Como viver a cidade pelo esporte
A ciência provou que praticar esportes na rua traz benefícios ao ser humano, e o hábito faz parte do cotidiano do porto-alegrense
REPORTAGEM
Bruna Vargas
EDIÇÃO
Eduardo Rosa
DESIGN | ILUSTRAÇÃO
Leonardo Azevedo
FOTOS
Ronaldo Bernardi
PROGRAMAÇÃO
Guilherme Maron
Espaço de trabalho, lazer e convivência, ruas, praças e parques da Capital também funcionam como academia a céu aberto para parte dos porto-alegrenses. Além das dezenas de equipamentos públicos que oferecem quadras e atividades esportivas gratuitas mediante agendamento, 329 de um total de 649 praças e os nove parques da cidade contam com estrutura para a prática dos esportes mais diversos, do futebol à corrida, do skate ao beach tennis, e atraem movimento, acompanhando o ritmo da cidade.
Os benefícios são comprovados pela ciência: um estudo da Universidade de Illinois, nos Estados Unidos, aponta que exercitar-se ao ar livre ajuda a aumentar os níveis de concentração e criatividade; uma pesquisa da Universidade de Coventry, no Reino Unido, mostra que a prática de atividades físicas em áreas verdes pode diminuir a pressão arterial. A Universidade de Glasgow, na Escócia, constatou que quem se exercita ao ar livre fica 50% mais feliz do quem faz isso em ambientes fechados. Basta circular pelas áreas verdes de Porto Alegre no começo da manhã ou no fim da tarde para perceber que muitos porto-alegrenses parecem se dar conta dos efeitos positivos de se relacionar com a cidade por meio do esporte.
- A gente vê isso com muita felicidade. As praças e parques são lugares que podem e devem ser visitados pela população. Para nós, toda forma de usar esses espaços é um objetivo alcançado. E o esporte é uma delas - diz o secretário municipal do Meio Ambiente e da Sustentabilidade, Maurício Fernandes.
Considerado pela prefeitura referência de parque com vocação esportiva, o Marinha do Brasil oferece 15 quadras de diferentes esportes, campos de futebol e pistas de ciclicsmo, atletismo, patinação e skate. O local tornou-se tão emblemático que o trecho 3 da revitalização da orla, em uma área junto ao parque, será dedicado às atividades esportivas, com mais 10 campos e quadras oficiais. A Praça da Encol é um exemplo de local que concentra, proporcionalmente, uma diversidade grande de opções - conta com 27 mil metros quadrados, seis vezes menos que a Redenção -, e atrai os diferentões: além das quadras poliesportivas, marcadores de corrida, cancha de bocha, equipamentos de academia e uma estação do BikePoa, há quadras de beach tennis no local, que também é utilizado para a prática de ioga e até para aulas de canicross, um tipo de corrida com cachorros.
Mas nem só lugares com infraestrutura direcionada a esportes específicos reúnem quem quer colocar o corpo em movimento. Diariamente, pessoas e grupos praticam da corrida ao bicicross em avenidas e morros da cidade. Aos finais de semana, corredores de ônibus são fechados e não raro ficam lotados de gente praticando atividades físicas.
Segundo o professor do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Arlei Sander Damo, a profusão de gente praticando atividades ao ar livre não é novidade, mas tem se intensificado nas últimas décadas. Mais do que a busca por uma vida mais saudável, acredita, relaciona-se com a vontade de as pessoas interagirem com os espaços públicos.
- Na década de 1990, teve uma febre de academias de ginástica. A percepção que tenho é de que isso se estabilizou, mas se observa uma presença maior das pessoas na rua. Pode ter relação com outros fatores, como a migração de parte das atividades culturais, como o cinema, para espaços privados, como os shoppings. As atividades esportivas ganharam as ruas de uma maneira geral - avalia.
Democratizar a infraestrutura
Para o antropólogo, a movimentação de vias, praças e parques pelo esporte é positiva porque permite que as pessoas convivam e utilizem as áreas públicas. É importante, no entanto, que o poder público priorize a descentralização desses espaços, planejando políticas públicas que permitam o acesso a todos. É quesito onde a Capital patina: os parques com melhor infraestrutura concentram-se na região central, assim como a maior parte da malha cicloviária e todas as estações de aluguel de bicicletas.
