ENTREVISTA

Betty Milan

Psicanalista e escritora

“Ao ver o pai decrépito, o filho se vê decrépito também”

Em A mãe eterna, a escritora e psicanalista paulista Betty Milan coloca duas mulheres frente a frente em uma das etapas mais delicadas da existência de ambas: a mãe quase centenária, com sérias dificuldades para enxergar e escutar, e a filha, que resolve extravasar na escrita as emoções conflitantes do período. Colunista do site da revista Veja, Betty trabalha com a autoficção, inspirando-se na relação com a própria mãe – Rosa, de 98 anos – para compor o livro que trata de velhice extrema, fragilidade e fim da vida. “Me sinto tão encarcerada pela missão atual quanto você pela sua idade. Somos reféns do tempo, as duas. Sempre fomos, aliás. Porém, eu antes não me dava conta porque o tempo é invisível. Só os efeitos dele é que não são”, escreve a narradora, que decide contratar um cuidador para tomar conta da idosa.

Você trabalha com a autoficção. Quanto da sua própria experiência está em "A mãe eterna"?

Quanto exatamente não sei dizer. Mas só escrevi este romance por ter me dado conta de que, por causa da idade avançada, a minha mãe de certa forma já não estava, havia se distanciado de mim, não tinha mais o mesmo interesse no que me concernia. Ao me transformar com ela em personagem de romance, consegui me distanciar do que estava vivendo e fazer o luto. A mãe eterna é uma metáfora da vida, diz respeito à passagem da condição de filha para mãe da mãe.

 

O momento da inversão de papéis pode ser causador de muita culpa nos filhos que precisam decidir o que fazer com os pais. Como encarar essa hora?

Tudo depende da relação com os pais, do tempo e dos recursos materiais de que os filhos dispõem. A solução do residencial geriátrico pode se impor, mas o melhor é a pessoa não sair da própria casa. Mamãe vai ficar na sua residência até o fim, e para isso eu mesma formei as cuidadoras que se ocupam dela. Ensinei que o velho tende a ser negativista porque esta é a sua maneira de preservar a sua independência e que é preciso ter paciência.

 

A decrepitude dos pais assusta porque representa também a futura decadência do filho?

Isso mesmo. Os filhos se espelham nos pais e, por causa desta relação especular, a decrepitude se torna assustadora. Noutras palavras, o narcisismo dificulta a relação. Por que dizem que filho de peixe é peixinho? Porque os filhos se espelham nos pais. Ao ver o pai decrépito, o filho se vê decrépito também, e por isso tende a se distanciar. Para superar a dificuldade, é preciso aprender a escutar o idoso.

 

Conviver com o pai ou a mãe extremamente debilitados pela idade e pela doença já é uma forma de viver o luto pela perda que virá?

Com certeza. A velhice extrema pode ser comparada à doença terminal. Por isso eu sou favorável a cuidadores especializados que não sofrem tanto quanto os familiares. Como nós hoje vivemos três vezes mais do que durante o Império Romano, o drama da longevidade precisa ser levado a sério, e nós precisamos nos perguntar até quando a vida deve ser prolongada.

 

A sociedade está pronta para esse debate sobre o prolongamento da vida? O subtítulo do seu livro é "Morrer é um direito".

Verdadeiramente pronta não, pois ainda não foi possível abri-lo, apesar do subtítulo do meu livro. Mas vai ficar pronta, ainda que não seja por uma questão humanitária. Vai ficar pronta porque uma grande verba destinada à saúde vai para os últimos três meses de vida. Isso não é possível.

 

O que é fundamental para o filho que decide assumir o cuidado do pai ou da mãe de forma integral?

Proteger o velho sem ser autoritário. É preciso entender que o velho luta pela sua independência. Por isso, em A mãe eterna, a mãe da personagem é comparada a Winston Churchill.

 

Sua personagem idosa de vez em quando dá umas escapulidas, expondo-se aos riscos de cair ou ser assaltada na rua, numa tentativa de reafirmar a independência que vai se perdendo. Essa nova relação que se estabelece pode ser também bem difícil para os pais, não?

Tão difícil para os pais quanto para os filhos. E, para vencer a dificuldade, é preciso ter humor. A mãe do romance é muito engraçada, como a minha mãe, que, por uma certa falta de crítica própria à idade, faz coisas inimagináveis. Nós todos aprendemos a rir com ela e a frequentamos muito. Mamãe tem 98 anos e tem uma vida social intensa.

 

Estamos vivendo cada vez mais. Do ponto de vista psicológico, trata-se de um grande desafio?

Depende de cada um. Há quem não se importe com a decadência física. Há quem não a suporte. Depende muito da relação com o espelho e com o limite.

Betty e a mãe, Rosa, de 98 anos