Aos oito anos, Felipe confessa à mãe por que não consegue mais voltar para casa, mesmo quando quer. Os olhos vermelhos, a língua enrolada e o jeito agressivo mostram o início de um novo drama que, desde então, só se agravou. Com medo da sensação que não compreende, o menino aceita ir com a mãe até o Conselho Tutelar em dezembro de 2006. Lá, pede socorro.
– Me ajuda, tia. Quero parar, mas não sei o que fazer. Me leva para algum lugar, tia – suplica à conselheira Lúcia Kümmel.
É o apelo de quem sucumbiu ao crack.
Conheceu a droga na rua, onde cada R$ 5 ganhos com esmola compravam uma pedra. E logo descobriu que o prazer instantâneo, que vicia desde os primeiros usos, provocava uma angústia sem fim. Mãe de dois filhos, a conselheira Lúcia Kümmel ouviu consternada, mas não surpresa, o relato do menino. Sabia que há tempo o loló deixara de ser a droga mais consumida pelas crianças que perambulam pelas esquinas. O desafio de tirá-las das ruas, com o crack, foi elevado a um novo patamar.
Depois de uma mobilização do conselho para disputar uma das 32 vagas disponíveis no município na época, Lúcia conseguiu encaminhar Felipe para um período de 21 dias de desintoxicação na Clínica São José, em Porto Alegre. No dia da alta, em 7 de janeiro de 2007, a mãe foi apanhá-lo. Ao chegar em casa, o menino disse que ia brincar com os amigos e não voltou mais.
Trocou os lençóis, que a mãe fazia questão de esfregar no tanque para que ficassem cheirosos, pela companhia de ratos e baratas dos esgotos. Em 25 de janeiro de 2007, o Conselho Tutelar recebeu a informação de que o menino estava vivendo na ponte da Ipiranga com a Barão do Amazonas, com suspeitas de exploração sexual. Durante a abordagem, repararam que Felipe estava com uma faca, num dos primeiros indícios de agravamento da violência. Quatro dias depois, o conselho relatou os fatos à Promotoria da Infância e sugeriu a internação em fazenda terapêutica para protegê-lo.
Às vésperas do aniversário de nove anos de Felipe, a conselheira Lúcia tentou uma estratégia diferente para estreitar vínculos.
– Por que tu mora embaixo da ponte? – questionou.
– Ah, eu vou lá pra comer melhor – respondeu Felipe.
– Mas o que tu não tem em casa?
– Ah, xis... pastel...
– Então, se eu te der pastel, tu volta para casa?
– Ah, eu sou louco por pastel. Vai ser o melhor do mundo! – empolgou-se.
No dia da festa, em 15 de fevereiro de 2007, a conselheira levou todos os ingredientes para a casa do menino. A mãe preparou tudo com esmero. Enquanto contemplava o sorriso do filho comendo os pastéis que substituíam o bolo de aniversário, torcia para que a data marcasse o início de um novo ciclo.
Mas nada mudou. Como a rede municipal ainda não tinha vagas para internar crianças dependentes de crack por mais de 21 dias, o Conselho Tutelar levou quatro meses para conseguir um lugar para Felipe na Chácara Nova Vida, fazenda terapêutica mantida por uma organização religiosa no município de Sertão Santana. Na primeira semana, a educadora responsável registrou o progresso do menino em suas anotações.
“Segunda: chegou hoje. Está em adaptação. Demonstra ser bem espontâneo. É um pouco alterado e sem controle.
Terça: é bem agitado, mas tem condições, é bem esperto.
Sexta: é muito espertinho. Disse para o Samuel para incomodar bastante, que assim ele consegue o que quer.”
O plano era que ficasse nove meses internado para se tratar. Ficou dois. Nesse período, tentou fugir quatro vezes, até conseguir, em 13 de setembro. Dizia ter saudade da mãe, que alegava dificuldades de transporte para visitá-lo. Acabou devolvido pela direção, que argumentava não poder abrigar alguém contra a vontade.
