OS AMULETOS
A conquista da América
Conquista da libertadores veio com time de qualidade e superstição em todos os escalões do clube, do presidente ao massagista
O roupeiro Gentil Passos estranhou quando Tinga entrou vestiário adentro aos 21 minutos do segundo tempo da final contra o São Paulo e não se escorou no balcão da rouparia como de costume. Gentil mantinha sempre ligado seu rádio portátil vermelho comprado no Paraguai anos antes, quando o Inter foi jogar um amistoso com o Olimpia. O rádio, seu parceiro no trabalho, contava o que acontecia no gramado, já que na época TV no vestiário era luxo. Por isso, quem era substituído ou expulso, como foi Tinga, pegava carona no rádio do Seu Gentil para conferiros desdobramentos do jogo.
Enquanto aprumava camisetas e separava pares de meia, o roupeiro ergueu os olhos e viu Tinga em transe, caminhando de um lado para o outro no amplo salão do vestiário. Nem imaginava, mas testemunhava naqueles 27 minutos de angústia uma transformação. O ex-volante prometeu para si mesmo, naqueles minutos de extrema aflição, que nunca mais comemoraria ao máximo uma vitória e tampouco se deprimiria com a derrota.
– Aqueles minutos sozinho no vestiário mudaram minha vida. Passou um filme de tudo o que tinha vivido. Comecei a olhar a vida sobre outro prisma, a dar o real valor às coisas – revela Tinga na sala de casa na Zona Sul.
O roteiro daquela noite gelada de 16 de agosto de 2006 fez Tinga temer reprise do 1 a 1 com o Corinthians, no Pacaembu – quando foi expulso em erro grosseiro do árbitro Márcio Rezende de Freitas e viu o título escorrer das mãos do Inter. Na final conta o São Paulo, levou o segundo cartão amarelo do argentino Horacio Elizondo por erguer a camiseta e mostrar uma outra com mensagem por baixo.
A ideia da camiseta veio na véspera do jogo. Em seu quarto no Millenium Flat, deitou para sestear antes do treino. Até hoje não sabe em que estágio do sono estava quando se viu fazendo o gol do título. Saltou da cama e ligou para a mulher, Milene:
– Faz uma camiseta para mim com uma mensagem de agradecimento por tudo de bom que está acontecendo.
Milene não entendeu. Tinga era pouco afeito a essas atitudes. Mas atendeu. Foi ao centro e mandou imprimir em duas camisetas brancas de tecido sintético a mensagem “Obrigado, Jeus”. No dia do jogo, saiu do quarto já vestido, com a camiseta por baixo do agasalho. No vestiário, colocou o uniforme rápido para que ninguém visse e o zoasse. Só ele e Milene sabiam o que Elizondo, os companheiros e os colorados veriam. Até hoje, Tinga contesta. Jura que não tirou o camisa do Inter, apenas a arregaçou e a colocou sobre a cabeça. A camiseta branca está guardada numa garrafa plástica. É a única peça de seu acervo de 20 anos de carreira. O resto foi doado.
O massagista Juarez Quintanilha se apavorou na casamata quando viu Tinga ser expulso. Juarez é colorado fervoroso. Chegou ao Inter de forma inusitada. No anos 70, quando Gilberto Tim levava os jogadores para treinar no Parque Saint-Hilaire, ele pulava a cerca de casa em Viamão e corria lado a lado com os ídolos Falcão, Batista e Jair. O fôlego chamou a atenção de Tim, que o indicou para o atletismo do Inter. Em 1989, no ano da doída de rrota para o Olimpia, Juarez deixou as pistas para trabalhar como massagista na base.
Juarez sofria em silêncio no banco, atento a qualquer movimento dos jogadoreso. Sempre com seu celular Nokia 6265 no bolso. Desligado. O aparelho era o da moda entre os jogadores. Juarez comprou parcelado e evitava usá-lo no vestiário, com receio de ser torpedeado com as brincadeiras capitaneadas por Perdigão. Foi assim desde a estreia em Maracaibo e não poderia ser diferente na final. O celular havia virado amuleto.
Na boca do túnel, escondido do quarto árbitro, Paulo Renato da Silva, o Banha, monitorava Juarez. Naquela noite, ele era o massagista reserva. Caso faltasse algo na maleta do companheiro, corria até o vestiário. Por vezes, corria até lá mesmo que nada faltasse. Estava nervoso, esfregava os dedos no terço que sempre carrega no bolso. Banha também achou esquisito quando viu Tinga solitário no vestiário. Ele e Gentil se olharam em busca de uma explicação. Que não veio.
Nas cabinas, Fernando Carvalho havia cumprido todos os rituais. Um deles era uma roda de oração no vestiário às vésperas dos jogos. Uma senhora mística, amiga de sua mãe, era quem liderava o culto. Por vezes, Abel comparecia. O presidente também tinha o hábito de repetir a roupa. Calça cáqui, camisa branca ou rosa e paletó xadrez de lã. A calca cáqui é hábito desde a juventude. A camisa branca também, já que por vezes se aventurava em Gre-Nais no Olímpico. Virou “roupa de ir a jogo”.
O paletó xadrez, no entanto, veio com a coincidência das vitórias. Virou sinônimo de sorte. Os mais próximos imploravam para que evitasse o casaco. Era de estética duvidosa para um presidente. Carvalho nem dava ouvidos. Foi assim que chegou ao Beira-Rio para a decisão. Mas a reta final do 2 a 2 com o São Paulo fez a temperatura subir. O paletó foi atirado de lado. Quando acabou o jogo, apesar do frio daquela noite, Carvalho entrou em campo apenas de camisa rosa. Ninguém percebeu que estava sem o paletó da sorte, Nem perceberia. Depois de 97 anos de espera pelo título da América, o que menos importava era o traje na festa.