Quando se fala em financiamento da universidade pública, um dos tópicos com maior potencial para gerar polêmica é o da eventual cobrança de mensalidades. Dois anos atrás, o Banco Mundial chegou a recomendar ao governo brasileiro que extinguisse a gratuidade, alegando que as instituições federais atendem e subsidiam a parcela mais rica da população. Recentemente, o ministro Abraham Weintraub mostrou-se favorável a tornar paga a pós-graduação:
— Tá lá o bonitão com diploma de advogado querendo fazer um mestrado. Aí você tem condição de pagar. O aluno de graduação, acho que não, esse a gente poderia postergar. Não é para toda a pós-graduação, mas para algumas que têm visão de mercado, a gente aí poderia cobrar.
Ao olhar para outros países, percebe-se que o modelo brasileiro nada tem de peculiar. Muitos oferecem o ensino público gratuito, como Alemanha, Dinamarca e Noruega, que, além de não cobrarem mensalidade, ainda concedem bolsas para ajudar o aluno a se manter durante os estudos. Em outras sociedades, há cobrança nas instituições públicas, mas os valores são baixos — é o caso da Hungria ou da Áustria, com anuidades abaixo de US$ 1 mil.
Valores bem mais elevados são cobrados de estudantes dos Estados Unidos e do Reino Unido. Entre os britânicos, as universidades não são públicas. Eram gratuitas e bancadas pelo Estado até duas décadas atrás e agora são pagas — o governo continua a cobrir uma parte importante do orçamento, impõe valores máximos para as anuidades e passou a oferecer mais dinheiro na forma de financiamento aos estudantes. Nos Estados Unidos, as universidades públicas, que atendem dois terços dos alunos, cobram valor menor do que as privadas.
Segundo um relatório de 2018 da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), países em que o Ensino Superior é pago acabam investindo pesadamente em bolsas e financiamento estudantil. É o caso norte-americano, o que dá origem a problemas sérios de endividamento e calote. O exemplo oposto é o Chile. No ano passado, com as famílias endividadas e sem condições de bancar Ensino Superior aos seus filhos, o país aprovou uma lei que garante gratuidade nas universidades — não apenas nas públicas, mas também nas particulares.
O economista Renan Pieri, da Fundação Getúlio Vargas (FGV) em São Paulo, figura entre os defensores da implantação de um modelo com cobrança no Brasil. Ele prega que o governo continue a subsidiar o setor, mas vê nas mensalidades uma forma de aumentar a receita e ajudar a fechar as contas do Ministério da Educação (MEC). Pieri entende que alunos mais ricos poderiam arcar com os custos. Uma possibilidade, segundo ele, seria que continuassem a pagar na faculdade o mesmo valor da mensalidade da escola particular de onde vieram. Outra seria definir quem paga de acordo com a renda familiar. O economista também considera possível um modelo em que se generalizasse a concessão de financiamento estudantil, a ser reembolsado após a formatura.
— A questão é que precisa aumentar a arrecadação e é injusto dar a um aluno de nível socioeconômico elevado um subsídio tão alto às custas do contribuinte de renda baixa. Quando o aluno vai para a educação superior pública, é como se ganhasse na loteria, porque, além do retorno social, há um retorno privado, ele vai ganhar mais no futuro. É óbvio que faz sentido, como sociedade, subsidiar esse aluno. Mas esse subsídio não precisa ser total, ele pode arcar com uma parte, porque ele vai tirar benefício daquilo. Tem de buscar complementação de receita, e a cobrança de mensalidade pode ser uma boa saída. Estamos à beira de um colapso orçamentário. As alternativas têm de estar sobre a mesa, e precisamos ter a coragem de discutir soluções que não prejudiquem nosso futuro — defende o economista.