– A fazenda tem 50 hectares e fica no meio do mato, não temos estrutura para vigiar todos os meninos. É perigoso, os meninos podem sair e ser picados por uma cobra no meio do caminho. Por isso, nem trabalhamos mais com meninos. Muitas mães largam aqui e nem buscam mais. Parece que querem se livrar – justificou em 2009 a presidente da Chácara Nova Vida, Noemi Alves da Silva.
Enquanto o vício corrompia as chances de reabilitação, os laços de Felipe com a família se enfraqueciam. A mãe cansou de procurar o filho sem encontrá-lo, seguindo pistas esporádicas recebidas de vizinhos que o avistavam em algum lugar. Em fevereiro de 2008, o Conselho Tutelar recebeu a informação de que ele estava pedindo esmola diante de um posto de gasolina, na Avenida Farrapos. A conselheira Tânia Frydrych foi até lá, acompanhada de Maria. As duas procuraram em todos os cantos. Só enxergaram um saco de lixo próximo ao cordão da calçada. De repente, tiveram uma visão estranha. O saco apresentava contornos humanos. Era o menino. Maltrapilho, sujo e drogado, em nada parecia uma criança. A mãe sentiu um arrepio. Pensou que Felipe estava morto. Mexeu no seu corpo e ele não acordou. Maria insistiu até ver seus olhos abrirem.
– Parecia que tinham colocado piche nele, de tão sujo. Os olhos, parecia que jorravam sangue, de tão vermelhos – contou.
No mesmo dia, Felipe foi internado no hospital São Pedro para nova rodada de desintoxicação. Às vésperas de sua liberação, em 28 de fevereiro de 2008, a rede enfrentava um novo dilema. Não havia para onde encaminhá-lo. O município só tinha vagas para adolescentes a partir dos 15 anos. Se voltasse para casa, recairia novamente. O Conselho Tutelar tentou um lugar novamente em Sertão Santana, mas a ONG que administra havia desistido de internar crianças, pelo alto índice de fugas.
Após três semanas de espera, a mãe foi ao Conselho Tutelar buscar informações. Estava esperançosa porque o filho continuava em casa e, graças aos medicamentos, recuperara peso e estava “bem gordinho”. Mas a vaga tão esperada para encaminhamento não veio. Mais uma vez, a tentativa de recuperação fracassou. O menino voltou para casa. E para as ruas.
– A prefeitura disse que só tinha convênio em clínica de tratamento para adolescentes com mais de 15 anos. Mas, nesse ritmo, ele pode não chegar aos 15 anos – preocupou-se Lúcia, que acompanhou Felipe até 2009, quando ele tinha 11 anos.
Com o aumento de vagas para tratamento na rede municipal, outras crianças podem ser poupadas do drama enfrentado por Felipe. Atualmente, Porto Alegre dispõe de 128 leitos para desintoxicação de crianças e adolescentes, com tempo médio de 21 dias de internação, e de 20 vagas em comunidades terapêuticas, que recebem dependentes a partir dos 12 anos, para nove meses de internação.
Apesar do aumento da rede, os profissionais que assistem às frequentes recaídas dos meninos lastimam o desperdício de esforços: sem o acompanhamento necessário após a internação, o período de 21 dias de desintoxicação se revela inóquo.
– É dinheiro jogado fora. As crianças ficam dopadas na clínica e, quando saem, começa tudo de novo – lamenta a psicóloga Claudiana de Oliveira Freitas, que trabalhou no programa Ação Rua Eixo Baltazar/Nordeste e também tentou resgatar Felipe.
No caso dele, nada funcionou. Aos 14 anos, o adolescente soma sete internações. Sem sucesso. A única diferença é que, como cresceu e não ganha mais esmolas tão facilmente como antes, começou a roubar para sustentar o vício. No rosto, carrega um sinal da degradação impulsionada pela pedra: seu sorriso já perdeu um dente na arcada inferior.
