São Leopoldo, e o protético aposentado de 71 anos está diante de um prato com a porção habitual: duas fatias de pão, queijo, um ovo cozido. Larissa, 35 anos, se acomoda ao lado, espeta o garfo em um pedaço de pão e o mergulha no café com leite antes de levá-lo até a boca do pai. Ele ainda mastiga quando ela já está aproximando a xícara para virar um gole da bebida.

– Cuida, filha! Devagar – pede a costureira Maria Helena, 69 anos.

O aposentado está cooperativo nesta noite de quinta-feira do início de maio. Há ocasiões em que ele não abre a boca. A recusa faz com que a refeição se prolongue por até duas horas, angustiando a filha, que insiste, forçando o talher contra os lábios do pai:

– Ele tem que comer, senão ele morre!

Donato tem Alzheimer, doença incurável que provoca a destruição dos neurônios, causando a perda progressiva e irreversível das funções cognitivas. Os primeiros sinais surgiram há cerca de cinco anos, e a piora se acentuou nos últimos 12 meses, o que o deixou totalmente dependente do auxílio da mulher e da filha única, que tem síndrome de Down. Larissa vem experimentando uma inversão de papéis comum a certa altura da vida: velhos e debilitados, os pais se destituem da posição de referência que ocupavam e passam a receber dos filhos aquilo que se habituaram a ofertar: cuidados.

 

No lar dos Breitenbach, mãe e filha dividem todos os afazeres: a faxina, o preparo do almoço, o banho e a troca de fraldas de Donato. À exceção de um breve período na Educação Infantil, Larissa não frequentou a escola – magoada com a rejeição de uma professora, não quis retornar. Em sessões de até quatro horas diárias de estudo, a menina foi alfabetizada pela mãe, que lhe ensinou também a tricotar, fazer bainhas, pregar botões. Donato ainda trabalhava em um consultório dentário quando começou a ter esquecimentos e rompantes de agressividade, repetir-se nas conversas, perder-se na rua. Larissa chorava, percebendo que havia algo errado. Depois de uma sucessão de consultas e exames médicos, Helena teve de interpretar o diagnóstico para a filha, que resume assim quando questionada sobre o assunto:

– O pai tem um problema na cabeça. Ele vai esquecer as coisas aos poucos.

O Alzheimer começa avariando a memória recente, apagando primeiro as informações mais novas, e avança em direção às lembranças mais antigas. De forma gradual, o doente pode sofrer alterações no senso de orientação, na personalidade, na linguagem, na atenção, na mobilidade e no sono. Depois da explanação inicial, a jovem nunca fez perguntas sobre o estado de saúde do pai. Nos momentos mais delicados, quando vê a mãe muito abalada, tenta consolá-la:

– Mãe, não é bem assim, ele vai melhorar. Não fica assim.

Helena não tem coragem de contradizê-la, mas está segura de que a filha distingue com clareza o pai de antes e o de agora. O de outrora chegava do trabalho e acolhia a garota em um abraço apertado, conversava sobre os acontecimentos do dia, compartilhava a leitura das notícias do jornal, disputava partidas de um joguinho de memória. Hoje a jovem fala sozinha – vez ou outra, recebe um monossílabo num fio de voz como resposta.

– Papito, você gosta de mim?

– Sim.

– Eu também gosto muito de você.

Querendo se certificar da permanência do sentimento no ser em quase todo ausente, ela insiste, em um diálogo que se reproduz, em sequência, por até três vezes:

– Papito, você gosta de mim?

O cotidiano da família, que antes viajava pelo Interior para aproveitar festas típicas, hoje se restringe ao interior da morada no bairro Scharlau. Em dias rigorosamente iguais, Larissa cumpre os mesmos horários para acordar, tomar um copo de leite, arrumar as camas, dar a merenda do pai, cozinhar, lavar a louça, tomar chimarrão. A espera por mais um capítulo da trama adolescente Cúmplices de um resgate, do SBT, é norteadora: de segunda a sexta-feira, às 20h30min, Larissa se acomoda, imperturbável, diante da televisão.

– Que horas são? – questionou repetidas vezes, durante uma das visitas da reportagem, receando que a entrevista a privasse de acompanhar as aventuras das gêmeas Manuela e Isabela.

Helena sai só para o necessário – mercado, padaria, farmácia –, temendo que o marido sofra uma queda e a filha não consiga erguê-lo sozinha. A costureira também se preocupa com assaltos ou alguma imprudência no fogão. Larissa é a segunda força, age sob as orientações da mãe, mas nesses momentos tenta tranquilizá-la:

– Mãe, pode ir! Eu assumo, sou a dona.

