Ângela espera

um telefonema

 ngela Beatriz Silva Santos vive à espera de um toque do celular. A distância entre a chef de cozinha de 55 anos e o aparelho nunca supera um par de metros. O som de uma nova chamada desbanca qualquer prioridade – e o risco iminente de arruinar a cobertura de esmalte vermelho recém aplicada não a impediu de interromper o trabalho meticuloso da manicure e liberar uma das mãos para pegar o iPhone naquele final de tarde de janeiro, em um salão do bairro Auxiliadora, na Capital. Era o interlocutor tão aguardado.

– Está com febre? Gripe? Infecção intestinal? – perguntou ele. – Fica em casa, não sai. Assim que eu tiver certeza te aviso.

Desencadeou-se um alvoroço. Ao desligar, a cliente, de unhas borradas, deu a ordem definitiva à moça sentada a sua frente:

– Para tudo, não pinta mais! Tira tudo! Para tudo que eu tenho que ir embora!

No caixa, a lentidão da máquina de cartões em processar o pagamento subtraía de Ângela minutos valiosos de preparação, calibrando a angústia.

– Pelo amor de Deus! Apura que eu tenho que ir.

A são-borjense caminhou até a casa, a uma quadra dali, no limite da velocidade que o pouco fôlego lhe autorizava. Reuniu os objetos e os documentos necessários para dar entrada no hospital e enviou uma mensagem ao grupo da família no WhatsApp: “Acho que chegou o meu coração”. Eletrizante, a notícia provocou um transtorno: os parentes começaram a telefonar, ocupando a linha que precisava estar liberada para o próximo contato do médico.

– Não me liguem! – ordenava Ângela.

Passada uma hora de expectativa, o cardiologista pediu que a paciente suspendesse os preparativos. O coração do possível doador, um jovem atropelado na Região Metropolitana, não estava em bom estado para ser transplantado, em função das lesões resultantes da colisão. Digerindo a frustração, Ângela retornava, então, à vigília permanente com a qual tentava se habituar havia alguns meses.

Com uma insuficiência cardíaca grave, Ângela aguarda desde o primeiro semestre de 2015 pelo transplante, último recurso de uma longa trajetória de consultas médicas e internações. Em tratamento desde a infância, ela passou por três cirurgias cardíacas e, nos últimos anos, suas condições físicas foram se deteriorando. Ao ministrar cursos na área de hotelaria e capacitação de funcionários e comandar o preparo de jantares inspirados na culinária francesa e espanhola para até 300 pessoas, sentia-se cansada, tonta e com falta de ar.

Antes de abandonar o trabalho, chegou a escrever todas as orientações sobre o cardápio para a equipe – caso algo lhe acontecesse, o andamento dos eventos não estaria comprometido. Decidiu trocar São Borja por Porto Alegre para ficar a uma distância tranquila da Santa Casa, onde a cirurgia será feita, e facilitar o complexo processo de logística que tem início a partir do momento em que os familiares de um paciente com morte encefálica concordam com a doação de órgãos.

Com grave insuficiência cardíaca,  chef aguarda desde o primeiro semestre de 2015 por  um transplante  de coração

 

Teve ares de despedida o início da jornada rumo à nova vida, a 600 quilômetros da terra natal, apartada do marido, o auditor fiscal Patrício Santos Neto, 54 anos, e dos filhos, o estudante de engenharia mecânica Trajano, 28, e o fotógrafo Otaviano, 24. Ângela doou ou vendeu alguns dos itens de que mais gostava: panelas, travessas, toalhas de mesa, livros de receitas, roupas de festa. Entregou uma procuração de plenos poderes à advogada. Destinou um imóvel a cada um dos filhos, garantindo-lhes alguma segurança financeira – e lamentando que não poderia lhes dar o braço no caminho até o altar no dia em que casassem. Uma amiga ficou com a incumbência de providenciar o texto do obituário, “algo de respeito, com uma foto bonita”. O plano funeral, que vinha sendo pago em parcelas, previa a cremação.

– Naquele momento, parecia que eu não ia voltar. Imaginava que estava partindo. Parecia mais fácil que eu fosse morrer do que viver – recorda Ângela.