Sistema de cotas sociais e raciais
A ideia de impor mensalidades é combatida por outros especialistas, que questionam, por exemplo, um dos principais pressupostos do relatório do Banco Mundial: a ideia de que o aluno da universidade federal provém das classes mais abastadas. Eles reconhecem que isso era verdade no passado, mas mudou radicalmente a partir da implantação do sistema de cotas sociais e raciais, que elevou para 70% a proporção dos estudantes com renda per capita familiar inferior a um salário mínimo e meio. Para o professor Sérgio Franco, essa mudança de perfil socioeconômico ajudaria, inclusive, a explicar por que se fala tanto agora em cobrar pela faculdade pública:
— Não se pode negar que o Ensino Superior é gratuito, no Brasil, porque as elites não queriam pagar pelo estudo dos seus filhos, numa época em que quem estudava na universidade era só a elite. Com as cotas, metade de quem entra é de baixa renda. Como acabar com a gratuidade sem excluir essas pessoas?
Renato Janine Ribeiro, ex-ministro da Educação, vê inúmeros problemas na proposta de cobrar mensalidade. Cita a necessidade de construir todo um sistema administrativo complexo (para determinar quem deve pagar e para efetuar as cobranças), cujos custos comeriam a arrecadação extra. Também prevê que alguns cursos importantes — ele menciona Letras e Filosofia — poderiam ficar com vagas ociosas, dependendo do valor das mensalidades. Lembrando o exemplo norte-americano, aponta o risco de endividamento por causa dos empréstimos estudantis.
— Outro argumento contra a cobrança é que, quando você incentiva as pessoas a fazer um curso superior, e a gratuidade é uma forma de incentivar, você melhora a produtividade dessas pessoas, e a sociedade ganha com isso — afirma Janine Ribeiro.
O doutor em Educação Gregório Grisa, professor do Instituto Federal do Rio Grande do Sul, acrescenta que seria necessário mudar a Constituição para instituir mensalidades — e teme que, uma vez aberto esse precedente, possam começar a se espalhar outras cobranças e taxas no sistema público, sem falar nas possíveis complicações jurídicas. Ele também observa que surgiriam dificuldades tremendas para estabelecer quem deveria pagar:
— Vamos tomar como base o critério que se usa para conceder o Fies, que é o estudante ter uma renda per capita de até cinco salários mínimos. Ou seja, estamos falando de uma família com quatro pessoas e renda de R$ 20 mil. Se por um lado financiamos famílias com essa renda per capita de cinco salários mínimos, não podemos de outro lado cobrar mensalidade de uma família com renda per capita de três salários mínimos, porque cobraríamos de alguém que ganha menos do que outro que está sendo financiado com dinheiro público. Mas se usamos o critério do Fies, o potencial de arrecadação é muito restrito, não chegaria a 5% dos alunos. Cobrar tem potencial arrecadatório muito limitado e abriria um flanco legal e político com efeitos colaterais que a gente desconhece.
Como é o Ensino Superior em outros países
O Ensino Superior custa caro em qualquer lugar do mundo e sempre depende de dinheiro público para funcionar. A diferença está em como ele é aplicado. Cada país tem sua própria receita. Alguns, como o Brasil, mantêm universidades estatais gratuitas. Em outros, há universidade pública, mas o aluno tem de pagar. Existem também sistemas baseados no ensino privado, no qual o governo entra oferecendo bolsas e financiamento estudantil. Confira alguns exemplos:
Estados Unidos
- Sistema: conta com universidades privadas e públicas. As privadas, em sua maioria, não têm fins lucrativos. As públicas são de responsabilidade estadual. Todos os Estados mantêm universidades. A Califórnia, por exemplo, tem três instituições, que somam quase 150 campi. Embora muitas das instituições mais famosas sejam privadas, dois em cada três alunos dos Estados Unidos frequentam uma universidade pública.
- Pagamento: os alunos pagam anuidade em ambos os sistemas, mas o custo nas universidades estatais é bem mais baixo do que nas particulares — ainda que, em comparação com os padrões internacionais, seja elevado. Uma universidade pública cobra, em média, cerca de US$ 8 mil por ano. Nas particulares, o valor costuma ficar entre US$ 15 mil e US$ 50 mil.