 

Larissa presta auxílio a Helena em uma série de tarefas, como levar Donato de um cômodo a outro da casa, colocar a fralda no pai, fazer a barba, vestir e dar o jantar

Donato costuma ficar em uma cadeira, com os pés erguidos à frente, no cômodo em que a mulher e a filha estão. Para levá-lo de um lado a outro, Helena o puxa pelos braços, enquanto Larissa o empurra nas costas, tentando vencer a rigidez das pernas. Depois dos poucos passos entre a cozinha e o quarto de costura, Donato desce com estrondo sobre uma cadeira.

– Conseguiu sentar? – quer saber Helena.

– Mil novecentos e... – balbucia o companheiro.

– Mil e novecentos? Mil e novecentos faz muito tempo – comenta a mulher diante do disparate.

Larissa ri da conversa sem sentido. Aproveita a proximidade para abraçar os pais ao mesmo tempo, comprimindo a bochecha contra a testa de Donato, num repente de afeto:

– Nós três juntos!

No quarto de Larissa, bichos de pelúcia cobrem a cama. Sobre a penteadeira, batons, cremes hidratantes e perfumes dividem espaço com bonecas. Ela mostra a coleção de DVDs de desenhos animados: Pica-pau, Tom e Jerry, Scooby-Doo, Cinderela. Um de seus passatempos preferidos é “brincar de medicina”. De dentro do guarda-roupa, ela tira uma maleta branca, com uma cruz vermelha, contendo seringas de tamanhos diversos, frascos de medicamentos e soro, medidor de pressão. A aspirante a médica lê livros sobre o corpo humano e tem até jaleco, improvisado com uma camisa branca puída que era do pai. No bolso esquerdo, a inscrição já desgastada pelas sucessivas lavagens: Dra. Larissa. A brincadeira iniciada na infância se perpetuou. Com uma máscara cirúrgica, Larissa simulava incisões na pele da mãe e a aplicação de injeções. Para uma demonstração de suas habilidades com o estetoscópio, ela aceita auscultar o coração da repórter. Encaixa as hastes metálicas do aparelho nos ouvidos e encosta o diafragma no peito da paciente voluntária. Compenetrada, aguarda três segundos antes de atestar:

– Está ótimo!

Larissa cresceu ouvindo Donato imaginar o futuro – “Você vai poder estudar, ser alguém” –, e agora que o pai lhe falta ela mantém o tema entre suas pautas preferidas para um bate-papo.

– Gosto de falar de mim, da minha vida, do meu futuro – costuma destacar, ainda que tenha dificuldade de exprimir as vontades e expectativas que habitam seus pensamentos para um ponto ainda indefinível no tempo. – Gostaria que o meu futuro tivesse um pouco mais de alegria, de silêncio. Gostaria de ser médica.

Para o casal, desde que a síndrome de Down foi identificada – apenas nove meses após o nascimento do bebê –, o destino da menina a partir da morte de ambos sempre esteve entre as principais inquietações.

– Futuramente, o pai e a mãe não vão estar mais aqui – prenuncia Helena. – Você tem seus primos, um padrinho muito querido, tem a casa. Pode optar. Vai ter que viver com alguém, sozinha não vai poder ficar – orienta.

Concluídas a janta e a organização da cozinha – Larissa dança diante do balcão, enquanto ensaboa os pratos –, uma das últimas obrigações antes da novela é auxiliar no banho de Donato. Por conta das baixas temperaturas e da progressiva dificuldade para manter o marido em pé, Helena evita o chuveiro, à espera da doação de uma cadeira higiênica. Acomoda-o em um banquinho no banheiro e passa um pano molhado, enquanto a filha acaricia a cabeça do pai. As duas o erguem para colocar a fralda, vestir o pijama e guiá-lo até a cama. Cobrem-no com as cobertas até o pescoço. Sob um quadro com a imagem de São José e do Menino Jesus, enlaçado por um terço, o aposentado fecha os olhos. Ao lado do leito, mãe e filha unem as mãos diante do rosto para as orações.

– Pai nosso que estais no céu, santificado seja o vosso nome – inicia Helena.

Ao fazer o sinal da cruz, Larissa se curva para um beijo com estalo.

– Boa noite, pai.

– Boa noite.

Ela conta que as preces costumam ser acompanhadas de pedidos.

– Peço muita saúde, muita paz, perdão... – enumera, rindo ao ser indagada sobre quais seriam as possíveis falhas aguardando absolvição. – Peço perdão pelas mentirinhas que a gente faz – confidencia, em tom mais baixo.

A mãe já deixou o quarto, tem pressa de retomar as reformas de roupas depois de um dia em que clientes se estenderam no chimarrão da tarde, tomando-lhe o tempo que deveria ter sido dedicado às costuras. Larissa olha uma vez mais para o pai e eleva a voz para perguntar à mãe se já pode apagar a luz. Helena diz que sim. Cúmplices de um resgate já vai começar.

Como a lembrar o pai de antes, com quem, quando ele chegava, jogava memória, Larissa disputa uma partida solitária

No meio da reportagem, Larissa ri de uma conversa entre pai e mãe e promove um abraço coletivo: “Nós três juntos!”