- Se você perguntar para as pessoas, inclusive da periferia, quais as principais áreas verdes da cidade, é provável que elas citem a Redenção, o Parcão, o Parque da Harmonia. E Porto Alegre tem centenas. Os locais onde tem ciclovia ou aluguel de bicicletas estão nos espaços privilegiados. A democratização desses espaços é importante, e o poder público tem de estar atento a isso - diz.
Conforme a Smams, a instalação de equipamentos em praças e parques da Capital leva em consideração as características dos bairros para atender às necessidades dos usuários. Enquanto lugares mais tradicionais, por exemplo, costumam ter equipamentos como canchas de bocha, os mais novos privilegiam estruturas como playgrounds e pistas de skates.
A melhoria dos espaços afastados da região central, segundo o secretário, está no horizonte da pasta. Um projeto que já identificou cem praças com potencial de concessão à iniciativa privada prevê o chamado subsídio cruzado: para poder assumir uma área de maior visibilidade, o parceiro terá de se responsabilizar também por uma praça da periferia.
- Quem ganhar a concessão de uma, terá de cuidar de outra, periférica. Queremos levar esporte com qualidade para toda a cidade - diz Maurício Fernandes.
JUNTO À NATUREZA
Decepcionado com o mau estado das praças e parques nas proximidades do Centro Histórico, onde vive com a família, o casal de alemães Cosmas e Vera Grieneisen cogitava deixar Porto Alegre em definitivo e retornar ao país de origem cerca de cinco anos atrás. Em uma tentativa derradeira de melhorar a qualidade de vida, eles associaram-se ao Grêmio Náutico União. Os espaços ao ar livre do clube, acreditavam, seriam uma opção para colocar os dois filhos pequenos em contato com a natureza em um ambiente limpo e seguro.
A aposta não só se confirmou como descortinou ao casal uma nova cidade. A partir do interesse do filho mais velho pelas aulas de remo na sede da Ilha do Pavão, a cerca de 750 metros do Cais Mauá, os dois resolveram iniciar no esporte. A Porto Alegre vista no alvorecer, de dentro do Guaíba, marcou o início da reconciliação com a cidade.
- Se eu não tivesse a opção de praticar esse esporte, certamente não estaria mais na cidade. Muitas vezes as pessoas pegam o carro e passam duas horas na estrada para ver água e esquecem que Porto Alegre está no pé do Delta o Jacuí, que é um bioma muito interessante. Há aves, lontras. Estamos à margem de uma coisa linda - diz o músico da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre (Ospa).
Esporte mais antigo do clube fundado no começo do século 20, o remo é praticado em uma área de preservação que integra o Delta do Jacuí e está situada em um ponto livre da poluição que barra o contato dos porto-alegrenses com o manancial. Diferentemente de outros países, onde já foi considerado uma prática de nobres, o remo mostra-se uma possibilidade mais democrática na Capital, com valores a partir de R$ 105 para sócios - não é preciso ser associado para frequentar as aulas.
Segundo o coordenador técnico do departamento de remo do União, não há restrições para praticar: qualquer pessoa a partir dos 11 anos pode participar das aulas, que ocorrem pela manhã - bem cedo, quando o clima está ameno e há menos vento -, de segunda a sábado. Atualmente, a escola de remo conta com 55 alunos - há outros clubes e associações que oferecem o esporte. A garagem conta com mais de cem barcos, e as aulas têm duração de uma hora e meia.
- Para quem vai praticar por hobby, não tem restrição. É um esporte de baixo impacto, fortalece a musculatura, melhora a flexibilidade e a resistência cardiovascular. Além disso, o contato com a natureza contribui com a redução do estresse - diz o coordenador técnico do departamento de remo, Manoel Azzi.
INTERAÇÃO
Proprietário de uma loja de artigos para corrida, Daniel Girardi escolheu um jeito comunitário de promover o esporte ao qual se dirige o seu negócio na Rua 24 de Outubro. Inspirado em experiências que viu em outros países e no grupo de corrida da sua sede, em Caxias do Sul, desde o ano passado realiza treinos semanais com assessoria técnica gratuita para pessoas que querem correr trajetos de três, cinco ou 10 quilômetros pelas ruas de Porto Alegre.