Violência à espreita
Com queimaduras de segundo grau no tórax e na face, Felipe chega ao Hospital de Pronto Socorro (HPS), em Porto Alegre, conduzido pela Brigada Militar, às 20h4min de 19 de maio de 2009. Coberto de bolhas, que se destacam sobre a pele vermelha e suja, o menino de 11 anos é encaminhado para a Unidade de Queimados. Está consciente e conta uma história que sensibiliza toda a equipe médica.
Diz que dois homens atearam fogo sobre seu corpo na Estação Farrapos da Trensurb, enquanto descansava. E que passa os dias vendendo bala de goma por ali. Sem mais nem menos, os dois agressores teriam chegado, atirado álcool e, em seguida, arremessado um palito de fósforo aceso. Em chamas, o menino saiu correndo e se atirou em uma poça d’água. Conseguiu evitar que o fogo causasse maior dano. As enfermeiras se emocionam, redobram os carinhos ao menino de olhos amendoados e cílios longos, que não tem casa para voltar. Quando perguntam por que os homens o queimaram, Felipe é lacônico:
– Não sei. Foi por maldade – diz.
Como não aparecem testemunhas, ninguém sabe se a história se passou exatamente do jeito como ele contou. Mas tampouco alguém ali está preocupado em questioná-lo, só querem cuidar dos ferimentos. Em três dias, Felipe estaria em condições de alta. Permanece apático, sonolento. A pele se recupera, mas as queimaduras exigem cuidado especial para não haver infecção e cicatrizes.
Acionada, a então assistente social do HPS Maria Nailê Morales começa a procurar pela família do paciente. Entra em contato com o serviço de Acolhimento Noturno, com o Conselho Tutelar. Descobre que o menino fugira do abrigo e que a mãe se mudara para Torres. Não desiste. Com ajuda da conselheira Lúcia, que acompanhava o caso na Bom Jesus, descobre o novo endereço da mãe. Juntas, acionam o Conselho Tutelar de Torres para avisá-la. Em uma demonstração rara de articulação eficiente na rede de assistência, o que parecia improvável se realiza: o reencontro entre mãe e filho.
No reencontro, a esperança
O Conselho Tutelar de Torres bate à porta da mãe de Felipe numa quinta-feira à noite, anunciando a internação do filho em Porto Alegre. A orientação é que Maria aguarde até que consigam um carro para levá-la à Capital, mas ela não consegue esperar. Como até sexta-feira de manhã o carro não aparece, pede R$ 39 emprestados à irmã para pagar a passagem e embarca. Quando chega ao Hospital de Pronto Socorro, Felipe se transforma. O guri apático e sonolento salta da cama, começa a chorar e rir ao mesmo tempo, abre os braços para receber o abraço do qual fugia há mais de um ano.
– Mãe! Mãe! Tu tá aqui comigo! – festeja Felipe.
– Sim, meu filho, vou ficar contigo.
O menino de 11 anos volta a repetir que não conhece quem fez aquilo com ele, desconversa quando Maria diz que gostaria de ir atrás dos responsáveis.
– Ah, mãe, mesmo que eu conhecesse eles, eu não queria que a senhora fosse atrás. O importante é eu estar aqui agora com a senhora.
Medicado e afastado das drogas durante a internação, Felipe anima-se com a ideia de ir morar em Torres. Também pergunta por Pedro, o companheiro da mãe, a quem agora chama de pai.
– Ué, mas tu não falava que não gostava dele? – surpreende-se a mãe.
– Não, traz ele aqui. Eu quero que o pai vá morar com nós lá em Torres – diz.
A mãe vai à Vila Bom Jesus procurar Pedro, de quem estava afastada há alguns meses, por brigas conjugais. Os dois se reconciliam e o padrasto vai até o hospital ver o menino, prometendo que se mudará para viver com eles em Torres assim que acabe o serviço em uma obra, na semana seguinte.
A assistente social do HPS se emociona com as mudanças, sentindo-se recompensada pelo esforço para reatar os vínculos familiares.
– Parece que ele nasceu de novo quando viu a mãe. Fizemos uma tentativa e deu certo, isso nos deixa muito emocionados – comemora.
