Criada nos escombros do que seria um hospital, a Vila do Esqueleto é o palco da encruzilhada em que Felipe se encontra aos 14 anos. Sem banheiro, sem água encanada e com ligação irregular de energia elétrica, o novo endereço adotado pela família em Porto Alegre, após a tentativa frustrada de recomeço em Torres, é o retrato do desamparo que ameaça o destino do adolescente. Felipe segue vagando pelas ruas, com passos cada vez mais violentos. Sem conseguir tanta esmola – com quase 1m70cm, não parece mais criança – comete infrações em busca do crack. Em momentos de lucidez, diz querer parar com tudo. Na fissura, é capaz de qualquer desatino por mais uma pedra.
Os vizinhos são despertados pelos gritos que ecoam na Vila do Esqueleto, em Porto Alegre. Passa das 23h de domingo, 26 de fevereiro de 2012. O palco da briga é há dois meses o novo endereço da família de Felipe. Bêbado, o padrasto ameaça o enteado de 14 anos, que reapareceu em casa após três semanas nas ruas e tomou o seu lugar na cama de casal, dormindo ao lado de Maria.
– Pode arrumar as vela que eu vou matar esse guri – anuncia Pedro para a mulher, com um pedaço de pau na mão.
Os moradores ouvem tudo sem intervir. Não querem se intrometer na confusão dos recém-chegados à favela, que ganhou o nome de Esqueleto por ter crescido ao redor dos escombros de uma obra inacabada, diante da Avenida Protásio Alves, no caminho para Viamão. As vigas que deveriam sustentar um hospital do Montepio dos Funcionários do Município da Capital – uma entidade de poupança privada que quebrou no meio da construção – delimitam desde 2006 a ocupação irregular, alvo de disputa judicial.
Nessa noite, ao perceber que o companheiro chegou embriagado, Maria tenta impedir a sua entrada no lar, o que desencadeia a briga. Ao deparar com Felipe dormindo no seu lugar, o padrasto interpreta o gesto da mulher como uma preferência pelo filho, com quem sempre teve uma relação tumultuada.
– Tu prefere ficar com um ladrão e vagabundo do que comigo – berra Pedro, que nunca se conformou com a passividade de Maria em relação a Felipe.
Revoltado, o padrasto força a entrada e derruba a porta da casa com socos e pontapés. Sobe na cama pisoteando o corpo do enteado, que se vira e revida a agressão pisando no peito de Pedro. Transtornada diante da luta, Maria pega uma faca e se mete no meio dos dois. Acerta um golpe no braço do companheiro, que foge urrando de dor. Ao buscar atendimento médico, recebe 10 pontos no ferimento.
– Meus filhos vão estar sempre em primeiro lugar. Eu não ia deixar ele matar o meu filho – justifica Maria.
Por mais que a doméstica diga que os atos de violência do companheiro são esporádicos, suas irmãs cansaram de vê-la ostentando marcas de agressões.
– Que adiantou trocar um bêbado por outro? – questiona uma delas, lembrando do pai de Felipe.
O tumulto familiar é apenas mais um sintoma dos riscos a que o menino está cada vez mais exposto. Foi para tentar protegê-lo que a mãe decidiu voltar a Porto Alegre, após dois anos em Torres. Temia que o filho acabasse morto em represália pelos furtos cometidos no Litoral. A decisão foi selada no dia em que Maria chegou em casa, ao retornar do apartamento de cobertura onde trabalhava como doméstica, e foi cercada por mais de 20 pessoas. Cobravam que ela pagasse tudo o que o filho surrupiara de um vizinho, incluindo serras elétricas, máquinas de cortar grama e furadeiras.
