"A serra gaúcha tem caminhos que só a cavalo se conhece", dizia uma placa enorme pendurada na parede de um galpão da fazenda Recanto dos Amigos, a 3,5 quilômetros do centro do Cambará do Sul, uma das propriedades que oferecem cavalgadas aos turistas.
Cavalgada desvela as belas paisagens de fazendas, coxilhas e florestas cinematográficas em uma experiência de reflexão e liberdade
A mística em torno do tropeiro é muito forte na região, que era ponto de passagem por viajantes que cruzavam os três Estados do Sul no lombo de cavalos para trocar charque por alimentos e tecidos. Cambará era uma das paradas.
O repórter fotográfico Tadeu Vilani, o motorista Vanilson Duarte, o guia de turismo Gerson Patricio e eu fomos recepcionados pelo criador de cavalos Edson Tomazili da Luz, 48 anos, um ex-bancário muito simpático que se cansou da vida na cidade grande e, há 19 anos, trabalha com passeios turísticos. A fazenda que ele toca, há 60 anos na família, também é hospedaria e tem uma área de plantação de pinus, vendidos comercialmente.
Optamos por realizar o passeio de sete quilômetros e uma hora e meia de duração (R$ 70 por pessoa) por trilhas abertas nos campos de altitude – cruzando coxilhas altíssimas –, em uma mata fechada, e finalizando com a vista do horizonte em cima de um morro. Há, ainda, outras duas escolhas: a trilha até o Lajeado das Margaridas, de 15 quilômetros e cerca de três horas (R$ 150), ou a trilha noturna feita unicamente sob a luz da lua cheia (R$ 80).
Edson nos apresentou aos cavalos que se tornariam nossos amigos e os preparou em nossa frente. Como camadas de roupa para o inverno, vestiu-os com baixeiro (espuma para proteger o cavalo), a cela, o pelego (para não esfolarmos as nádegas), a sobrechincha (cinta para segurar o pelego), o cabresto (a corda para pegar o cavalo) e o freio (a corda para dar os comandos). De cara, fiquei afeiçoado a uma égua marronzinha, a Tostada.
– É tranquilo andar mesmo para quem nunca andou. Puxa o freio para a esquerda, e o cavalo vai para a esquerda. Puxa para a direita, e ele vai para a direita. Puxa para trás, e ele para. Bate com os pés na barriga dele, e ele anda para frente – sintetizou.
Subi no lombo da Tostada sem pagar o mico de cair (ainda bem, a câmera de Tadeu me filmava). Saímos da estrebaria e margeamos uma lagoa, banhados por uma bela luz do meio da tarde, e exploramos os campos de altitude. Avistamos florestas de araucárias e de pinus, cadeias de morros e coxilhas a muitos quilômetros no horizonte.
É verdade que eu nunca havia subido no lombo de um cavalo, portanto descrevo a quem também não: a sensação é de liberdade ao cavalgar para cima e para baixo em meio a morros de vegetação baixa. Desenvolvi muito rápido um grande afeto por Tostada. Éramos, os dois, companheiros. Gerson, muito gentil, notou meu sentimento enquanto eu acariciava a crina do bicho e me tranquilizou:
– Pode ficar tranquilo, os cavalos que lidam com os turistas são muito melhor tratados do que os que ficam na lida da fazenda. Descansam muito e não se estressam – disse.
Após encher os olhos de horizontes de morros, entramos em uma mata nebular fechada tomada de arbustos, araucárias e lama. Se antes o espaço era aberto, e a vista alcançava dezenas de quilômetros adiante, agora era obliterada por troncos e galhos que, vez ou outra, roçavam em nossa cabeça. O barulho de um curso d'água poucos metros à direita reconfortava, uma bela trilha sonora.
Saímos em uma clareira e, poucos metros à frente, entramos em uma floresta gigantesca de pinus, árvore importada do Canadá para a venda comercial. Se antes a trilha era úmida, agora era o contrário: a floresta era seca, com gravetos espalhados ao chão – o pinus, vale lembrar, suga bastante água do solo. A luz estava quase cinematográfica. No embalo da novidade, pedi para Tostada galopar.
A experiência de andar muito rápido a cavalo, com o vento despenteando os cabelos, é de um desprendimento muito grande, como se eu tivesse deixado toda e qualquer roupa para trás e nada me importasse, nada me puxasse para baixo. Ao sentir a respiração ofegante de Tostada e imaginar como viviam as pessoas na época de O Tempo e o Vento, romance de Erico Verissimo, ocorreu-me que, no presente, sempre carregamos o peso das ações do passado. Portanto, mesmo que eu more em um apartamento em Porto Alegre, só estava naquela viagem porque, há muitos anos, tropeiros tomaram decisões prosaicas de parar por Cambará e, com isso, ajudaram a construir a história da cidade. Passado e presente se entrecruzam.
A floresta de pinus ficou para trás: cruzamos uma porteira de madeira, atravessamos uma estradinha de terra e entramos em um terreno de coxilhas altas e íngremes. O objetivo agora era subir o morro alto e avistar o horizonte, em um entardecer de cores lilás. Foi como encarar uma escadaria para ver um mirante, com a diferença de que estávamos totalmente no meio da natureza.
Diante de nossos olhos, desvelou-se uma paisagem em 360º de florestas, coxilhas e cânions até onde a vista alcançava. A altura era tanta que chegou a dar vertigem. O vento forte fez Tostada virar-se, em busca de proteção. O frio me traz de volta à realidade.
– Gostaram do meu escritório, senhores? Se quiserem, posso desligar o ar-condicionado – brincou Edson.
É difícil enquadrar em palavras as experiências que mexem com sentimentos, mas, com a distância de escrever o relato após alguns dias, tendo como base anotações do dia, resumo assim o que se passou dentro de mim: todas as vivências que tive na vida e que têm o grande peso de constituir minha identidade não importam nada diante da imensidão da natureza, que me redimensiona como um ser muito pequeno e vulnerável.
Voltamos à fazenda com a noite já caindo sob nossos ombros. Em meu assombro, procurei pelo leão-baio, espécie de puma que é comum em Cambará e aparece à noite. Ele não veio, é claro, porque foge do ser humano. Enquanto provávamos cachaças artesanais na fazenda de Edson, trocando impressões sobre o passeio, tive certeza da ideia que me veio dias antes, no Circuito das Águas: a paisagem de Cambará ficaria para sempre dentro de mim, remodelando meu mapa interno. Volto outra pessoa a Porto Alegre.
Saiba mais
- Pousada e Fazenda Recanto dos Amigos
- Endereço: Estrada do Lajeado das Margaridas, 550
- Telefones: (54) 3504-5277 | (54) 99996-2994
- Site: http://www.recantodosamigos.tur.br
- Dica: outras fazendas também oferecem cavalgadas turísticas. O preço varia de R$ 70 a R$ 150.