RENASCIDOS
Com pequenas e grandes vitórias, todas valorizadas pelo incidente que as colocou em perspectiva, se reconstrói aos poucos a vida dos quatro sobreviventes brasileiros do acidente da Chapecoense.
O peso da tragédia varia em cada caso, uns com mais dificuldades para recobrar um pouco do que eram antes, outros tão reinseridos na rotina que é difícil acreditar que passaram por tamanha provação. O que não muda entre os quatro é o valor que dão ao que chamam de "milagre" de terem sobrevivido.
Reportagem
André Baibich
Imagens
Lauro Alves*
Design
Brunno Lorenzoni
*a reportagem também tem fotos de Sirli Freitas, Robinson Sáenz, Juan Barbosa, Josep Lago, Silvania Cuochinski, Celso Pupo
É difícil porque são coisas que eu nunca passei na vida. Nunca passei nem imaginei passar por algo parecido. Tem de saber lidar com essa montanha russa, essa oscilação. Estive muito mal, melhorei, tentei voltar a jogar e não consegui. Sei que agora é questão de tempo. O pior já passou.
Neto, zagueiro da Chapecoense, foi o último a ser resgatado dos escombros. Com lesões no joelho direito, chegou a se recuperar a ponto de trabalhar com bola, mas voltou a sentir as lesões. Luta para retornar aos campos.
Lauro Alves
Eu simplesmente projetei minha vida profissional ainda na UTI. Sabia que, por mais que eu tivesse sete costelas quebradas, os dois pulmões perfurados, lesões nos dois pés, que eu voltaria a trabalhar.
Rafael Henzel, narrador e apresentador da Rádio Oeste Capital, voltou ao trabalho no dia 9 de janeiro, 41 dias após a queda do avião.
Lauro Alves
Minha vida tem sido muito intensa. Desde o princípio, quando cheguei a Chapecó, eu estava extremamente focado no que eu queria. Sabia que precisaria de tempo e paciência, mas sempre acreditando que seria possível. Sempre com trabalho, todo o dia, às vezes em turno integral. Eu me entreguei muito para voltar a jogar.
Alan Ruschel, lateral da Chapecoense, voltou aos campos em agosto.
Lauro Alves
Queria muito poder voltar a caminhar, a abraçar minha família em pé. Abraçar minha esposa, meus amigos. Ser independente. Estava muito ciente do que eu queria. E estava disposto a enfrentar qualquer tipo de dor e dificuldade para conseguir.
Jakson Follmann, ex-goleiro e hoje embaixador da Chapecoense, teve a perna direita amputada. Em fevereiro, colocou uma prótese e se adaptou a ponto de atingir a sonhada independência.
Sirli Freitas
Os primeiros passos
De volta da Colômbia, ainda lutando contra dores físicas e o intenso sofrimento psicológico, os sobreviventes têm contato com a nova realidade.
Follmann ganha uma perna
Em fevereiro, Jakson Follmann viajou ao Instituto de Prótese e Órtese (Ipo), em Campinas, para colocar a prótese. Sobre sua cabeça, pairava uma nuvem de pontos de interrogação. Não sabia se a adaptação seria bem sucedida, se poderia se movimentar normalmente.
Logo que chegou, foi submetido a massagens para se livrar das dores que tinha no local da amputação. No quarto dia no Ipo, a prótese. E as barras metálicas, em que apoiaria as mãos para reaprender a andar:
"Quando eu coloquei a prótese e dei os primeiros passos, agarrado nas barras, olhei para o lado e estavam minha esposa, meu pai e a minha mãe. Eles estavam chorando de felicidade. Eu parecia uma criança que tinha ganhado um doce. Só dava risada"
Quando retornou a Chapecó, usava um andador para se movimentar. Depois, voltou ao Ipo e, mais adaptado, recorreu às muletas. Após cerca de duas semanas, só uma delas era necessária para o apoio. Mesmo assim, tinha dificuldades com o tornozelo esquerdo, ainda em recuperação. Não podia ficar de pé por muito tempo que o pé ficava preto. Os médicos o aconselhavam a tirar a sandália ortopédica em casa e calçar tênis, para se adaptar. No início, a dor era excruciante.
Aos poucos, foi melhorando. Hoje, Follmann é independente, dirige por Chapecó sem dificuldades. Brinca que vai se aventurar em uma nova carreira no futebol:
— Vou tentar me arriscar na linha para ver se tenho alguma habilidade (risos).