De acordo com a Central de Transplantes do Rio Grande do Sul, 17 pacientes receberam um novo coração no Estado em 2015. Neste ano, 18 transplantes foram realizados até setembro, mês em que 21 pessoas continuavam em lista de espera. São considerados casos urgentes os de pacientes internados em unidades de terapia intensiva, dependendo de drogas ou assistência mecânica, como o uso de respirador artificial. Não há uma numeração indicando quem será o primeiro ou o segundo a ser contemplado com os órgãos que surgirem – o que determina a compatibilidade entre doador e receptor são o peso e o tipo sanguíneo, num cruzamento de informações feito eletronicamente pelo Sistema Nacional de Transplantes. Se por acaso existirem, em dado momento, dois receptores compatíveis com um doador, o critério para “desempate” será o cronológico: quem estiver aguardando há mais tempo terá prioridade. A cirurgia para a troca de coração, com duração média de seis a sete horas, é uma das mais complexas que existem.

– O paciente com disfunção cardíaca grave tem uma perspectiva de vida pequena. Ele sabe que vai morrer. O transplante é uma cirurgia de grande porte, tem riscos consideráveis, mas que têm de ser encarados – comenta o cardiologista Paulo Leães, coordenador clínico do Programa de Transplante Cardíaco do Hospital São Francisco da Santa Casa, que acompanha Ângela.

Logo após o telefonema que a sobressaltou no salão, no início deste ano, Ângela identificou emoções conflitantes. Mais do que alegria pela esperança que a possibilidade de um novo coração representava, sentia culpa. Enquanto aguardava a confirmação, pensava na família e especialmente na mãe da vítima fatal do acidente de trânsito.

– Fiquei triste, não fiquei feliz. Todo mundo dizia “ai, que maravilha, que bom, que alegria”, mas aquilo não estava sendo uma bênção – lembra.

Uma conversa com a equipe que a atende serenou a aflição. Ângela reposicionou seu ponto de vista: a doação seria um conforto para os familiares do doador, permitindo que outra pessoa continuasse a viver. Já estava mais tranquila quando atendeu, em junho, à segunda ligação anunciando um provável candidato. Enquanto eram realizados exames complementares para verificar a viabilidade da doação, a paciente ficou novamente a postos, mas com uma inquietação extra: naquele dia, cometera uma transgressão, tomando vinho durante o almoço na casa da irmã. O álcool é danoso ao músculo do coração de doentes com disfunção severa, que não toleram nenhum grau da excitabilidade provocada pela bebida e podem ter piora dos sintomas. O vinho não comprometeria a realização da cirurgia, como Ângela temia, mas ela se recriminou enquanto organizava os pertences para uma eventual internação: “Vou perder o coração”. A notícia de que um quadro de infecção desqualificara o doador acabou por proporcionar alívio, e a chef decidiu abolir o consumo de álcool. Ela foi cogitada como receptora em outras duas oportunidades, mas complicações também fizeram com que os órgãos não pudessem ser aproveitados.

– Se você me perguntar se um dia eu chorei copiosamente... Não, eu nunca chorei copiosamente. Só tive emoções mais fortes quando pensava nos meus filhos, apesar de eles serem adultos. Sou o esteio deles. Já teve vezes de eu estar me sentindo mal, indo para o hospital, e pedir pelo celular, para as minhas amigas: “Por favor, cuidem do Trajano, cuidem do Otaviano” – conta Ângela em uma tarde de agosto, ao recepcionar a reportagem, com café e rocambole de laranja, no apartamento que aluga na Rua 24 de Outubro. – Tem dias que me bate um banzo, um desânimo de estar aqui parada, esperando, mas eu sei que vai chegar.

Sempre alerta, Ângela mantém organizada a bagagem para o hospital. Parte do conteúdo varia conforme a troca das estações, contemplando dias de frio ou calor. Além das roupas, a mala tem toalhas engomadas, sabonete líquido, perfume, hidratante, lixa de unha, creme para rugas. Uma caixinha acondiciona medalhas com a imagem de santos, que Ângela distribui “para quem precisa”. Em internações passadas, transportou até pratos, talheres, taças, jogo americano, lençóis – em um final de ano, decorou as janelas com luzes coloridas.

– Meu quarto é sempre o mais bonito, o mais perfumado, sempre tem flores. Ando bem arrumada, sou famosa pelos meus modelitos. Ninguém pensa que sou paciente – relata Ângela, que pretende contratar um maquiador para o dia da alta pós-transplante.

Com medo de não ser localizada no momento crucial – ainda que a equipe assistencial disponha também dos números de contato de amigos e parentes –, ela costuma sempre informar aonde vai. No Facebook, faz check-ins em bares e restaurantes. Se por acaso sai e se esquece de levar o carregador do celular, o tempo que passará na rua depende do tracinho que indica o nível da bateria restante ou de conseguir um carregador emprestado. No cinema, compromete a compreensão do filme por ficar a toda hora enfiando a mão na bolsa para checar, no visor, o aviso de uma eventual chamada perdida. Olhos na tela grande, ignora o enredo em exibição para fantasiar com uma história que ela própria anseia protagonizar – as luzes da sala de exibição se acendendo de repente, e um funcionário erguendo a voz, procurando por ela para dar a boa-nova:

– Ângela? Ângela está aí? Atenção, Ângela!