Foi uma das raras vezes em que alguém apanhou Felipe. Como parte de sua rotina de peregrinação pelas ruas, movida a crack, o menino vigiava casas em suas madrugadas insones, aguardava os proprietários saírem, quebrava as janelas, furtava o que conseguia e saía sem que ninguém percebesse. Preferia notebooks, que são rentáveis e mais fáceis de levar numa mochila, mas carregava nos ombros até TV de plasma. Com os eletrônicos, conseguia “pelo menos R$ 100” – cada cédula era convertida em pedras de crack. De casa, Felipe levou tudo. Quando não sobraram mais móveis e eletrodomésticos para vender, arrancou a porta e as janelas. Como sumiu até com o colchão, a família chegou a dormir no chão. Às vezes, levava o irmão mais velho para acompanhá-lo. Depois do ataque a uma obra, em 2010, seu irmão de 19 anos acabou preso, quando os dois fugiam com furadeiras nas costas. Por ser menor de idade, Felipe foi liberado. O adolescente conta a história rindo, como se tudo não passasse de uma brincadeira. Mas tem consciência de que seu período de imunidade está se esgotando.
– Agora eu já tenho 14, se assaltar vou preso. Por exemplo, se eu te matar, já vou pra Febem (hoje Fase). Se eu roubar já vou pra cadeia, e eu não quero – diz Felipe à repórter.
Apesar dos furtos praticados pelo filho e da angústia cotidiana por não saber quando ele vai aparecer em casa, Maria estava feliz ao chegar à Vila do Esqueleto, depois de seis meses morando de favor na casa da filha de 29 anos, na Vila Bom Jesus. Negociou com traficantes da quadrilha “Bala na Cara”, que chefia os negócios na favela, e pagou R$ 200 pelo terreno. Avisou o filho de que ali ele não podia “mexer nas coisas de ninguém”, senão seriam expulsos da vila onde moram pelo menos 200 famílias.
A vizinha Márcia Adriana Gomes Corrêa, 33 anos, se queixa das condições de vida no lugar, dos ratos de até 30 centímetros que dividem o espaço com crianças, dos carrapatos que sobem pelas paredes no verão. Mas Maria se sente privilegiada por estar ali. Pela primeira vez na vida, tem um “pátio grande” para estender roupa, uma vista para um matagal que lhe faz pensar que mora em uma “fazenda”.
– Tomara que não me tirem do meu paraíso – torce, preocupada com a ação que pede a reintegração de posse do terreno e ameaça de despejo os moradores.
Só que o filho é apenas um visitante eventual do casebre de duas peças. Passou o aniversário de 14 anos longe de casa e, ao retornar, virou o pivô da briga familiar testemunhada pela vizinhança. Após as ameaças do padrasto, Felipe voltou às ruas.
– Enquanto eles são crianças, todo mundo fica com pena e dá esmola. Quando crescem, as mesmas pessoas que os acostumaram a receber dizem: vai trabalhar, vagabundo. Como não conseguem mais dinheiro, ficam violentos – analisa o sociólogo Ivaldo Gehlen, coordenador do Censo das Crianças e Adolescentes em Situação de Rua de Porto Alegre, publicado em 2008.
Para a rede, uma lenda
Com passos desconhecidos em suas andanças, Felipe é procurado desde janeiro por educadores sociais do programa municipal Ação Rua. Ao todo, 13 equipes percorrem a cidade à procura de crianças e adolescentes que perambulam pelas esquinas. A partir da mudança da família para a Vila do Esqueleto, o caso, que vinha sendo acompanhado pelo núcleo da Bom Jesus, na região Leste, foi repassado para a unidade da região Baltazar/Nordeste.
Os desencontros que se seguiram a partir daí são um exemplo de por que a rede de proteção não consegue proteger. Passados cinco meses, os educadores designados para acompanhar Felipe ainda não conseguiram encontrá-lo.
– A gente brinca que o Felipe é uma lenda. Estamos sempre atrás dele, mas nunca conseguimos encontrar. Ainda não o conhecemos – lamenta a coordenadora do núcleo do Ação Rua Baltazar/Nordeste, Paulina Gonçalves.