A luta de Neto para voltar aos campos
Dos quatro sobreviventes, Neto é quem vive em uma espécie de transição e luta para recuperar a vida profissional. À noite, sonha que está em campo. Nos jogos da Chape, senta nas cadeiras da Arena Condá para torcer pelos novos companheiros e se imagina no lugar dos zagueiros.
Pergunta a si próprio o que faria em cada lance, como se posicionaria, como enfrentaria o atacante adversário. E acredita no tratamento para se livrar de lesões no joelho, ainda decorrentes da queda do avião.
Logo que retornou, ainda muito magro e debilitado, mal conseguia levantar halteres de um quilo em exercícios de fortalecimento. O objetivo principal da fisioterapia era livrá-lo de três lesões no joelho direito (ruptura parcial do tendão patelar, ruptura parcial do ligamento cruzado anterior e do ligamento cruzado posterior).
A evolução foi rápida, e logo ele apareceu, ao lado de Alan, para fazer trabalhos no campo. E aí, veio a recaída. O joelho voltou a doer, devolvendo Neto à fisioterapia.
Agora, ele tem esperanças de retornar no início de 2018, para fazer a pré-temporada. Mas se tiver de ser submetido a uma cirurgia, a volta será adiada. Religioso, apega-se à fé e ao carinho da família para se recuperar:
"Só Deus sabe o quanto eu ainda sofro em alguns momentos. Em casa, sozinho, deitado e sem sono. Vendo vídeos, escutando uma música, chorando."
Antes um pai rígido, o zagueiro conta como o acidente mudou sua relação com os filhos Helan e Helen, gêmeos de 10 anos.
A voz de Chapecó, de pulmões renovados
Para narrar jogos de futebol, é preciso ter pulmões em perfeita ordem. E os de Rafael Henzel saíram da mata do Cerro el Gordo perfurados. Mesmo assim, ele estava convicto: voltaria a trabalhar.
O retorno foi dia 9 de janeiro, no estúdio da Rádio Oeste Capital cheio de equipes de reportagem para registrar o momento. Ali, reassumiu as rédeas do "Som e Café News", programa matutino de notícias (ele ainda apresenta um noticiário esportivo no fim das tardes).
No dia 21, um momento marcante: narrou Chapecoense 2x2 Palmeiras, o primeiro jogo da equipe após a tragédia.
Assim como Neto é mais paciente com os filhos, Rafael tornou-se mais tolerante com a Chapecoense. Entende que é injusto tecer críticas a um clube que teve de se reerguer completamente.
Contesta torcedores mais apresssados que querem resultados imediatos e, pior, comparam o atual grupo com o que teve a trajetória interrompida pela queda do avião. Fala em "manter a chama acesa" cada vez que empunha o microfone.
"O meu renascimento e o da Chapecoense são paralelos. Sempre falo que eu, dentro da minha limitação, porque não sou narrador, sou só um cara que pego o microfone e vou embora, não vou deixar a chama se apagar, não vou empurrar para baixo. As pessoas batem muito, mas eu sei que a situação do clube é difícil porque a minha vida foi difícil de recomeçar."
A volta de Alan
A noite de 25 de julho foi de expectativa na casa dos Ruschel em Chapecó. Alan estava nervoso, ansioso com o que viria no dia seguinte.
O motivo do frio na barriga de um lateral experiente, com passagem por grandes clubes do Brasil, era um jogo-treino da Chapecoense contra o Ypiranga de Erechim.
Depois de ficar no banco na primeira etapa, foi chamado pelo auxiliar Emerson Cris. Mesmo com o frio na barriga digno de final de campeonato, foi bem. Alan carimbava, ali, o passaporte para vestir caneleiras e chuteiras no mítico gramado do Camp Nou, em Barcelona. No amistoso, derrota por 5 a 0. Mas pouco importava. Alan, Follmann e Neto foram ovacionados pelo Camp Nou.
"Foi um momento ímpar e único na minha vida. Deus me deu tantos presentes que ali foi mais um. Poder chegar perto dos meus ídolos, do cara que é um dos melhores do mundo."
De volta à realidade de Chapecó e à rotina de treinos e jogos de um atleta profissional, Alan reuniu-se com comissão técnica e dirigentes e fez um pedido especial. Não queria piedade. O tratamento dado a ele tinha de ser igual ao do restante do grupo.