Ângela carrega medalhinhas e tem preparada no celular uma mensagem a ser enviada a familiares e amigos quando for sua vez

Confrontada a todo instante com a desinformação das pessoas sobre transplantes, a chef decidiu iniciar uma campanha própria de conscientização. Nos deslocamentos pela cidade, revela sua condição aos motoristas que a conduzem. Gosta de observar a reação que provoca e de ouvir o que têm a dizer. Questionado se era doador, o taxista Arceli Fernando Leal da Silva, 47 anos, que a levava para uma consulta em uma sexta-feira recente, confessou que nunca havia tido chance de falar sobre o assunto.

– Minha mãe morreu, ela tinha leucemia. E não teve doador – contou Arceli. – Isso faz a gente pensar.

– E você nunca foi doar medula? – perguntou a passageira.

– Eu era muito medroso quando mais novo. A gente como homem tem mais medo de médico, de hospital – justificou ele. – Eu não vou lhe mentir, a gente tem um certo preconceito. Tem muito tabu em cima disso que tem que ser quebrado.

Ângela explicou que a intervenção no corpo do doador é como a de uma cirurgia, “depois eles costuram tudo bonitinho”.

– Você já morreu, não vê mais nada – completou.

O taxista lhe desejou sorte e prometeu ficar na torcida. Ângela pediu que ele pensasse a respeito.

Naquela manhã, ela foi ao Hospital São Francisco para ajustar o cardioversor-desfibrilador implantável (CDI), aparelho introduzido sob a pele que se conecta ao coração. Versão compacta e automática do desfibrilador operado por socorristas de ambulância em situações de emergência, o CDI, ao detectar uma arritmia, aplica um choque no coração, corrigindo o ritmo dos batimentos. É alto o risco de doentes com disfunção cardíaca grave morrerem por arritmia. Nos estágios mais avançados da enfermidade, caso de Ângela, afazeres cotidianos simples, como vestir-se, tomar banho e escovar os dentes, transformam-se em desafios cada vez mais cansativos, provocando falta de ar. Um esforço excessivo pode ser fatal. Saudosa das panelas, a chef de cozinha por vezes começa a preparar algum prato, mas não consegue concluir. Percorrer a distância de apenas um quarteirão, a pé, tornou-se impossível. Há dias em que ela sente um intenso abatimento, enquanto em outros está bem disposta, “linda e formosa”. Quando recebeu ZH, falou por três horas ininterruptas.

– Às vezes me sinto tão bem, como hoje, e penso: será que aconteceu um milagre e fiquei boa?

Estabelecida há um ano e meio em Porto Alegre, Ângela retornou à Fronteira Oeste apenas duas vezes. Está morando com Otaviano, recebe visitas de Trajano e do marido e hospedou a mãe, doente de Alzheimer, por uma temporada mais prolongada. Quando não está atendendo a um e outro convite para sair, distrai-se vendendo pinturas, joias, louças, roupas e acessórios de grife no Instagram. Gasta horas refletindo, “olhando para cima”, “afundando o sofá”, ou vendo TV. Ao contrário do que pressentia ao chegar aqui, hoje consegue vislumbrar continuidade após a operação. Divaga sobre uma possível mudança ao ganhar o coração de um desconhecido.

– Será que vou mudar meu jeito de ser? Será que minha vida vai ser diferente? Eu sou boa, leve... será que vou ser mais seca? Será que vou ser mais carrancuda? Mais feia? Como será que vai ser?

Recobrado o otimismo, Ângela faz planos. Pretende retomar as viagens de navio, que já a levaram para Argentina, Holanda, Itália e França. Na próxima vez, quer cruzar o Atlântico rumo à Espanha, voltando a sentir o afago suave do vento no rosto em alto-mar.

– Quero fazer tudo que eu não fiz. Acho que vai ser uma nova chance, vou estar começando uma nova vida. O mundo vai ser pequeno para mim – diz Ângela, quase esquecendo de mencionar um outro desejo pendente. – Quero também tomar uma garrafa inteira de vinho. Tinto, malbec. Adoro vinho.

Ângela espera

um telefonema

Ângela carrega medalhinhas e tem preparada no celular uma mensagem a ser enviada a familiares e amigos quando for sua vez

Ângela espera

um telefonema

 

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