Entre 24 de janeiro e 5 de abril, os educadores foram nove vezes à casa de Maria. Lamentam pelo fato de a mãe, que só foi encontrada em três dessas ocasiões, não ter cumprido a combinação de avisar quando o filho aparecesse.
Isso não significa que Felipe esteja desaparecido: nesse mesmo período, foi visto duas vezes na Vila Bom Jesus por educadores sociais do Ação Rua que atuam nas redondezas.
– Foram contatos rápidos e não fomos avisados na hora. Mas agora nós reafirmamos que, assim que o pessoal do outro núcleo o enxergar, tente uma estratégia para manter o menino por perto, para que possamos encontrá-lo e uma terceira vez não aconteça – diz a psicóloga Claudiana Poerscke de Oliveira Freitas, que até maio estava ligada ao Ação Rua Baltazar/Nordeste.
Há quatro meses, o próprio Felipe pediu ajuda ao Conselho Tutelar. Na véspera de seu aniversário de 14 anos, em 14 de fevereiro, apareceu na sede da Bom Jesus pedindo para ser internado em uma fazenda terapêutica. Queria se libertar do crack. Foi atendido pela conselheira Ana Cristina Medeiros Lima, que entrou em contato com o Ação Rua. A equipe foi até a casa de Felipe, no mesmo dia, à tarde, mas não o encontrou. Conhecidas como “as cheirosas” pelos vizinhos da Vila do Esqueleto, as educadoras deixaram um cartão de aniversário, escrevendo ao adolescente analfabeto que queriam conhecê-lo. Até o início de junho, continuavam sem notícias. A burocracia e a falta de estrutura fizeram Felipe sair outra vez do alcance da rede.
– Em uma semana, ele veio duas vezes aqui. Num dia, eu liguei para o Ação Rua e elas disseram que não tinham Kombi para o transporte, e a coisa acabou se perdendo – lamenta Ana Cristina, que explicou não poder encaminhar ela mesma a internação porque Felipe já não pertence a sua região.
As falhas de comunicação entre os serviços da rede são apenas um dos furos desta malha da qual Felipe costuma escapar. Responsáveis pelo acompanhamento de 98 crianças e adolescentes nas redondezas, os sete integrantes do Ação Rua na região Baltazar/Nordeste não conseguem dar atenção individual aos casos.
– Não é uma rede, são caniços. São demandas ultraurgentes e, se tu vais nos locais, nos abrigos, é tudo superlotado... Onde está o furo? Está na necessidade de mais equipes e vagas – avalia Claudiana.
Mesmo com as limitações, a Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc) comemora a diminuição do número de crianças que dormem nas ruas da Capital: já chegou a 200 e atualmente é de 70.
– Temos conseguido reduzir o número todo mês com monitoramento sistemático, mas há casos mais complexos – pondera Júlia Obst, da equipe de coordenação deste setor na Fasc.
Entre abril e junho deste ano, ZH encontrou Felipe três vezes. No dia 19 de abril, ao lado da mãe, a repórter localizou-o depois de uma hora de buscas pela Vila Bom Jesus. Perambulava vestido de camiseta polo, calça e tênis que um dia foram brancos, encardidos com graxa e pó. Surgiu atrás de uma cortina de fumaça do lixo queimado na Rua Marta Franzen, em frente ao Clube Náutico. Seguia em direção a um ferro-velho onde costuma vender o que cata na rua.
A mãe não sabe o que fazer
– Ô, meu filho, tu tá todo sujo – repreende-lhe a mãe ao abraçá-lo.
– Ah, eu tava trabalhando – responde Felipe, retribuindo sem jeito o carinho da mãe, que não via fazia quatro dias.