Com carona de um microônibus da prefeitura de Torres, mãe e filho partem juntos de Porto Alegre, no fim da tarde de 24 de maio. Antes da alta, as enfermeiras dão brinquedos e uma camiseta do Grêmio de presente para o menino, que usa os lápis de cor emprestados por elas para deixar uma mensagem de agradecimento. Auxiliado pelos adultos, desenha as letras com traços imprecisos para escrever a primeira carta de sua vida.
– Obrigado pelas folhas. Obrigado pelos briquedos. Obrigado pelas ropas – escreve, rumo ao novo endereço, a chance de traçar um novo caminho.
Quando perguntam o que ele quer ser quando crescer, hesita. Depois de instantes em silêncio, pensativo, responde:
– Acho que vou ser padre ou pastor evangélico. Eu vou vir visitar e vou benzer vocês tudo – sonha.
Na nova vida, o menino acostumado a dormir debaixo da ponte passa a ter como playground o tradicional cartão-postal da mais bela praia gaúcha. Nas areias do Estado que mais atraem turistas durante o verão, corre com o vento de outono soprando no rosto, fazendo estrelinhas que aprendeu nas aulas de capoeira no abrigo por onde passou em Porto Alegre. Abre os braços como se tudo aquilo ali lhe pertencesse. Sorri com uma inocência que até duas semanas atrás parecia ter sido consumida pelo crack. Com as unhas limpas, um moletom amarelo novo e um boné azul para proteger o rosto do sol, obedecendo às recomendações médicas, Felipe desfila com orgulho a nova versão de si mesmo.
Assustado pelas queimaduras que sofreu, pelas lembranças do corpo em chamas, abandona o figurino maltrapilho. Satisfeito ao reencontrar a proteção materna, faz uma promessa à mãe.
– Eu juro que nunca mais vou fugir. Eu nunca mais vou ficar longe de ti, porque se eu não tivesse na rua isso não teria acontecido. Se eu tivesse ouvido tu e o Pedro, eu não teria me machucado. A rua só me leva mal – admite.
Sela o compromisso com um beijo no rosto, um abraço apertado. Demonstrações de afeto que passa a exibir várias vezes ao dia, como se quisesse recuperar o tempo perdido.
– Te amo, mãe. Eu tava com saudade – repete o menino.
Faz questão de dormir de mãos dadas com Maria na nova casa, localizada em uma vila atrás da Praia da Guarita. É uma construção de alvenaria que estava desabitada e foi emprestada à família por uma vizinha.
– Acho que ele tem medo que eu vá fugir – brinca a mãe.
A casa onde moram não tem sequer energia elétrica: a antiga locatária sumiu deixando dívidas de R$ 200 em contas de luz e água. Mas tem dois quartos e piso colocado – luxos para a família que chegou a Torres só com caixas de roupa. Com uma prancha de isopor que encontrou jogada na praia, Felipe agora tem como principal diversão o sandboarding. Sobe com a prancha nas dunas de areia, que ele chama de “barranco de terra”, e desliza de peito, em estilo peixinho.
– Olha, tia – exibe-se.
Felipe é matriculado em uma escola municipal no bairro São Francisco. Depois do almoço de 27 de maio de 2009, vai até lá para conhecer. Sai sozinho, levando o sobrinho de seis anos, o filho da irmã criado pela mãe. Volta animado, dizendo que a escola é “tri”. A mãe o adverte de que será matriculado na primeira série.
– Tu sabe que tu vai ter que estudar com os pequeninhos, né? Não vai reparar, não vai ficar brabo.
– Não vou ficar brabo, eu quero é estudar – garante Felipe.
O clima de otimismo prevalece, mas é rondado por uma ameaça. O crack está tão incrustado na vila, que até nos fundos da casa da tia materna, que mora a uma quadra de distância do novo lar da família, há um ponto de tráfico. Os três primos sucumbiram à pedra: um foi assassinado com dois tiros aos 14 anos, por desavenças envolvendo a droga. Outro, pescador, virou dependente. E o terceiro foi preso por tráfico de crack.