- Nos Estados Unidos, há muitos clubes de corrida de rua que são oferecidos por lojas. Em Caxias, já fazemos há cinco anos. É uma porta de entrada para quem quer começar a correr. Muitas vezes as pessoas conhecem outras, que participam de outros grupos, e acabam se incluindo. É uma forma de interagir com a comunidade - diz.
Além do acompanhamento profissional, a loja oferece isotônico, água e frutas ao final dos treinos, que ocorrem aos sábados pela manhã. Retomados em janeiro depois de uma pausa de fim de ano, contam com duas opções de percursos: para quem corre até cinco quilômetros, as atividades se concentram no Parcão, enquanto o trajeto de 10 quilômetros deixa o local em direção à Redenção e retorna à loja no fim.
Mais do que ajudar principiantes, o grupo já atraiu corredores solitários em busca da sua turma. Foi o caso de Carlos Koller, 52 anos. O técnico em telecomunicações costumava correr sozinho até tomar conhecimento do treino coletivo por meio do Facebook - a loja costuma criar eventos para divulgar a atividade.
Viu a oportunidade de conjugar os treinos na rua, seus preferidos desde que ingressou no esporte, anos atrás, e a possibilidade de fazer amigos com o mesmo interesse. Além de habituè, tornou-se mobilizador de eventos recreativos e de treinos conjuntos fora do encontro semanal promovido pela loja - a mobilização paralela levou seis à São Silvestre neste ano.
- Sempre preferi correr na rua. Pista é monótono, na rua posso curtir o ambiente, passear pela cidade. Nunca retorno pelo mesmo caminho que eu fui. O grupo é acolhedor. Os professores são bacanas e dão uma orientação legal para ajudar a desenvolver a corrida. Viraram amigos - conta.
OCUPAÇÃO DO ESPAÇO
Sobre cangas estendidas no gramado dos principais parques e praças de Porto Alegre, um grupo movimenta-se em ritmo próprio indiferente às conversas, latidos de cães e gritos de crianças característicos dos espaços a céu aberto da cidade. Mais comum em estúdios e academias de ginástica, a ioga foi democratizada pelo Coletivo Namaskar, grupo de instrutores que dá aulas gratuitas da prática milenar em espaços públicos.
- Ioga ainda é uma coisa elitizada, tem alguns lugares que cobram caro. A ideia é possibilitar a prática para todos. Ela trabalha o fortalecimento e a elasticidade, mas vai além do exercício físico. Também trabalha a parte mental - explica a instrutora Ana Carolina Anés, 40 anos.
Ao todo, cerca de 10 instrutores dão aulas semanais de aproximadamente uma hora em praças e parques da Capital - na Redenção, algumas práticas chegam a reunir 70 pessoas em um mesmo horário. As aulas não seguem um padrão: cada um é livre para propor as atividades a seu modo. O calendário é divulgado pelo Facebook e são aceitas contribuições espontâneas como pagamento.
O caráter aberto dos eventos - não há restrição para praticar - atrai o interesse de alunos dos mais diversos perfis e faixas etárias. O fotógrafo Mathias Cramer, 58 anos, soube das aulas pelo Facebook há cerca de dois anos. Ele havia deixado de fumar e buscava um exercício para alternar com as caminhadas na rua e na esteira.
- Achei legal o jeito espontâneo da proposta. Começa como uma atividade física, mas é um combo: tem muitas trocas, de gostos, de estilos de vida. Sempre tem gente procurando - conta o morador do bairro Petrópolis, que frequenta aulas na Redenção, no Parcão e na Praça da Encol.
O entorno movimentado das praças não o incomoda. Pelo contrário, acredita que é um estímulo para ajudar a manter o foco nos movimentos da ioga.
Os instrutores também avaliam como positiva a interação dos praticantes com as áreas verdes da cidade. Mais do que exercitar o corpo e a mente, a ioga a céu aberto serve como uma forma de ocupação saudável dos espaços públicos.
- Quem frequenta as aulas no parque são pessoas que gostam de estar em contato com a natureza. É uma energia totalmente diferente. Mas mais do que isso: as pessoas estão usufruindo um espaço que é seu por direito e estão gostando. É muito legal - Diz Ana.