Explica que estava desmontando o motor de uma geladeira “lá no seu João”, o dono de outro ferro-velho na vizinhança. Responde às perguntas sem tirar as mãos do bolso, não mostra disposição para esticar a conversa. Está com o semblante fechado, escorado em um poste, em frente a um esgoto a céu aberto. Repete que quer ir para uma fazenda se livrar das drogas.
A mãe tenta uma aproximação.
– Não quer um colo? – pergunta.
– Não sou mais criancinha.
– Vem cá, meu filho. Não é mais nenezinho, né, já fez 14 anos... – insiste.
Felipe obedece ao chamado, dá mais um abraço. Mas diz que tem que ir embora. Precisa trabalhar. Despede-se apressado, como se a mãe atrapalhasse seu caminho.
– Vai com Deus – diz para a mãe no último abraço.
Na mesma noite, pega emprestada uma bicicleta do dono do ferro-velho para ir até o ponto de crack. Seu primo lhe deu R$ 20 para comprar quatro pedras para os dois compartilharem. Felipe some com o dinheiro e com a bicicleta. Um de seus refúgios é um matagal perto de um posto de gasolina da Avenida Protásio Alves, mas o adolescente muda de esconderijo a cada vez que é descoberto.
Maria volta para a Vila do Esqueleto, onde tenta impedir que o neto de nove anos siga o mesmo destino do tio – o que parece improvável. Foi chamada na escola porque o menino começou a faltar aulas e a relaxar nos deveres de casa.
– Por que eu tenho que ir para a escola, se o Felipe não vai? – questiona.
Maria sabe que nunca conseguiu dar limites para os filhos. Aparenta estar resignada com as circunstâncias. Tem convicção de que tentou tudo para salvar Felipe.
– Eu não sei mais o que fazer – confessa.
Em abril, ela se preparava para a chegada do segundo neto – a namorada do filho de 20 anos estava grávida, mas a família não tinha certeza se o filho é dele ou de Felipe, que também teve um relacionamento com a mulher, de 29 anos. A dúvida permanecerá para sempre: aos sete meses de gravidez, a gestante sofreu duas paradas cardíacas e morreu antes de dar à luz.
Embora todos tenham lamentado, ninguém na família pareceu se espantar. Felipe já perdeu um irmão assassinado e outra irmã de tuberculose. Em março, ele mesmo foi ameaçado com um revólver 38 por um vizinho, depois de derrubar uma criança de dois anos no chão ao tentar tirar de suas mãos um par de tênis. O tio do menino foi tirar satisfações e só baixou a arma porque Maria apareceu de repente. Felipe diz não temer mais nada.
– Depois que me queimaram na rua, perdi o medo de tudo.
A criança virou um moço
Em fevereiro deste ano, ao chegar a um supermercado na Avenida Protásio Alves para fazer compras, acompanhada pelos dois filhos, a ex-conselheira tutelar Lúcia Kümmel é surpreendida por um dos pedintes, que levanta da calçada apressado e atravessa seu caminho.
– Oi, lembra de mim?
Lúcia demora para reconhecer o rosto que não vê há quase três anos. Quando Felipe se identifica, percebe que o guri mirrado que tentou tirar da rua durante dois mandatos como conselheira na Vila Bom Jesus virou um moço de quase 1m70cm, a face salpicada de cravos e espinhas. Antes de cabeça raspada, agora ostenta um cabelo castanho crespo, com reflexos aloirados.
Apesar dos tantos casos que atendeu nos seis anos em que trabalhou no Conselho Tutelar, a socióloga que hoje integra o Conselho Municipal dos Direitos da Infância e da Adolescência não se esqueceu de Felipe. Foi um dos casos que mais a marcaram. Lembra bem da incursão que fez para tirá-lo de baixo da ponte e do dia em que ele bateu à porta do conselho para pedir tratamento contra o crack. Mesmo ao ver que o adolescente continua nas ruas, Lúcia não acha que seu trabalho foi em vão. Se a rede não tivesse tentado tudo o que tentou, o quadro hoje seria pior.
