
O eletrotécnico e motorista de aplicativo Fabrício Santos, 48 anos, vê parte importante do orçamento ficar na oficina para manter rodando o carro que é peça importante no sustento da família. Mas, hoje, não consegue trocar por um novo, porque sua renda não suporta. A professora universitária Paula Pinhal de Carlos, 44, vê os gastos domésticos pressionados pelos custos com supermercado, o que limita atividades de lazer e serviços. O designer Lucas Caldeira, 23, mudou-se de Porto Velho (RO) para Porto Alegre, onde conseguiu renda maior, mas, com dificuldades para adquirir bens de maior valor, como carro e casa própria, sente que sua ascensão social foi interrompida.
O relato desses três trabalhadores sintetiza o sentimento de muitas famílias de classe média no país. Mesmo com recordes na geração de emprego e atividade econômica acima do esperado, progredir socialmente no Brasil parece mais difícil.
Os custos de vida em alta e a renda que não aumenta na velocidade ideal achatam o poder de compra de parte da população, reduzindo o acesso a bens de maior valor e a frequência de atividades como viagens.
- Na prática, a renda média vem apresentando altas nos últimos anos e a inflação caminha para ficar sob controle.
- No entanto, alguns produtos consumidos pelos brasileiros, como certos alimentos e serviços, subiram acima da média da inflação em anos anteriores.
- Com isso, a classe média, que já tem gastos fixos elevados, vê a capacidade de poupança diminuir.
Inflação e novos hábitos
O economista André Braz, coordenador do Índice de Preços ao Consumidor do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV Ibre), destaca a pressão que a inflação tem nos rendimentos da população, principalmente no caso da classe média:
— Esse grupo já enfrenta um custo de vida elevado, com despesas fixas importantes em habitação, transporte, educação e saúde. E quando a alimentação encarece, há menos margem para consumir outros bens e serviços. Na prática, o aumento dos preços dos alimentos achata o poder de compra. As famílias destinam uma fatia maior da renda para gastos essenciais e acabam reduzindo despesas discricionárias, como lazer, turismo, cultura e até serviços pessoais.
Segundo Braz, em um passado recente, os salários, que geralmente acompanham a inflação média, não tiveram a mesma correção que alguns itens, tornando o orçamento insuficiente para impulsionar o poder aquisitivo das famílias.
Nos últimos anos, os hábitos de consumo e de lazer da população também passaram por mudanças na esteira do avanço tecnológico.
— Tem uma série de elementos que não faziam parte da cesta de consumo, de serviços das pessoas, como, por exemplo, smartphone, banda larga, streaming, uma série de novas contas que todos nós estamos tendo, que a gente não tinha no passado. E essas contas disputam espaço com itens básicos do orçamento, como alimentação — destaca Marcelo Neri, diretor da FGV Social.
O professor Maurício Weiss, do Programa de Mestrado Profissional de Economia (PPECO) da UFRGS, afirma que, desde 2023, a renda média vem apresentando alta e uma recuperação frente à inflação. No entanto, destaca que a elevação no preço dos alimentos nos anos anteriores ainda mantém essa sensação de renda defasada. Além disso, o repique no endividamento das famílias também pode tirar mais espaço do orçamento, segundo o professor.
Dificuldade em progredir
Citado no início da reportagem, Fabrício Santos viu seu poder aquisitivo numa gangorra nas últimas décadas. No início da carreira como eletrotécnico, entre o fim da década de 1990 até 2005, teve crescimento social e econômico contínuo, em um mercado aquecido. Entre 2008 e 2015 chegou a um platô, com lenta recuperação da renda após idas e vindas na área. Nesse período, conseguiu comprar casa própria e ainda trocava de veículo com mais frequência.
Em 2017, com dificuldades no ramo, migrou para o trabalho como motorista de aplicativo. Teve um início promissor nesse segmento, com rendimentos acima da média e poder de compra favorecido por uma inflação menos agressiva. No entanto, de lá para cá o orçamento familiar foi sendo corroído pela alta em gastos fixos.