Após boas atuações, chegou a engatar alguns jogos como titular. Depois, perdeu lugar por questões táticas. Suas preocupações passaram a ser velhas conhecidas: a busca por melhora nos treinamentos, a luta pela titularidade. Enfim, coisas do futebol.
Em maio, Rafael, Neto, Follmann e Alan tinham encontro marcado com uma viagem intensa, em vários momentos dolorosa, mas que foi importante para a cicatrização. Em Medellín, na Recopa Sul-Americana que colocou Chapecoense e Atlético Nacional-COL frente a frente, os sobreviventes foram ao local do acidente e ao hospital para agradecer a médicos, socorristas e ao povo colombiano pelo carinho daqueles dias traumáticos.
A ida até o cerro foi pesada. Neto, ao ver o local, foi tomado por dois pensamentos quase antagônicos. Por um lado, ao avistar o aeroporto ali, tão perto, lamentou por ter faltado tão pouco para o avião pousar em segurança. Mas, ao olhar para a mata fechada que denunciava as dificuldades do resgate, sentiu uma vez mais gratidão pelo "milagre" de estar vivo.
A reação de Alan Ruschel foi mais visceral. Sentiu uma energia negativa, um "peso". Quando relembrou a visita em conversa com GaúchaZH, abandonou por um momento a face sorridente com que costuma abordar a reconstrução de sua vida. Fechou a cara, antes de dizer, sem rodeios:
"Nunca mais quero voltar lá."
Para Alan, a viagem valeu pelo reencontro com quem ajudou a salvar sua vida. Neto também tem boas recordações do retorno ao hospital. Lembra que, ainda debilitado, havia prometido voltar e dar uma camisa para cada pessoa que o ajudou. Cumpriu a promessa.
Neto, 32 anos, segue com sessões de fisioterapia diárias. Três lesões em seu joelho direito foram consequência da queda do avião. Se apega no trabalho e na fé (frequenta a Igreja Batista em Chapecó aos domingos) para retornar aos gramados, enquanto aproveita o carinho dos gêmeos Helen e Helan, de 10 anos. Às vezes tem noites insones e lembra dos ex-companheiros. Lançou o livro Posso Crer no Amanhã, com suas memórias da tragédia.
Jakson Follmann, 25 anos, assinou contrato de três anos como embaixador da Chapecoense. Viaja para dar palestras e visita alas de amputados em hospitais. Quer fazer cursos de gestão esportiva a partir do ano que vem. Está completamente adaptado à prótese e sem dores. No fim de outubro, em uma festa em Chapecó, casou-se com Andressa Perkovski. Neto e Alan Ruschel estavam entre os padrinhos.
Alan Ruschel, 28 anos, chegou a engatar alguns jogos como titular depois de voltar de Barcelona, mas perdeu a posição no time da Chapecoense por "questões táticas". Conta que já sonhou com ex-companheiros, como o goleiro Danilo e o lateral Dener. Às vezes, vê na rua pessoas parecidas com vítimas do acidente, o que lhe traz memórias do grupo que teve a trajetória interrompida em Medellín. Alan e a noiva Marina Storchi vão se casar no dia 9 de dezembro, em Bento Gonçalves.
Rafael Henzel, 44 anos, conseguiu retomar a rotina que tinha antes do acidente. Apresenta dois programas na Rádio Oeste Capital, narra jogos e joga videogame com o filho Otávio, de 12 anos. De um primeiro momento em que sentia necessidade de dar entrevistas para esclarecer detalhes da queda do avião, agora tem certo receio de se manifestar. Entende que as famílias das vítimas, ao acompanharem as entrevistas, revivem o drama.
Do grande desafio que era se manter respirando em meio aos escombros, por maiores que fossem as dores, os sobreviventes passaram por um ano a ultrapassar obstáculos que, ao menos na superfície, pareciam pequenos.
Entraram em campo em um jogo-treino contra o Ypiranga, como fez Alan. Caminharam apoiados nas barras metálicas para testar a prótese, como fez Follmann. Narraram jogos de pré-temporada na retomada da Chape, como fez Rafael. Levantaram halteres de um quilo que pareciam pesar uma tonelada, como fez um Neto ainda magro e debilitado logo que voltou a Chapecó. E depois escreveram livros, emocionaram o Camp Nou e subiram ao altar para se casar.
Fizeram o que os tornou tão especiais na mata fechada do Cerro el Gordo. Viveram.