– Para mim, a boa notícia é ele estar vivo. É inédito – avalia.
Uma notícia ruim é o que a mãe de Felipe mais teme. Maria costuma acordar no meio da noite assustada com barulho de automóveis. Pressente que chegará o dia em que um deles vai parar diante de sua casa para lhe comunicar uma tragédia envolvendo seu filho caçula. Reza por um milagre para que Felipe escape das duas únicas opções de futuro que Maria vê para ele, caso continue sua peregrinação pelas ruas: a cadeia ou a morte.
– Eu falei pra ele: sai dessa enquanto tu não tá morto. Se existe Deus no céu, que olhe pra baixo e tire meu filho dessa – ora.
Para Felipe, futuro ainda é um lugar longe demais. Ele não sabe sequer onde estará amanhã. Age movido pelos instintos da mente e pela fissura do corpo. Mas sente que chegou a uma encruzilhada.
– Às vezes eu penso pra frente, às vezes eu penso pra trás. Quando eu penso pra frente, penso que não vou usar mais drogas, vou ficar perto da minha mãe. Quando penso pra trás, a droga pensa mais alto do que eu – reflete.
Por enquanto, ainda não sabe se vai para frente ou para trás. Vive repetindo que quer ir para uma fazenda terapêutica. Mas em novembro, quando foi internado para nova rodada de desintoxicação de drogas na clínica São José e tinha uma chance concreta de conseguir uma vaga, disse aos educadores do Ação Rua que não queria, como mostra o relatório do programa:
“Em visita na clínica novamente no mês de novembro, Felipe colocou que não gostaria mais de ir para a fazenda terapêutica e que já havia conversado com a mãe. Disse que iria estudar e fazer um curso. Felipe relatou que, se tivesse levado umas palmadas quando criança, hoje não estaria na clínica. Se seu pai estivesse com ele, também não.”
Felipe inventa tantas versões de si mesmo, que é difícil descobrir em qual se pode confiar. Sua fala é pontuada por mentiras e omissões. Três anos atrás, mentia sobre seu endereço, sobre sua família, sobre sua idade. Hoje, mascara o que faz para conseguir dinheiro nas ruas. Ao ser questionado sobre o furto de uma bicicleta na Vila Bom Jesus, primeiro nega sete vezes, insistindo que havia devolvido o objeto dias depois. Como percebe que a mentira não convence, acaba admitindo o furto – que tinha sido relatado anteriormente a ZH pelo dono da bicicleta e pelo primo de Felipe que havia dado dinheiro a ele para comprar crack. E por quanto vendeu o veículo? Felipe responde assim:
– Vendi por 100 real...
Faz uma pausa de dois segundos e em seguida completa a frase:
– Mentira!
O jogo entre mentira e verdade, uma constante em sua jornada, se repete:
– Foi 50 real... mentira! Foi por mil real... mentira! Não, não, vendi por 60 real... mentira!
Em meio às gargalhadas, continua:
– Adivinha por quanto?
– 10?
– Menos...
– 5...
– Menos...
– Menos de 5?
– 25! Mentira... Vendi por 5 real.
– Só? O valor de uma pedra?
– A bicicleta tava toda quebrada...
Em sua última versão, diz que a correia estragou, que teve de ir caminhando desde a Vila Bom Jesus até o bairro Rubem Berta com a bicicleta na mão até conseguir vendê-la. O diálogo se dá na manhã de 4 de junho, quando Felipe está em casa. Apareceu na noite anterior para dormir, após nove dias de ausência. Nesse período, diz que estava trabalhando em uma obra, nos arredores do posto de saúde 24 horas da Vila Bom Jesus. Contou que ganhou “R$ 65 e depois R$ 55” por 10 dias de trabalho como servente de pedreiro, carregando sacos de cimento, preparando a massa. E que gastou tudo em crack.
– Eu caí de novo nas drogas – conta, como se a pedra não fosse sua rotina.