- Participação do governo: há expressiva injeção de dinheiro público no setor — e desde os primórdios. Uma lei de 1862, por exemplo, determinou a doação de mais de 120 quilômetros de terras da União para o estabelecimento das instituições. Em 2015, 3,5% dos gastos públicos foram direcionados ao Ensino Superior.
- Bolsas: por causa da cobrança de anuidades, o sistema norte-americano prevê a concessão de muitas bolsas (com frequência concedidas pelas próprias universidades) e de farto financiamento estudantil. Segundo relatório da OCDE, pelo menos 80% dos alunos do Ensino Superior recebem algum tipo de apoio, como bolsas de estudos, subsídios ou empréstimos governamentais (55% contam com financiamento estudantil público).
- Empréstimo: a necessidade de tomar um empréstimo para estudar é um sério problema para muitos estudantes norte-americanos. Um relatório recente revelou que 31% deles estiveram ou estão endividados. Há 44 milhões de endividados, com um débito total que ultrapassa a marca de US$ 1,5 trilhão. A dívida no momento da formatura é de US$ 37 mil, em média. A estimativa é de que, em 2023, 40% dos devedores estejam inadimplentes.
Alemanha
- Sistema: tem um Ensino Superior baseado em instituições públicas, financiamento estatal e gratuidade para os estudantes. As universidades são basicamente da alçada estadual, embora também recebam dinheiro federal para se manter. Há universidades privadas, mas são pouco numerosas e recebem parcela pequena dos alunos.
- Pagamento: o que costuma ser exigido dos matriculados são algumas taxas administrativas, com valores simbólicos, girando entre 150 e 350 euros por semestre. A filosofia do sistema é que facilitar o acesso e custear o ensino para o máximo possível de alemães traz benefícios ao país.
- Participação do governo: na década passada, houve polêmicas envolvendo a cobrança por parte de instituições públicas. Uma lei que impedia a prática foi considerada inconstitucional pelo Judiciário, e sete Estados determinaram que os estudantes deveriam pagar para estudar. O valor era modesto — 500 euros por semestre —, mas eclodiram protestos e abaixo-assinados que levaram à reversão da medida. A cobrança ficou restrita, em algumas universidades, a estudantes de fora da União Europeia ou a alemães que demoram muito mais do que o necessário para concluir o curso ou que fazem um segundo curso no sistema (nesses dois últimos casos, o semestre custa de 500 euros a 900 euros).
- Bolsas: universitários de famílias pobres, sem condições de se manter durante o período da faculdade, podem contar ainda com auxílio financeiro do governo. O principal programa existente garante até 735 euros por mês. É um empréstimo, mas apenas uma parte precisa ser paga, sem juros e com o valor máximo de 10 mil euros. De cada quatro estudantes, um recebe esse benefício.
Reino Unido
- Sistema: o financiamento do Ensino Superior tem sofrido transformações significativas ao longo dos último anos. No sistema britânico, as universidades são instituições privadas sem fins lucrativos (com raras exceções), mas subsidiadas por recursos públicos. O que vem mudando é o tamanho desse subsídio. O governo repassa cada vez menos dinheiro às instituições, que dependem mais e mais das anuidades cobradas do aluno. Para compensar, o poder público passou a oferecer financiamento estudantil em volumes maiores.
- Pagamento: até 1997, o ensino era gratuito, coberto por verbas governamentais. No ano seguinte, começaram as cobranças de anuidades. A maior parte do dinheiro das universidades continuou a vir diretamente dos cofres públicos, mas um pedaço passou a ser pago pelos estudantes. O governo determinou um valor máximo de anuidade, que começou em mil libras e foi aumentando gradativamente, até chegar as 9,25 mil libras atuais (na Inglaterra).
