MANDEL NGAN, AFP, BD, 02/10/2016
A VITÓRIA DE TRUMP

Luiz Antônio Araujo

luiz.araujo@zerohora.com.br

Discurso não foi suavizado

Q uando o poeta americano Wallace Stevens morreu de infarto, em 1955, após passar a vida como sorumbático executivo de uma companhia de seguros de Connecticut, um de seus colegas comentou: “Eu nem sabia que ele tinha coração”. Ninguém estranharia se, diante do lançamento da candidatura de Donald Trump à presidência dos EUA, em junho de 2015, um gaiato tivesse se surpreendido pelo fato de o magnata nova-iorquino ter opiniões políticas. A maioria dos americanos conhecia Trump apenas pelas monumentais torres que levam o nome de suas empresas nos cinco continentes, por seus três casamentos e por seu desempenho como animador do reality show O Aprendiz (The Apprentice). É certo que o homem do topete laranja tinha mostrado simpatia pelos democratas no passado (Bill e Hillary Clinton haviam sido convidados a suas mais recentes núpcias, com a ex-modelo eslovena Melania). Também é verdade que, em 2011, ele emprestara o cenho franzido à folclórica campanha racista segundo a qual o presidente Barack Obama não teria nascido nos EUA. Na era das opiniões instantâneas via redes sociais, porém, isso poderia indicar qualquer coisa, menos intenção de concorrer à Casa Branca. Por isso, quando Trump entrou na corrida pelo lado republicano, ninguém o levou muito a sério. Em dezembro de 2015, quase dois meses antes do início do processo interno de escolha dos candidatos, Trump liderava a maior parte das pesquisas de intenção de voto entre eleitores potenciais do Partido Republicano. Seu slogan de campanha (“Faça os EUA grandes outra vez”) havia tomado de assalto corações e mentes de todas as faixas do eleitorado, com destaque para os de escolaridade mais baixa. O resto fora conseguido à custa de promessas bizarras (construir um muro na fronteira com o México para barrar a migração ilegal, obrigar países aliados a pagar pela própria segurança, punir empresas que instalassem plantas no Exterior), ataques brutais aos que o criticavam dentro e fora do partido e meia dúzia de declarações racistas e misóginas cuidadosamente entabuladas em programas de TV e em redes sociais. Sagrado candidato em junho contra tudo e contra todos, Trump passou a maior parte da campanha em desvantagem nas pesquisas eleitorais. Carimbou a rival democrata como “Hillary trapaceira”, prometeu mudar as leis para facilitar processos contra jornalistas, fincou pé em não divulgar as próprias declarações de renda e justificou até mesmo o fato de ter deixado de recolher impostos federais por 18 anos. No dia 8 de novembro, contrariando a imensa maioria dos prognósticos, obteve uma maioria confortável de 306 votos no colégio eleitoral contra 232 de Hillary, embora a ex-secretária de Estado tenha obtido quase 3 milhões de votos populares a mais. Pela primeira vez na história, multidões saíram às ruas em protesto com cartazes onde se lia “Não é meu presidente” nas maiores cidades americanas. Alguns previram que, após a vitória, ele suavizaria o discurso. Não foi bem assim. Escolheu uma equipe de governo que tem um secretário de Estado amigo de Vladimir Putin, um secretário de Justiça suspeito de simpatias pela Ku Klux Klan, um secretário do Tesouro envolvido nas maracutaias que abriram caminho à crise financeira de 2008 e uma secretária de Educação acusada de arrasar o sistema de escolas públicas em Detroit. A CIA e o FBI dizem que Trump se elegeu graças a um complô dos russos. Mas não se pode descartar que os americanos tenham agido sozinhos.
EPISÓDIOS MARCANTES FOGO AMIGO (1) No debate do Partido Democrata entre Hillary Clinton e Bernie Sanders, em janeiro, a ex-secretária de Estado ataca discurso “antipolítico” do rival. FOGO AMIGO (2) Em debate do Partido Republicano, em fevereiro, Marco Rubio diz que Donald Trump “estaria vendendo relógios em Manhattan se não tivesse herdado US$ 200 milhões”. FOGO AMIGO (3) Em março, Mitt Romney, candidato republicano na eleição de 2012, diz que Trump diminui “as perspectivas de um futuro seguro e próspero”. A DEFINIÇÃO Em julho, Hillary e Trump são nomeados candidatos à presidência. O CONFRONTO No primeiro debate, em setembro, Hillary e Trump trocam ofensas, dando o tom dos três encontros seguintes. AS DENÚNCIAS Em outubro, o jornal New York Times mostra que Trump declarou perdas de US$ 916 milhões no imposto de renda de 1995, o que teria lhe dado isenção de impostos federais por 18 anos. O Washington Post revela conversa em que o empresário afirma que, por ser uma estrela, pode fazer oque quiser com as mulheres. OS E-MAILS No fim de outubro, é Hillary quem sofre. O FBI informa que a investigação sobre os e-mails de sua passagem como secretária de Estado será revisada. Hillary usou um servidor particular em vez do servidor do governo americano – assim, expondo assuntos de segurança nacional à ação de hackers. O CHOQUE Em novembro, Donald Trump contraria as pesquisas, que conferiam boa vantagem a Hillary Clinton, e vence a eleição. A vitória é construída pelo voto dos eleitores de áreas rurais, enquanto Hillary domina nas metrópoles.