Sandra espera

uma audiência

M aldormida, Sandra* levantou, como de hábito, antes do sol. Passara a noite num sono raso, sobressaltando-se, incomodada pela sensação de urgência que impregna quem precisa iniciar logo um dia importante. A angústia do marido, João, que se sentava na cama e suspirava, também contribuiu para tornar o descanso impossível. Às 5h45min da quinta-feira 11 de agosto, o dia começou oficialmente: a espera de um ano e 11 meses da dona de casa do bairro Camaquã, em Porto Alegre, poderia estar a poucas horas do fim.

Sandra bebeu um café preto, limpou os banheiros, preparou o desjejum de João e lhe deu banho – acamado há uma década, desde que foi atingido por uma laje em uma obra, o pedreiro de 51 anos tem dificuldades severas na fala, usa fraldas e precisa receber comida na boca. Não bastasse toda a lida da casa, ela correu para atender também a netinha de quatro meses e os três lamuriosos filhotes da cadela Pipoca. Preparou o almoço composto de arroz, bife, salada de alface e tomate, que nem cogitou comer. Passava do meio-dia quando resolveu partir de uma vez – parecia mais útil aguardar no 10º andar do Foro Central, endereço da audiência que determinaria o futuro de Rafael, 18 anos, um de seus sete filhos, a partir das 14h10min. Por gestos, grunhindo, João desejou “boa sorte” à mulher.

Por roubo, Rafael cumpre medida socioeducativa na Fundação de Atendimento Socioeducativo (Fase). A tentativa de organizar um motim entre os internos motivou sua transferência para a Comunidade Socioeducativa (CSE), unidade da Vila Cruzeiro que concentra os infratores de perfil mais agravado do Estado. Ao avaliar o histórico de comportamento do adolescente, o juiz vai determinar a próxima etapa – as possibilidades vão da continuidade da internação sem qualquer atividade externa até a extinção da medida, passando por regimes com diferentes gradações de liberdade. A mãe está confiante na melhor das alternativas: a do retorno para casa, e para o convívio em sociedade, sem pendências.

– Acho que a mudança foi bem grande, ele teve um aprendizado. Tenho certeza de que ele vem hoje – diz Sandra, a caminho do ponto de ônibus da linha Liberal.

Rafael não é a única ausência na moradia simples mas espaçosa, cercada de verde. Diego, 20 anos, saiu antes do irmão: acusado de ter atirado contra um homem, está recolhido ao Presídio Central. Ambos garantem à mãe terem sido injustamente responsabilizados. A situação que mais a aflige é a de Diego.

– Mãe, eu tô pagando por uma coisa que não fiz – lamenta o jovem.

A dona de casa acredita no discurso de inocência.

– Não foi ele. Coloco minha vida, minha alma, tudo. Tudo que ele fez, ele assumiu. Ele não ia passar dois anos numa cadeia e não me falar nada – garante. – Tenho medo de ele ficar muito tempo lá dentro e eu perdê-lo para os bandidos – inquieta-se.

 

Por quase dois anos, Sandra reservou três dias da semana para visitar os filhos distantes. Nas quartas-feiras, madrugava para ir primeiro ao Central e depois à Fase. Levava uma sacola de mantimentos para cada um deles, além de recados do pai e dos irmãos: falavam de saudade, comentavam o placar dos jogos de Grêmio e Inter, compartilhavam promessas e desejos de um futuro diferente. “Logo, logo tô de volta, de cabeça erguida, e quem riu na minha ida vai chorar na minha volta. Espero que todas as lágrimas que eu faço vocês chorarem daqui para a frente sejam de felicidade e não de tristeza. Penso todos os dias em vocês. Me lembro quando vocês me avisavam e eu não escutava, mas, como dizem, cadeia não é eterna”, escreveu Rafael em uma carta.

Em mais de uma ocasião, ele ficou em isolamento devido a atitudes inadequadas. A desobediência acarretava um transtorno extra à mãe, que tinha então de visitá-lo no turno da manhã, já reservado para a ida ao Presídio Central. Sentada na frente do filho, ela “chorava de furiosa”.

– Você está vendo toda a situação que eu passo – esbravejava.

Sandra deixou de comparecer poucas vezes, nos períodos de dinheiro mais curto, quando faltava para a passagem de ônibus ou para um agrado aos garotos. A única renda fixa na casa é o auxílio-doença de João. Como a verba não alcança o final do mês, a dona de casa apela para bicos na vizinhança: lava vidraças e tapetes, cuida de cachorros, faz faxinas. Força motriz da família, ela evita demonstrar fragilidade. Quando não consegue segurar o choro, refugia-se no quintal, encobrindo o rosto com as roupas que estende no varal. De noite, na cama, memórias auditivas a assaltam: tem a impressão de ouvir o barulho de portões de ferro e pesadas trancas abrindo e fechando. Repassa mentalmente a humilhação das revistas íntimas, momento em que é obrigada a se despir e a se agachar para provar não estar escondendo nada sob as vestes ou na genitália.

– Aqui dentro tá sangrando. Tá em pedaços – define, sinalizando o peito.

Em uma autoavaliação de sua jornada como mãe, Sandra não consegue localizar falhas que justifiquem o descaminho de Rafael e Diego. Os outros cinco estudam ou trabalham, e a caçula, Júlia, inclusive detém as melhores notas de sua turma de 8º ano do Ensino Fundamental.