Depois, ele mesmo emenda:
– Pra falar a verdade, eu só não fumo quando eu não tenho dinheiro. Eu vou no mercado, peço, peço (esmola)... aí a pedra fala mais alto do que eu.
Felipe conversa coçando a cabeça. Diz que é caspa, a mãe desconfia de piolho. Tem as mãos encardidas, as pontas dos dedos queimadas – marcas deixadas pelo fumo de crack. Os braços são repletos de cicatrizes – cada uma conta parte de sua história. Exala o cheiro de quem não toma banho há dias. Não para quieto. Pega uma sacola com três bergamotas, começa a fazer malabares típicos de quem pede esmola na sinaleira. Come uma atrás da outra. Pega uma faca na mão e começa a golpear o peito de um papagaio de gesso que é uma das únicas peças decorativas da casa, erguida com tábuas do lixo.
– Eu não tenho maldade com ninguém, sou um guri legal – diz.
Tem consciência de que nem sempre age como um guri legal. Com um martelo na mão, bate em um banco de tábuas em frente à casa a cada frase, como se desse uma sentença para a própria vida:
– Quando eu tô na rua, não faço nada. Só uso droga. Me destruo. Acabo com a minha vida. Jogo minha infância fora. Destruo a minha mãe. Destruo a vida do meu sobrinho – julga, entre marteladas.
Felipe tem vergonha por não saber ler. Diz que quem passa por ele nas ruas pensa que ele é “um burro, um pateta”. Queria que fosse diferente.
– Todo mundo diz pra mim: “Ah, um guri tão bonito atirado nas drogas”.
No dia 9 de maio, quando ZH o encontrou outra vez em casa, estava inquieto. Queria sair. Escolheu como destino o Parque da Redenção, o lugar de que mais gosta na cidade. Nessa tarde, passa correndo ao lado do monumento ao Expedicionário, cumprimenta a “tia” que vende sucos em uma barraquinha, dá uma cantada em duas jovens que caminham pelo parque.
– Gosto de dar tapas na bunda das gurias e sair correndo – confessa, com um sorriso maroto.
Ao se aproximar do chafariz onde costuma tomar banho, se agacha. Finca as mãos impregnadas da sujeira das ruas e começa a revirar o chão arenoso da Redenção. Felipe desenha corações em volta de seu corpo. Sai dali deixando pegadas com um chinelo de cada cor e cinco corações na areia.
Nessas horas, parece apenas um guri. Quando volta para casa, diz que nem sabe por que foge, de tanto que gosta de estar ali. Certa noite, ao acordar ao lado da mãe e perceber que ela havia posto um cobertor sobre ele, perguntou.
– A senhora que me tapou?
– Sim, tava frio.
– Ah, eu tenho uma mãe tão boa...
– E por que tu faz isso, meu filho?
Felipe se virou para o lado e não respondeu. De manhã, pediu polenta com ovo. Comeu dois ovos de duas gemas, um prato cheio de polenta. E foi para a rua outra vez.
Vagando sem destino, pensa que alguém pode lhe cravar um ferro nas costas e matá-lo enquanto está dormindo. Fala com a experiência de quem já viu amigos terem o mesmo destino nas esquinas da Capital. A naturalidade com que discorre sobre o risco de morte não combina com as espinhas de sua adolescência. É a voz de um veterano das ruas, que oscila as risadas de criança e o olhar nublado de quem aparenta estar permanentemente entorpecido. O mesmo guri afetuoso que costuma distribuir abraços apertados e dizer “eu te amo” para quem gosta também admite que pode acabar na cadeia em poucos anos, caso siga o caminho do crime.
– Um dia o mundo acaba... um dia eles conseguem me pegar.
Acostumado a escapar de quem tenta protegê-lo, completa com um desafio:
– Mas duvido me buscarem na corrida.
VEJA COMO ELE ESTÁ AGORA