Fagner espera

um uniforme

Fagner Ricardo dos Santos Guimarães andava amuado, digerindo o desapontamento recente, quando uma amiga da família se aproximou com uma sugestão:

– Tem uma santa lá na igreja que pode te ajudar.

Auxiliar de serviços gerais da Paróquia São Vicente Mártir, na Capital, Zelândia Demétrio falava da Nossa Senhora Desatadora dos Nós, entidade com tradição de três séculos e a quem os devotos recorrem suplicando por saúde, emprego, dinheiro e reconciliação. Dispensado das categorias de base do São José, o lateral-direito de 16 anos amargava uma fase sem perspectivas que o distanciava do maior sonho: tornar-se jogador profissional de futebol. Fagner, que não guardava lembrança de ter frequentado na vida uma missa sequer, interessou-se pelo convite. Zelândia acrescentou um relato pessoal: endividado, seu marido saldou rapidamente as pendências após acionar a Desatadora dos Nós. O adolescente concluiu que estava diante de uma ótima oportunidade – seu desejo em suspenso, ainda que não tivesse a dramaticidade de outras urgências, era sem dúvida um nó a ser desfeito.

– Se a santa não tocar o seu coração, não precisa ir mais – orientou a amiga.

Nas quartas-feiras, em quatro celebrações, a São Vicente Mártir recebe mais de mil pessoas. O grande chamariz é a novena, que requer o comparecimento ao longo de nove dias – o fiel recebe uma cordinha com nove nós, devendo desamarrar um deles a cada missa. Ao final da série, aguarda-se a concessão da graça almejada. Perto da imagem da santa, também é possível, em fitas coloridas, dar um nó, representando o problema para o qual se busca ajuda, e desatar outro, simbolicamente auxiliando alguém a solucionar seus impedimentos.

Fagner assumiu o compromisso em uma noite deste ano, acompanhado do pai, o motorista de ônibus Amarildo Centeno Guimarães, 54 anos, que enfrentava dificuldades para encaminhar a aposentadoria e resolveu também requisitar o apoio sagrado. Buscaram assento próximo ao altar. Impressionado com a imponência do templo iluminado, o garoto procurou se ater à figura da Desatadora dos Nós – envolta em um manto azul, ladeada por anjos, pisando sobre a serpente que representa o mal e o pecado enroscada a seus pés. Mentalizou o anseio que ainda o levaria muitas vezes até ali: “Eu quero ser jogador profissional. Me ajuda a pular os obstáculos”.

A mãe, Jupira, e o pai, Amarildo, chegam a atrasar a conta da luz para bancar o sonho do caçula, Fagner, de 16 anos: ser jogador de futebol

 

Fagner ainda era bebê quando se encantou pela bola. Chutava até as panelas da mãe, a empregada doméstica Lourdes Jupira dos Santos, 55 anos. Na primeira festa de aniversário, com a temática Gre-Nal, ostentou uma diminuta farda tricolor. Aprendeu cedo que a preferência clubística não poderia estar acima do objetivo maior e, aos sete anos, ingressou no Genoma Colorado, escolinha ligada ao Inter. Avançou até as categorias de base, mas, com a falta de interesse do time – o supervisor alegou que o guri era desligado, desconcentrava-se –, seguiu para o São José. Há dois anos, um susto: durante uma partida sob chuva em gramado sintético, o lateral escorregou e fraturou a tíbia da perna esquerda. A caminho do Hospital Cristo Redentor, abraçou-se ao técnico, Nilton Figueiró, e chorou.

– Terminou – lamentou Fagner.

Figueiró tentou consolá-lo:

– Todo jogador tem uma lesão. Rapidinho você volta. Você é menino, é novo.

Depois de seis meses afastado, o garoto retomou a rotina esportiva. Mancava, sentia dores, caía sozinho. Recuperou-se a pleno, mas não conseguiu evitar a segunda dispensa, no começo deste ano, pouco antes de recorrer à novena. Hoje ele atua na Associação Atlética Sporting Sul, que forma jogadores e os encaminha ao mercado. Apesar dos reveses na curta carreira, o desejo de infância se mantém inalterado.

– Quero ser jogador do Grêmio – repete Fagner. – Ou do Flamengo, do Bahia, da Chapecoense... Até do Inter. Qualquer time. Quero ser jogador – frisa.

Por R$ 50 mensais – metade do preço habitual, benefício concedido a famílias de baixa renda –, Fagner treina de terça a sexta-feira no Centro Estadual de Treinamento Esportivo (Cete), no Menino Deus. Jogos extras e viagens para competições são pagos à parte. Amarildo e Jupira por vezes atrasam despesas como a conta de energia elétrica para que o caçula não perca oportunidades, desarranjando o orçamento doméstico. Se não há de onde raspar a quantia, Fagner procura a administração do Sporting Sul e verifica a possibilidade de conseguir fiado, ou Jupira solicita um adiantamento ao patrão.

– A gente veste um santo e desveste outro – resume a doméstica.