Além de ver seus três filhos derrubados pelo crack, a tia convivia com outro drama no pátio de casa. Um ano antes, sua neta de criação, de 15 anos, passou a viver com um traficante em uma casa alugada por ela no mesmo terreno onde morava. A tia começou a desconfiar quando viu a movimentação de carros diante do portão, especialmente à noite. Ao pressionar a adolescente, ouviu dela a confissão. Atordoada, a tia planejava vender a propriedade para forçar o casal a deixar sua casa.
– Não quero me incomodar, sou analfabeta e não entendo muito as coisas, mas não gosto disso. Já avisei o Conselho Tutelar – explicou.
Enquanto conta seu drama, um Golf branco com assentos de couro estaciona diante da casa e a adolescente aparece para lhe entregar uma sacola. Cinco minutos se passam e um motoqueiro para em frente ao portão, também procurando pela casa dos fundos.
Em meio ao vaivém do ponto de tráfico, Felipe circula de bicicleta, aparentemente indiferente ao movimento.
– Ele nem sabe que aqui vende essas coisas. Acho que não tem perigo – minimiza a mãe.
Mas tinha.
A volta para as ruas
Nos dois primeiros dias em que comparece às aulas na escola em Torres, em 18 e 20 de junho de 2009, o menino de 11 anos se irrita com as risadas dos colegas de sete anos da primeira série, que o chamavam de grandão. Briga com a professora, que pede que tire o boné dentro da sala de aula. Contorna com dificuldade as letras do alfabeto, copia sem entender cinco frases passadas pela professora, como “Vovó plantou o rabanete” e “Totó é amigo do gato”.
Perdido naquele lugar, acanhado pela disciplina que nunca aprendeu a obedecer, Felipe começa a rejeitar a escola. Volta a procurar as ruas e o crack. Embora continue regressando para casa, chega cada vez mais tarde. Meia-noite, uma hora, duas horas, três horas, quatro horas da madrugada. A mãe reconhece a incompetência para dar limites. Tem medo de xingá-lo, magoá-lo a ponto de ele nunca mais voltar. Tolera suas escapadas. Só quer que ele volte para casa todas as noites, que nunca mais desapareça. E então o ciclo recomeça.
Em agosto, o menino passa sua primeira noite fora. E a segunda. A mãe procura pela vila e não o encontra. No terceiro dia de ausência, o padrasto, que cumpriu a promessa e se mudou para Torres para morar com a família, sai a procurá-lo pelo centro. Vai a pé, porque Felipe havia sumido com a bicicleta que Pedro usa para catar latinhas. De repente, ao se aproximar do ginásio municipal Alberto Teixeira Rosa, em frente à Lagoa do Violão, vê o contorno do enteado. Apesar do anoitecer das 18h, consegue reconhecer as feições do menino, iluminadas pela chama vinda de um cachimbo improvisado com lata de alumínio para fumar crack. Está em companhia de um adulto, que aparenta ter 30 anos. Ao ver o padrasto se aproximando, Felipe larga a lata e sai correndo, assustado, até ser alcançado e levado para casa.
Com auxílio do Conselho Tutelar, a mãe consegue internar o filho em uma clínica para desintoxicação dois dias depois, em 2 de setembro. Fica 16 dias no Hospital Santa Luzia, em Capão da Canoa. No primeiro dia em casa, chega a voltar para a escola. Como está sob o efeito da medicação e não consegue acompanhar as aulas, a direção sugere que Felipe passe a receber acompanhamento escolar doméstico. Mas, no segundo dia em casa, foge outra vez. Diz que vai encontrar os amigos e desaparece, numa rotina conhecida da família. A segunda internação ocorre em 7 de novembro, depois de Felipe passar mais de três semanas longe. São mais 17 dias no hospital. Em vão.
Em dezembro, o menino começa a pedir esmolas a senhoras bem-vestidas que saem carregadas de sacolas em frente ao maior supermercado de Torres, ao lado da Rodoviária. Diz a elas que tem fome e quer comprar feijão para ajudar em casa. Com o dinheiro, fuma crack na soleira do ginásio abandonado.