Além disso, Santos relata que as plataformas pagam valores parecidos com os de cerca de 10 anos atrás, mas os preços de produtos e serviços aumentaram. Com isso, hoje, morando com a esposa e dois filhos em Esteio, consegue apenas bancar o básico do dia a dia.
— Eu preciso urgentemente trocar de carro, o que é uma dificuldade para mim. Meu carro tá ficando velho e eu ando gastando muito com manutenção. Além disso, os aplicativos aceitam veículos apenas com 10 anos de uso. Depois dessa idade, eles já não têm mais validade para as plataformas. E eu não tenho condição de financiar um um veículo hoje. Esse custo adicional está fora do meu orçamento. Também tem a minha casa, que tá precisando de reforma, e eu não consigo juntar dinheiro para isso — descreve.
O descompasso entre a renda e os custos também impacta a rotina do trabalhador. A jornada inicial de oito horas diárias, com folgas aos fins de semana, tornou-se inviável. Atualmente, para alcançar uma renda mínima, ele diz que precisa trabalhar 10 horas por dia, incluindo os fins de semana.

Lucas Caldeira, 23 anos, viu sua renda aumentar ao deixar a cidade onde nasceu para atuar como gerente de um café e como freelancer na área de design em Porto Alegre. Mesmo assim, sente que está distante de adquirir um imóvel ou um carro. A melhoria no salário também levou a um aumento no custo de vida, com o rendimento ficando muito comprometido por despesas obrigatórias, como aluguel e alimentação.
— Tem gente, por exemplo, que abre mão do conforto, de várias questões, e passa muita dificuldade para guardar dinheiro, para poder fazer com que certas coisas aconteçam. E o mundo vende dessa forma. Vende que para você conseguir um carro, uma casa, tem que ser dessa forma, acordar às 5h e ir dormir muito tarde pra começar o dia de novo. Mas, mesmo você fazendo isso, acho que é muito difícil — avalia Caldeira.
Na ponta do lápis
O encolhimento do poder de compra também modifica os hábitos de consumo das famílias de classe média. Com os preços nas gôndolas avançando, conflitos internacionais que pressionam os custos e problemas climáticos que afetam a produção, algumas pessoas precisam repensar marcas, quantidades e frequência de consumo de alguns itens do dia a dia.
A professora universitária Paula Pinhal de Carlos, 44 anos, que mora com o esposo e a filha, de oito anos, em Porto Alegre, notou que o valor da conta do supermercado aumentou muito nos últimos anos, sendo necessário pesquisar preços em até três ou quatro lugares diferentes e buscar alternativas mais baratas, comprando inclusive alguns produtos pela internet. Mesmo assim, avalia que o orçamento está cada vez mais voltado ao essencial.
— A gente cortou mais viagens e restaurantes. Você comprando no super, mesmo estando caro, sai pela metade do preço de comer na rua. Comer na rua está muito mais caro. A sensação é de que antes eu conseguia fazer economia e agora não tem mais como. Tem que fazer todas essas alternativas e às vezes não sobra, às vezes falta, às vezes sobra pouco, né, mesmo não tendo tido nenhuma redução assim de salário ou alguma modificação que justificasse isso — comenta Paula.
Efeito na economia
Economista do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) e especialista em mercado de trabalho, Lúcia Garcia afirma que mesmo com o emprego atingindo níveis recordes, as vagas geradas não favorecem a classe média:
— A gente está abrindo uma curva em que nós temos uma certa escassez das oportunidades de trabalho, de prestígio, de remuneração, no segmento que nós convencionamos em chamar de classe média.
O economista André Braz afirma que a queda no poder de compra da classe média tem efeito em cadeia sobre a economia, porque esse segmento é grande gerador de demanda. Ou seja, se a classe média deixa de acessar itens não essenciais, isso impacta a receita de prestadores de serviços e comerciantes, que também já viveram dias melhores, quando mais pessoas tinham potencial de gastar além das despesas fixas.