Fagner já estava comparecendo às missas quando contraiu caxumba. Impedido de ir, postou-se ao lado de uma réplica da santa que adorna a sala – presente de Jupira a Amarildo no último Dia dos Namorados, junto de uma barra de chocolate Diamante Negro. Aguardou, concentrado, o aviso do pai, que o representou na igreja naquela noite. “Pode desatar agora”, escreveu Amarildo na mensagem de texto enviada pelo celular, sinalizando ao filho o momento exato para desmanchar a amarradura na linha.

Em convalescença, Fagner voltou a se exercitar. A dois dias da excursão para a 2ª Copa Taquari, pela qual os pais pagaram R$ 400, parcelados, o garoto temia não ter fôlego. Acabou se surpreendendo com o bom desempenho. Com chuteiras emprestadas por um amigo por conta do mau estado das suas, correu sem dificuldades e, nas oitavas de final, destacou-se contra o ex-time Zequinha: deu passes para dois gols e até uma janelinha. “Que negão bom! Que negão bom!”, exultaram olheiros à beira do campo, interessados em contratá-lo para equipes do Interior. A fase tão proveitosa, que culminou com a conquista do título do torneio, só poderia ter uma explicação.

– A santa já me ajudou – concluiu Fagner.

Nilton Figueiró acompanha a evolução do aprendiz há cinco anos. Compara-o a William, lateral do Inter e da Seleção Brasileira medalhista de ouro na Olimpíada, enumerando suas múltiplas qualidades: sabe marcar, apoiar, cruzar na linha de fundo, cobrar falta. É rápido, bate bem na bola, tem espírito de liderança, ataca. Está pronto, garante o treinador.

– Já está na hora de esse menino explodir. Ano que vem ele vai estourar. É o ano dele.

Enquanto aguarda que algo se materialize, Fagner devaneia com a fama e os salários polpudos. Planeja comprar tênis, bonés e roupas de marca, mas o principal projeto é ajudar os pais a terminar as obras na residência da família, no bairro Cavalhada, que já se estendem por mais de 10 anos. Faltam piso e forro em diversos pontos, além de pintura. Mesmo inacabada, a moradia atual é muito melhor do que a anterior, de uma madeira que já se esfacelava, no mesmo endereço.

– A gente entrava em casa e tinha que abrir um guarda-chuva – recorda Jupira. – Hoje eu me sinto morando em um palácio.

O menino nunca havia ido à missa, mas passou a ser devoto da Nossa Senhora Desatadora dos Nós: “Tem que ter paciência”

 

Anderson Fetter

Nas aulas do 1º ano do Ensino Médio do Colégio Estadual Paraná, Fagner se desconecta da explanação dos professores, flanando em fantasias ambiciosas: imagina-se vestindo as cores de Bayern, Borussia Dortmund, Barcelona, Real Madrid, Chelsea, Manchester City, o amarelo da Seleção. Projeta-se em inúmeros cenários de idílio, os pensamentos se sobrepondo, acelerados: Granja Comary, Maracanã, Camp Nou, Santiago Bernabéu, Arena do Grêmio. Uma marcação ferrenha sobre Neymar, partidas pela Liga dos Campeões, o clássico Gre-Nal. “Fagner! Fagner! Fagner!”, grita a torcida em uma final de estádio superlotado, enlouquecendo com os dribles do lateral-direito. Esforçando-se para prestar atenção nos conteúdos de química e matemática, disciplinas que considera as mais complicadas, o estudante não consegue deixar de ruminar uma questão: “Será que eu vou ser jogador?”.

Semana a semana, a fé de Fagner foi se encorpando. Perdido no começo, sem conseguir acompanhar o roteiro da missa ou replicar às citações do padre, ele hoje é flagrado pela mãe cantarolando:

– Erguei as mãos e dai glória a Deus!

Com unhas roídas, e às vezes apelando aos dentes, Fagner era invariavelmente o último a concluir a tarefa de soltar os nós que pontuavam o barbante. O nono nó foi o mais desafiador de todos, obrigando o adolescente a extrapolar o horário da cerimônia para conseguir dissolvê-lo. O restante do rebanho já descia as escadas e se dispersava na rua, e o guri quase imóvel no banco. Da singela missão, ele extraiu a mensagem implícita: é difícil, mas vai chegar lá.

Responsável pela Paróquia São Vicente Mártir, padre Jaime José Caspary incentiva que os fiéis sigam frequentando a igreja, engajando-se em outras novenas, até que as turbulências amenizem. Mesmo quem tem o pedido atendido é convidado a retornar, em sinal de agradecimento.

– Não podemos ser interesseiros com as coisas de Deus e de Maria – recomenda o religioso.

Fagner seguiu a orientação do pároco e emendou na primeira novena uma segunda, já prestes a ser concluída. Pretende manter a prática pelo tempo que for necessário.

– A santa pode estar nos testando, para ver se vamos desistir. Tem que ter paciência. Tem que esperar.

O menino nunca havia ido à missa, mas passou a ser devoto da Nossa Senhora Desatadora de Nós: “Tem que ter paciência”

Ângela espera

um telefonema

 

Sandra espera a decisão de um juiz

 

Fagner espera um uniforme

 

César espera a cura

 

Maria Luiza espera o amanhã