- Participação do governo: ao mesmo tempo, o governo foi reduzindo os repasses para os reitores. No começo da década, a transferência era da ordem de 7 bilhões de libras. Atualmente, está abaixo de 4 bilhões. No mesmo período, a arrecadação com anuidades saltou de 2,5 bilhões para 9,9 bilhões. Conforme a organização Universities UK, no ano calendário 2015-2016, os repasses diretos do governo representavam 26% do orçamento das instituições, enquanto as anuidades já correspondiam a 44%.
- Bolsas: as concedidas aos universitários pelo governo central também sofreram. Antes, quem não vinha de uma família rica poderia pleitear uma ajuda de custo para se manter. Em 2015, o governo gastou 1,6 bilhão de libras nesse programa. Mas ele foi extinto para novos alunos a partir do exercício seguinte. Em paralelo, as autoridades aumentaram os empréstimos para pagamento das anuidades ou para o aluno se manter enquanto frequenta o curso. Os créditos passaram de 6 bilhões de libras em 2011-2012 para 15 bilhões de libras em 2017-2018. Devem chegar a 20 bilhões em 2022-23.
- Segundo um relatório do Parlamento britânico, depois da redução das transferências diretas e do aumento de empréstimos aos estudantes, o custo do governo com o Ensino Superior manteve-se praticamente igual ao período anterior ao início da cobrança pelo ensino.
Chile
- Sistema: no começo de 2018, o Congresso chileno aprovou, com 102 votos a favor e duas abstenções, uma lei que garantiu universidade gratuita para a população mais pobre — na verdade, a lei contempla todas as famílias que estão entre as 60% de menor renda no país, ou seja, uma considerável maioria. Uma particularidade é que a legislação não abrange apenas universidades públicas, mas também as particulares. O sistema vigente no Chile era uma herança da ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990), que havia estimulado a privatização do Ensino Superior e estabelecido cobrança também nas universidades públicas. Em relação ao poder aquisitivo, a universidade chilena era uma das mais caras do mundo. Uma mensalidade equivalia, em geral, ao dobro do salário mínimo. A partir de 2006, o país começou a assistir a grandes mobilizações e protestos estudantis, motivado pelo endividamento das famílias ou pela impossibilidade de acesso aos cursos superiores.
- Pagamento: em anos anteriores, o governo já vinha oferecendo a gratuidade para os alunos de famílias mais pobres, mas por disposições orçamentárias. Em 2018, estudar de graça virou um direito assegurado em lei.
- Participação do governo: para se credenciar, além de cumprir o requisito socioeconômico, o candidato não pode já ter concluído um curso superior (salvo algumas situações específicas). Esse estudante poderá se matricular em qualquer uma das quase 48 universidades participantes — que incluem as instituições públicas e também as particulares que se tenham habilitado. Em troca do ensino gratuito, o governo oferece financiamento à instituição.
- Bolsas: a lei chilena estabelece que o estudante possa mudar uma vez de curso e que, caso sua permanência na universidade se estenda além do período obrigatório, tenha de pagar pela mensalidade (50% no primeiro ano extra e 100% depois disso).
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Por que fizemos esta matéria?
Declarações do presidente Jair Bolsonaro e de Abraham Weintraub, ministro da Educação, levantaram a discussão em torno dos gastos com educação. A fim de trazer dados necessários e relevantes a esta discussão, o Comitê Editorial do Grupo RBS sugeriu à Redação Integrada uma reportagem profunda sobre financiamento da Educação Superior no Brasil, comparando-o com outros países.
Como apuramos esta matéria?
Um dos principais investimentos foi buscar estatísticas que revelassem a situação do financiamento da educação do Brasil e também que permitissem compará-la com a de outros países. Foram consultados dados e notas técnicas do Ministério da Educação, além do relatório Education at a Glance 2018, um alentado estudo comparativo da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE). Ainda foram entrevistados professores e especialistas em Educação que têm se dedicado ao tema e que contemplam diferentes pontos de vista sobre a questão.