Flecha: 69 anos e
ainda em campo

– Tio, presta a atenção no jogo – frisou o menino de 11 anos ao senhor de cabelos grisalhos que, por um minuto, tirou os olhos do treino dos garotos que brigavam a cada centímetro do campo de terra batida localizado no Campo da Tuca, no bairro Partenon, em Porto Alegre.

O guri não sabia que ali, segurando um apito, usando camiseta azul e abrigo vermelho, estava um jogador que fez história no futebol brasileiro com a camisa número 7: o ponteiro Flecha. Aos 69 anos, Gilberto Alves de Souza ainda precisa trabalhar. A fama foi alcançada ao vestir os uniformes de Grêmio, América-RJ e Guarani de Campinas nos anos 1960 e 1970. A compensação financeira não veio junto.

– Enquanto ainda houver força, vou trabalhando. Gosto do que faço, a gurizada é boa – ressalta.

Flecha é um homem calmo. Tem paciência para passar o que sabe aos jovens do projeto social EsporteCoop, do Campo da Tuca, da Secretaria Municipal de Esportes. Dá gosto vê-lo, junto ao também ex-jogador do Grêmio Jacson, orientar os guris. É preocupado com os detalhes, mostra o posicionamento correto e cobra disciplina.

– Dá um tapa na bola e se desloca para receber. E tu (aponta para um outro menino), cuidado com as faltas. É preciso respeito com os colegas – exige.

Se hoje o porto-alegrense Flecha é um homem sereno, na época de jogador deu o que falar. Era do time dos polêmicos. Dentro e fora de campo. Habilidoso e rápido, despertava a fúria de seus marcadores. Como atacante do Grêmio, encarou grandes embates com o lateral-esquerdo Jorge Andrade no começo dos anos 1970.

– Não fugia da briga, ia para cima, essa era a minha função, tentar passar pelo marcador.

Mas foi no Rio que o ponta bonitão de cabelos lisos se esbaldou. Com a chegada de Tarciso ao Olímpico, em 1973, Flecha transferiu-se para o América. Dava trabalho aos adversários e também para os dirigentes. A fama de temperamental cresceu.

– Não era santinho – admite. – Fazia minhas festas.

A melhor fase da carreira estava por chegar. Em 1975, foi jogar no Guarani. Atuou ao lado de jogadores como Zenon e teve pela primeira vez seu nome lembrado para a Seleção Brasileira. Esteve no grupo que conquistou o Torneio Bicentenário dos EUA, em 1976, comandado pelo gaúcho Oswaldo Brandão. Desta passagem vestindo a camiseta do Brasil, um fato curioso: o ponteiro ajudou Rivellino a se safar dos punhos do lateral Ramirez no amistoso contra o Uruguai que terminou em briga generalizada.

– Notei que ele (Ramirez) foi em direção ao Rivellino. Estava furioso o uruguaio. Corri e parei ele com um chute. O Rivellino se aproveitou e chispou para o túnel em direção ao vestiário – ri Flecha.

A camisa Canarinho ajudou Flecha a ganhar dinheiro, que saía na mesma velocidade que entrava. Após deixar Campinas, retornou ao Rio Grande do Sul, onde jogou pelo Juventude, clube no qual encerrou a carreira em 1977. Daí, tentou a sorte como taxista. O negócio não pegou. De lá para cá, a luta tem sido diária. Três vezes por semana, às 7h, pega o trem em Canoas, onde mora com a mulher, Nilsa – tem duas filhas, Patrícia e Andréia –, vai até o Centro e embarca num ônibus até o Partenon. A soma do salário do projeto social e da aposentadoria ele prefere não revelar. Não é muito, mas dá para viver sem maiores sufocos. Ele não reclama, mas se tivesse uma máquina de voltar no tempo...

– Mudaria meu pensamento. Teria guardado um dinheirinho. Na época de jogador, era tudo festa, podia ter economizado. Estou sendo sincero. Mas não me queixo, não passo trabalho, tenho minha casinha, meu carrinho – diz, rodeado de crianças que abandonaram o treino para acompanhar o bate-papo.

Ao terminar a entrevista, Flecha desceu bem devagar as escadas de degraus quebrados do campo da Tuca. Enquanto caminhava, um de seus alunos começou uma divertida narração:

– E lá vai ele, entrando no Camp Nou, pezinho no chão. Este é Flecha.

– Quem dera – comentou o professor. – Já pensou eu no gramado do Barcelona?

“Se voltasse no tempo, mudaria meu pensamento. Guardaria um dinheirinho. Era tudo festa. Mas não me queixo, não passo trabalho, tenho minha casinha, meu carrinho.”

Paulo Dias, bd

“Enquanto ainda houver força, vou trabalhando”, assegura Flecha.