Peregrinação em números
''O peregrino não faz o caminho. O caminho te faz peregrino''.
Foi com esse conselho, acompanhado de um olhar profundo e um balançar de cabeça cúmplice, que me causaram certo espanto, que a senhora de quase 70 anos, freira, se despediu de mim. Era o meu segundo dia de viagem e havia parado no vilarejo de Zabaldika, um dos 26 povoados situados ao longo do vale de Esteribar, na região de Navarra, para conhecer a igreja de Santo Esteban. Construção medieval do século XVIII, de estilo romano, a abadia é abrigo de um dos sinos mais antigos da Espanha e não é parada obrigatória para os caminhantes que rumam a Santiago. É preciso fazer um pequeno desvio e subir uma colina para chegar até lá, o que torna o número de visitantes bastante limitado.
Não havia embarcado para Europa para percorrer o caminho de Santiago de Compostela por motivos religiosos, tampouco espirituais. Mas as palavras ditas de forma tão solene pela religiosa ecoaram em mim durante todo o trajeto.
Durante 30 dias, vi o sol nascer no horizonte. Durante 30 dias, vi o sol se pôr. Caminhei em campo aberto sob forte chuva, contra o vento, em vilarejos medievais. Dormi dentro de templos seculares, partilhei comida e peças de roupas com desconhecidos. Ajudei gente que nunca tinha visto antes e também fui ajudado. Quando me dei por conta, o caminho tinha, de fato, me feito peregrino.
Embarquei para a Espanha para percorrer o caminho francês, o mais popular entre os diversos percursos que levam a Santiago de Compostela. Parti de Roncesvalles, vilarejo situado na divisa com a França, disposto a curtir a natureza, os castelos cheios de histórias, o silêncio. Meu plano era ficar o mais longe possível da internet enquanto percorresse os 750 quilômetros que me separavam do destino final. Imaginava sim encontrar alguns outros peregrinos, com perfil religioso, de idade mais avançada. Afinal, iniciaria o caminho em outubro, quinze dias depois do fim do verão, o período favorito de jovens universitários em férias e em busca de diversão. Me enganei: cruzei com pessoas dos mais variados estilos: desde adolescentes de 18 anos recém saídos do Ensino Médio até senhores de 80 anos, dispostos a percorrer o caminho pelas mais variadas motivações. Independente da razão: turística, esportiva ou religiosa, todos aqueles que encontrei já em Santiago, semanas depois, me relataram ter encontrado algum propósito espiritual no final de contas.
Percorri entre 25 e 30 quilômetros por dia em média e apesar do número parecer assustador, não é. O corpo se acostuma rapidamente aos novos hábitos. A rotina e a disciplina impostas ajudam o caminhante a compreender que no caminho a Santiago ele é peregrino e não turista.
Os caminhantes dormem em albergues exclusivos para peregrinos. Turista não entra. Para conseguir uma cama é preciso apresentar o passaporte de peregrinação, o documento que identifica o visitante como caminhante. Alguns destes abrigos são administrados pela igreja, situados na capela local, outros públicos, onde a prefeitura cede um espaço para receber viajantes. O preço, sempre módico, varia entre 4 e 7 euros e tem vários que sobrevivem de donativos: o peregrino deixa a quantia que achar justa. Em todos eles, a regra é a mesma. Não mais do que 7h da manhã as luzes são todas acesas e até 8h todos precisam estar com o pé na estrada.
A verdade é que, bem antes disso, os caminhantes já estão de pé. Por volta das 6h, o salão cheio de beliches (ou simples colchonetes) começa a ficar vazio. Na prática, isso significa que, durante pelo menos duas horas, a caminhada será no escuro. Às vezes, à beira da estrada. Às vezes, no meio da mata. Em outubro, o sol costuma nascer as 9h no norte da Espanha. O tempo de caminhada diária varia conforme o ritmo do viajante: eu fazia 5 quilômetros por hora em média. Com as paradas ao longo do caminho, andava cerca de 8 horas por dia.
O caminho é bem sinalizado em quase todo o percurso. Flechas amarelas e conchas indicam a trilha que o peregrino deve seguir. Elas não fundamentais para não deixar o andarilho se perder. O trajeto é cheio de bifurcações e não é incomum o mochileiro desatento ser obrigado a caminhar algumas milhas a mais para voltar ao trajeto original.
