ELIZABETH MURPHY, WIKIMEDIA COMMONS, BD
REALIDADE INVENTADA

Rodrigo Lopes

rodrigo.lopes@zerohora.com.br

O que esperar se

acham que o Facebook

faz jornalismo?

N os anos 1980, um estranho experimento genético da Universidade de Hamburgo deu origem a um ser híbrido, nascido da mistura de um boi com um tomate. O resultado era uma fruta com casca semelhante a couro animal, com discos de proteína e tomate intercalados em seu interior. O boimate. Na crônica do jornalismo, essa história é bastante conhecida e estudada. Tratava-se de uma mentira, uma brincadeira de mau gosto publicada como verdade pela Revista Veja em abril de 1983. Que diferença há entre o boimate e informações falsas como a de que crianças estão sendo sequestradas em São Paulo para tráfico de órgãos? Eu respondo: a intenção. Boimate foi um erro, uma “barrigada” no jargão jornalístico. Disseminar o pânico é má-fé. Salvo por desvios éticos ou de caráter, nenhum jornalista ou veículo de comunicação divulga uma informação falsa. Como os médicos, temos o nosso juramento de Hipócrates: a busca pela verdade dos fatos é nosso sacrossanto ideal, pelo bem comum. Em 2016, as notícias falsas, em inglês fake news, se profissionalizaram. Elas existiam muito antes do mundo digital, da imprensa ou do arauto, que abastecia o rei, pintando muitas vezes relatos cor de rosa, com informações falsas, quiçá para não ser morto (até hoje há quem puna o mensageiro quando a mensagem não o agrada). Nasceram no mesmo parto da fofoca. A diferença é que, na era do compartilhamento, propagam-se com mais rapidez, favorecidas pelo chamado efeito bolha, a ideia de que seguimos nas redes sociais apenas pessoas com as quais concordamos. Lemos e propagamos o que reforça nossas visões de mundo. Se o algoritmo do Facebook, que sabe mais sobre nós do que nós próprios, dá uma força, sugerindo conteúdos que nos agradam, está feito o círculo vicioso. A serviço do pânico, tivemos boatos sobre arrastões ou toques de recolher disseminados em tempo real pelo WhatsApp. A serviço de interesses políticos, lemos que Hillary Clinton liderava uma rede de pedofilia. Até que ponto essas notícias podem ter influenciado a vitória de Donald Trump é uma discussão que entrará 2017 – se uma versão “S” de 2016 não aparecer antes da meia-noite deste sábado. Ficou fácil criar sites com cara de veículos noticiosos para dar verniz de credibilidade à mentira. Foi o que um grupo de rapazes fez na Macedônia, produzindo notícias que os leitores queriam ler (e compartilhar) nos Estados Unidos. Uma pesquisa da Universidade de Stanford concluiu que 80% dos adolescentes americanos não sabem distinguir com precisão se uma notícia é verdadeira ou falsa nas redes sociais. O que esperar se muitos acreditam que o Facebook e o Google são veículos jornalísticos? No século 20, o jornalismo testou os limites entre informação e opinião. No século 21, entre jornalismo e entretenimento – e, reconheço, às vezes ultrapassamos perigosamente as fronteiras. É hora de demarcar rigorosamente o limite entre verdade e mentira. E nesse turbulento mar de desinformação, o fact checking, tendência nas melhores casas de jornalismo do ramo, é um farol. Depois da pós-verdade, é hora de fazermos de 2017 o ano do desconfiômetro.
EPISÓDIOS MARCANTES LULA Em meio à polêmica nomeação de Lula como ministro-chefe da Casa Civil, em março, circula nas redes sociais uma capa falsa do jornal satírico francês Charlie Hebdo, em que o ex-presidente aparece com a mão nas nádegas de uma mulher representando a Justiça. ANTI-TRUMP? Em maio, ganham força rumores de que os moderadores de notícias do Facebook bloqueiam informações pró-Donald Trump e dão maior destaque às pró-Hillary Clinton. MAIS ALGORITMOS Time de moderadores de notícias do Facebook é demitido em agosto e substituído por engenheiros de algoritmos que escolhem as notícias mais populares, “sem parcialidade política”, de acordo com a rede social. FRAUDE? Mais de 6 milhões de pessoas recebem, em outubro, a notícia falsa de que milhares de cédulas fraudulentas, registrando voto para Hillary, foram encontradas em um depósito em Ohio. PIZZAGATE Em novembro, espalha-se o boato de que uma pizzaria em Washington seria sede de uma rede de prostituição infantil, comandada por Hillary e outros nomes do Partido Democrata. PALAVRA DO ANO Universidade de Oxford elege, em dezembro, “pós-verdade”: “Fatos objetivos têm menos influência em moldar a opinião pública do que apelos à emoção e a crenças pessoais”. PRÓ-TRUMP? Após críticas de que penderia para Hillary, Facebook enfrenta acusações de que teria ajudado a eleger Trump, ao não filtrar informações falsas que beneficiaram o presidente eleito. Mark Zuckerberg acha que é uma “loucura”, mas admite que o algoritmo tem de melhorar.