– Quando elas me dão o dinheiro eu saio correndo, né, se eu contar o que eu vou fazer elas vão me xingar. É melhor pedir do que roubar, né – diz.
Aniversário sem festa
Segunda-feira de Carnaval em Torres. O dia em que Felipe completa 12 anos, em 15 de fevereiro de 2010. Não há festa nem presente, mas o menino aproveita a festa dos outros. Carregado de sacos plásticos, passa a madrugada na Praia Grande com a mãe e o sobrinho. Enquanto veranistas se divertem com o show do trio elétrico à beira-mar, a família aproveita para catar latas de refrigerante e cerveja.
Se perde da mãe e do sobrinho e retorna sozinho à vila onde a família mora, às 6h50min, carregado com quatro sacolas cheias de latinhas. Assim que chega, se dirige a um ferro-velho para vendê-las. Arrecada R$ 20 e compra o café da manhã para a família – dois sacos de bebida láctea e pães, além do cigarro. A mãe e o sobrinho haviam chegado um pouco antes. Em casa, Felipe come com todo mundo e dorme, cansado. Às 11h, desperta e começa a insistir que a mãe vá vender as latinhas que ela juntou durante a madrugada. Em 15 minutos, o menino fuma dois cigarros, deitado na cama. Joga as cinzas no chão e a fumaça para cima, olha para o teto.
– Eu não gosto que ele fume, mas é melhor fumar cigarro do que as porcarias, né? – resigna-se Maria.
A casa está revirada, com roupas pelo chão. Ao lado da cama de Felipe estão os dois sacos cheios de latinhas. O padrasto também está lá, mas permanece quieto, cortando tomates para o almoço, sobre a pia de madeira. Pedro e a mãe do menino brigaram. Ela se revoltou porque, no meio de uma briga com Felipe, ele bateu no caçula. Ficaram marcas nas costas.
O dia é como outro qualquer, não é por ser o seu aniversário que seria diferente. Nem no Natal ganhou um presente, por que no aniversário ganharia? Quando perguntado sobre o que queria, hesita.
– Queria ganhar qualquer coisa. O que eu mais queria era um boné – responde.
De tanto mentir a idade para os policiais que o abordam, dizendo que tem 14, o menino esquece até de quantos anos está completando.
– Quantos anos eu tenho mesmo? – pergunta para a mãe.
– São 12 anos. Doze anos de sem-vergonhice! – brinca Maria.
Felipe sabe do que a mãe está falando, e não disfarça. Diz que quer ser internado em uma fazenda para se tratar da dependência do crack. Ficar nove meses, para completar o tratamento. Promete que desta vez não vai fugir, que desta vez será diferente. A mãe já pediu vaga para o Conselho Tutelar, aguarda desde a semana anterior. Acha que um tempo mais longo é a única solução. As internações provisórias não fazem efeito.
– Quero ir, eu vou conseguir ficar lá pra me tratar um pouco – concorda o menino.
Mas agora a fissura dá sinais de estar voltando, e Felipe insiste novamente para que a mãe vá vender o alumínio recolhido no Carnaval. Já tem R$ 10 no bolso das suas latinhas, mas quer mais dinheiro. Maria havia prometido que lhe daria uma parte da venda, em retribuição por ele auxiliar na casa, no café da manhã. E então a mãe obedece às ordens do filho, que joga os dois sacos de latinha sobre os ombros. Maria segue atrás dele na mesma rua, até o vizinho, que compra o alumínio. É Felipe quem comanda toda a negociação, coloca os sacos na balança, pega os R$ 10 do pagamento e dá a metade para a mãe.
No caminho para casa, encontra uma adolescente de 16 anos que conheceu na praia. A menina veio de Sergipe para vender artesanato, vai embora no fim do Carnaval. O aniversariante pega na mão dela, diz que é sua namorada. E vai embora a seu lado. No bolso, tem dinheiro suficiente para três pedras de crack.
A mãe olha o filho ir embora com a esperança de que ele volte.
– Tenho muito medo. Já perdi um filho, se eu perder mais um, fico louca – teme.
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