Comigo aconteceu duas vezes, e ambas situações deixaram experiências gratificantes. Na primeira, por inexperiência, me perdi junto com um senhor eslovaco de, acredito, pelo menos 65 anos que não falava nada de inglês ou espanhol. Cada um continuava caminhando sem se preocupar com sinalização na crença de que o outro peregrino sabia onde estava indo. Acabamos no meio de uma fazenda cheia de parreirais, a pelo menos cinco quilômetros de distância de onde deveríamos estar. Contei com a ajuda de um agricultor para conseguir encontrar a rota e, com gestos, a única linguagem que cabia naquele momento, mostrei para ele o caminho.
Grato por tê-lo ajudado, ele não teve dúvida: entrou em uma das videiras e saiu com um baita cacho de uva. O presente foi com chapéu alheio, mas a gente riu bastante disso sem dizer uma palavra. A empatia dá um jeito de se fazer entender.
Da segunda vez, foi por distração mesmo. Entretido em um debate com um amigo sobre os desafios da vida adulta, acabei percorrendo muito mais quilômetros do que precisaria. Mas peregrino não reclama. Senta um pouco e descansa para logo adiante seguir em frente. Continue caminhando é o lema.
Nessas duas situações não estava só, assim como na maior parte do tempo. Muitos peregrinos optam por percorrer o caminho do Santiago desacompanhado para dar vazão aos pensamentos. Apesar de ter feito boa parte dos quilômetros sozinho, percebi que encontrava solução para minhas próprias inquietações quando me colocava em contato com os outros. Alguns peregrinos foram especialmente importantes para me ajudar a enxergar soluções que sozinho eu não conseguia ver.
Acabei formando uma "famiglia". Assim, com "g" e sem acento mesmo. Oito italianos (que também se conheceram durante a viagem) e que percorreram ao meu lado a maior parte do caminho. Caminhávamos separados na maior parte do dia, mas sempre parávamos no mesmo vilarejo antes do sol cair. Quem chegava antes, esperava pelos outros. O café da manhã e o jantar sempre juntos. Andrea, Francesco, Giorgia, Lorenzo, Manola, Nicola, Sara e Simome acabaram por me ensinar muito mais do que noções básicas de italiano nos 25 dias que passamos juntos.
Ao chegar na Galícia, trecho final da jornada, a palavra cansaço já tinha sumido do dicionário. Quando faltavam 100 quilômetros finais do caminho me lembrei de mini documentário sobre o caminho que tinha assistido algumas semanas antes de embarcar. Uma dupla de jornalistas brasileiros conversara com alguns peregrinos durante o trajeto. Me marcara, à época, o depoimento de uma menina canadense que dizia não querer que o caminho terminasse e como achei a declaração absurda. Afinal, ela estava ali justamente para chegar a Santiago. Estava eu ali, com outros peregrinos, dividindo o mesmo sentimento agridoce.
Quando me perguntam se encontrei as respostas que esperava pelo caminho de Santiago, minha resposta é uma só: não. Mas a mochila e meu coração (grande parceiros, aguentaram firme) não voltam pra casa vazios. Voltaram cheios de perguntas que nunca antes havia me permitido fazer. E recheado de memórias. As mais especiais construídas ao lado de turma doida de italianos, que hoje chamo de irmãos e irmãs. No final de contas, percebi que o caminho de Santiago nunca se faz sozinho.
Caminhos de Santiago
São pelo menos 12 os trajetos dentro da Espanha que levam os peregrinos a Santiago de Compostela. Repórter de ZH percorreu 750 quilômetros do caminho francês, o mais popular entre eles, e conta detalhes dessa viagem que leva milhares de caminhantes todos os anos até as relíquias do apóstolo Tiago Maior
Publicado em 20 de dezembro de 2016
textos e imagens
Cadu Caldas
IMAGENS
Simone Buscaglia
DESIGN E ILUSTRAÇÃO
Thais Longaray
Guia de sobrevivência
O Caminho Francês
Conheça os principais pontos do mais popular dos percursos
Os 12 caminhos
Conheça os diferentes trajetos oficiais até Santiago de Compostela dentro do território espanhol
Caminhos de Santiago