– Nunca fui ausente. Pode ir a todas as escolas onde meus filhos estudaram – desafia. – Eu procuro uma explicação que não tem. Fico pensando onde falhei. Acho que não errei em parte alguma. Quando eles ganharam liberdade, não souberam usar.

A vida seguiu, e mudou, enquanto Rafael e Diego estiveram longe. Destruído duas vezes por tempestades, o telhado da residência foi refeito, e a área construída, ampliada: agora há um quarto para ambos, que antes dormiam em um sofá-cama na cozinha. Quando a possível saída de Rafael foi prevista para agosto, Sandra passou a se dedicar à arrumação do cômodo, que tem uma cama de casal, um roupeiro de seis portas, duas poltronas, dois tapetes, um aparelho de som. Um barco e um avião, confeccionados em oficinas de arte durante a internação do jovem, decoram o ambiente. Em um porta-retrato, um raro registro feliz dos dois anos de afastamento: Sandra, Júlia e Rafael festejam o Dia das Mães, com copos de Fanta Uva, nas dependências da Fase. No verso da imagem, ele arriscou um poema: “Família não tem valo / família não tem preso / só quem ama sabe o que / eu tô dizendo”.

Mascote de Rafael, o cachorro Negrão, de cinco anos, morreu meses atrás. A mãe resolveu omitir a má notícia. Quando ele pergunta dos bichos, ela desconversa, informando que estão todos bem.

– Não quero que ele sofra – justifica.

No bairro Camaquã, a mãe se prepara para a audiência que definirá o futuro do filho, há um ano e 11 meses internado na Fase

Rafael escrevia cartas: “Espero que todas as lágrimas que eu faço vocês chorarem daqui para a frente sejam de felicidade e não de tristeza”

Na visita feita na véspera da audiência que determinaria o futuro de Rafael, Sandra encontrou o filho falante, irrequieto. Os funcionários da Fase chegaram a lhe chamar a atenção.

– Eu tô feliz. É o último dia – destacou ele.

Por uma hora, mãe e filho costuraram os acertos finais.

– Tem que ter atitude de homem, não fazer mais ninguém sofrer – discorreu ela.

Rafael resgatou planos de outras tardes, dando-lhes a solenidade típica dos momentos derradeiros.

– Vou estudar e trabalhar – assegurou.

A mãe reforçou:

– Você tem que pensar que eu sou uma pessoa só para correr por todos.

A João, que não viu uma única vez em dois anos, Rafael pediu que a mãe transmitisse uma mensagem de otimismo:

– Diz para ele se preparar. Vou chegar para

o Dia dos Pais.

Sandra levantou-se para ir embora. Deixou um pacote de bolachas, dois de salgadinhos e um refrigerante, lanche a ser repartido com os companheiros, muitos dos quais não recebem visitantes. Na despedida, um carinho em quantia incomum: dois beijos e dois abraços. A mãe sorriu.

Saiu para o pátio, passou pelo posto da segurança e cruzou o portão rumo à Avenida Jacuí. Rogou que nunca mais voltasse.

 

No início da tarde de 11 de agosto, o ônibus avança da Zona Sul em direção ao centro da cidade. Numa bolsa pequena, Sandra leva o mandado de intimação de audiência, o documento de identidade, um cartão de transporte público já sem créditos e os R$ 50 restantes do benefício do mês para qualquer eventualidade. Modesto, o orçamento não impede os planos para duas celebrações. No caso de Rafael ser mesmo liberado nesta tarde, o cardápio terá cachorro-quente, refrigerante e nega maluca. Para o Dia dos Pais, dali a quatro dias, haverá galeto e salada de maionese.

– Mas ainda vai ficar faltando uma pessoa – lastima a mãe.

Sandra diz não temer o que vem pela frente. Tenta apaziguar a ansiedade de Júlia, temerosa de que o irmão, que adorava zanzar pela rua, não se contente mais com sossego, longe das más companhias. Os objetivos imediatos para Rafael, traçados com o apoio da Fase, incluem a conclusão do Ensino Médio e o ingresso em um curso preparatório para o mercado de trabalho. Em casa, a mãe quer que ele termine o reboco da fachada. Recostada junto à janela do coletivo, a dona de casa revela ter dificuldades para expressar o que está sentindo:

– Quero que tudo acabe. Vamos começar uma vida. Não é recomeçar, é começar.

Ela desce na Avenida Praia de Belas e atravessa a Borges de Medeiros, em direção ao Foro, na Rua Márcio Luis Veras Vidor. É intenso o vaivém dos funcionários em horário de almoço. Sandra ainda não sente fome – o jejum autoimposto já dura 18 horas, e a ansiedade a impede de encerrá-lo. Ela entra no prédio num passo apressado, com 50 minutos de antecedência. Toma o elevador, identifica-se a um funcionário, senta-se para esperar. Fixa o olhar em um ponto no outro extremo do saguão, onde os internos trazidos da Fase costumam aguardar a chamada para as sessões. Ela ri ao imaginar uma das possíveis surpresas das próximas horas.

– O pai vai se admirar da altura dele.

Depois de presentear os colegas da CSE que ficaram para trás com quase todos os seus pertences, Rafael chega sem bagagem. Veste tudo o que lhe resta: calça jeans, camiseta, jaqueta, tênis. O juiz o parabeniza pelas boas atitudes, por assumir os erros cometidos, e elogia as músicas e os poemas compostos no internamento. Às 16h15min, a audiência se encerra. Rafael é cumprimentado pelos monitores que o escoltaram até o Foro. Ele e a mãe estão livres.

 

*Os nomes foram trocados para preservar

a identidade dos entrevistados.