ANDERSON FETTER ,BD
PORTO ALEGRE

Paulo Germano

paulo.germano@zerohora.com.br

O aumento da população de rua

me abrutalhou

U ma coisa que me irritou em 2016, aqui em Porto Alegre, foram os moradores de rua. E eles nunca haviam me irritado. Eu gostava deles, me compadecia deles, conversava com eles. Lembro da noite em que minha mãe, na década de 1980, abalada por ver um gurizinho quase pelado, decidiu botá-lo no carro e levá-lo para casa, e lá em casa ele tomou banho, jantou e vestiu minhas roupas. Desde lá, tentei levar adiante esse legado altruísta, ajudando aqui e ali como podia, mas em 2016 me irritei. É assustador como o aumento descomunal da população de rua – que, entre os adultos, cresceu 75% de 2008 para cá – foi me abrutalhando. Em qualquer esquina, sinaleira ou porta de bar, lá estava um deles me pedindo ou me chamando ou me interrompendo ou me puxando. Em 2016, me acostumei a dizer não. Me acostumei a não sorrir, a ser seco, ríspido, indiferente. E nenhum deles me fez um grande mal. Não fui ameaçado nem assaltado – só me sentia incomodado. Foi o que bastou para uma casca grossa de impiedade e descaso me revestir de cima a baixo, e essa casca só amoleceu quando presenciei um ataque de choro. Faz 20 dias isso: passávamos de carro pela Borges de Medeiros e avistamos, eu e minha namorada, uma equipe da prefeitura removendo aquela multidão de sem-teto que se instalara no Viaduto Otávio Rocha. – Que bom que liberaram o viaduto – cheguei a pensar, mas a cara daquela gente me desorientou. Havia um senhor com um carrinho de súper, ele andava três passos para um lado, cinco passos para o outro, olhava para os lados, voltava para o mesmo lugar. E havia uma senhora sentada no cordão da calçada, ela tinha um olhar perdido e mirava o nada. Ainda refletia sobre aquilo quando girei o pescoço e vi a Marcela, ali dentro do carro, derramando um choro aflito e perene: – Para onde eles vão? Eles tinham o grupo deles ali. Tinham as coisas deles ali. Eles se ajudavam, sentiam-se parte de alguma coisa. Vão para onde agora? Para um albergue, pensei, mas preferi pesquisar. E descobri que aquelas pessoas foram retiradas de lá pelo DMLU, o departamento que cuida do... lixo. Descobri também que Porto Alegre tem 450 vagas em albergues para mais de 2 mil moradores de rua. E, nesses albergues, ninguém entra nem sai depois das 19h. Marcelo Soares, presidente da Fundação de Assistência Social, órgão responsável pelos sem-teto, disse que é injusto culpar apenas a Fasc porque “este fato social envolve a comunhão de várias áreas”. É verdade. Tanto é que, quando a UFRGS divulgou em dezembro a nova pesquisa sobre moradores de rua, esperava-se encontrar na reunião representantes das secretarias de Saúde e Habitação. Não apareceu ninguém. Aliás, o Departamento Municipal de Habitação sequer respondeu às solicitações de ZH sobre o número de moradores de rua que aguardam na lista dos programas habitacionais. Mas, voltando à Fasc, o Ministério Público deflagrou em outubro uma operação por suspeitas de corrupção, estelionato, crimes licitatórios, improbidade administrativa e lavagem de dinheiro na fundação. Quer dizer, 2016 foi muito mais do que o ano em que a água fedeu e a corrupção desceu aos esgotos (literalmente, vide o escândalo do DEP): foi o ano em que a cidade abandonou gente. Com 40 mil imóveis desabitados, segundo dados do Movimento Nacional da População de Rua, a única coisa que a cidade ouviu da futura administração sobre sua população miserável foi o que disse o vice-prefeito eleito, Gustavo Paim: – Nosso olhar está fechado em receita-despesa. Ainda não está no nosso horizonte isso. É uma questão que não podemos analisar. É com isso que pretendo me irritar em 2017. É bem mais irritante do que os pedintes.
EPISÓDIOS MARCANTES O TEMPORAL Em janeiro, casas são destelhadas, árvores caem e milhares de clientes ficam sem energia elétrica. O CASO DA ÁGUA Em maio, alterações no gosto e no cheiro da água preocupam a população, mas Dmae garante que não há risco em consumi-la. Na investigação das causas, suspeitas recaem sobre a Cettraliq, empresa que trata resíduos industriais. Ainda que não tenha sido comprovada relação direta, a água voltou ao normal após a interrupção das operações da Cettraliq pela Fepam, em agosto. DINHEIRO PELO BUEIRO Em julho, ZH mostra que empresa contratada pela prefeitura para limpar bueiros superfatura o serviço, que não é fiscalizado pelo Departamento de Esgotos Pluviais. Após a denúncia, o DEP substitui todos os engenheiros com cargos de chefia e encerra o contrato com a JD Construções, que, em setembro, devolve R$ 4,9 milhões. MARCHEZAN ELEITO Depois de Luciana Genro (PSOL) e Sebastião Melo (PMDB) liderarem as pesquisas, Nelson Marchezan, do PSDB, vence a eleição para prefeito. Pouco antes da votação, uma morte abala a campanha: Plínio Zalewski, coordenador de campanha de Melo, é encontrado morto. Investigação aponta suicídio. MORADORES DE RUA Em 9 de dezembro, reportagem de ZH mostra abandono do Viaduto Otávio Rocha. No dia seguinte, prefeitura retira moradores de rua do local, mas eles retornam dois dias depois. EMBATE PELO IPTU Em seus últimos dias como prefeito, José Fortunati decide usar a antecipação do IPTU para pagar o 13º salário dos servidores. Marchezan estuda ir à Justiça para evitar a antecipação do pagamento. Depois, acena com desconto maior para quem pagar em janeiro.