
O baiano Roberto Azevêdo, 67 anos, ingressou no Itamaraty em 1984 e se tornou um dos mais notáveis diplomatas brasileiros dos últimos 40 anos. Durante cerca de três décadas de atuação no Ministério das Relações Exteriores, Azevêdo acumulou passagens por postos destacados, como a embaixada brasileira em Washington.
Em 2013, se tornou o primeiro latino-americano a ser eleito diretor-geral da Organização Mundial do Comércio (OMC). Em 2017, Azevêdo foi reconduzido ao cargo para um segundo mandato, ficando no posto até renunciar em seu último ano de gestão, em 2020. Ainda hoje, se mantém como um dos maiores especialistas em comércio Exterior no Brasil e no mundo.
Nesta entrevista exclusiva à Zero Hora, Azevêdo analisa o tarifaço imposto pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, à importação de produtos brasileiros. O diplomata projeta os possíveis impactos à economia brasileira caso a medida entre, de fato, em vigor.
Azevêdo defende que o Brasil siga tentando negociar novos termos com os norte-americanos e comenta os efeitos que a agressiva política tarifária praticada pelos Estados Unidos deixará no sistema internacional de comércio.
A forma beligerante e agressiva adotada, mesmo que superada mais adiante, deixará marcas duradouras na percepção global.
ROBERTO AZEVÊDO
Diretor-geral da OMC entre 2013 e 2020
Confira a entrevista
Como você avalia a imposição de 50% de tarifas de importação aos produtos brasileiros por parte do governo norte-americano? Se a medida de fato entrar em vigor, quais seriam os principais impactos para a economia brasileira?
Se implementadas, as tarifas teriam um impacto macroeconômico agregado, no PIB, menos dramático, em torno de 0,5% a 1,5% de queda. Os efeitos seriam mais severos e localizados em setores específicos.
No agronegócio, setores de carne, suco de laranja, frutas, experimentariam queda abrupta nas exportações para os Estados Unidos, entre 60 e 80%, ou até mais. Seriam perdas bilionárias e milhares de empregos rurais estariam sob risco.
Os manufaturados de maior valor agregado, como autopeças, maquinário e calçados, teriam grave perda de competitividade naquele mercado, com provável queda de mais de 70% nas vendas para os Estados Unidos, demissões e risco de fechamento de fábricas.
O setor aeronáutico — a Embraer mais especificamente — seria duramente atingido. A venda de aeronaves tem margens bem estreitas, e poucos pontos percentuais podem inviabilizar transações, que seriam facilmente abocanhadas pelos competidores.
Os produtos semimanufaturados, como o ferro-gusa por exemplo, também podem experimentar quedas de 40-60% nas receitas de exportação para os Estados Unidos, afetando nichos específicos.
Em resumo, o dano não seria homogêneo, mas haveria sim uma crise concentrada em setores exportadores chave e de alto valor agregado, com sérias consequências para empresas e trabalhadores envolvidos.
Acredita que o melhor caminho para o governo brasileiro é tentar negociar com os norte-americanos para buscar uma redução das tarifas antes da entrada em vigor? Acha que há espaço para negociações em bases comerciais, mesmo sendo os EUA superavitários na relação comercial com o Brasil, e com os aspectos políticos que o presidente Trump mencionou na carta de comunicação das tarifas?
Sim, o governo brasileiro deve, sem dúvida, tentar negociar com os norte-americanos para buscar uma redução ou anulação das tarifas antes que entrem em vigor, ou mesmo depois.
As portas para a negociação comercial não podem estar fechadas. Mesmo que os Estados Unidos sejam superavitários na relação comercial com o Brasil, a motivação das tarifas, embora com uma clara dimensão política neste caso, segue a lógica comercial de pressão por "reciprocidade" e correção dos desequilíbrios alegados, de forma muito semelhante ao que ocorre com outros países hoje em negociações duras com os EUA.
Os aspectos políticos mencionados por Trump na carta, e o delicadíssimo momento pelo qual atravessam as relações bilaterais entre Brasil e Estados Unidos, sem dúvidas complicam o cenário, mas não devem ser impeditivos para as negociações comerciais. Esses temas, que envolvem aspectos de soberania e integridade institucional, devem ser tratados em uma "pista" diplomática e política separada, permitindo que a pauta econômica siga seu curso. Mas é um tremendo desafio.

Muito se especula como o governo brasileiro poderia responder ao tarifaço, caso entre de fato em vigor. Se o Brasil optasse por replicar a imposição de 50% de tarifas de importação aos produtos norte-americanos, geraria impacto negativo na indústria brasileira e no mercado interno? Acredita que a chamada "retaliação cruzada" pode ser mais assertiva, focando a resposta em serviços e setores estratégicos?
Se o Brasil optar pela "retaliação" ou "reciprocidade" com aumento de tarifas de importação de nossa parte, isso geraria, sim, um impacto negativo significativo em várias frentes, em particular com aumento de preços internos e ruptura nas cadeias de produção da indústria brasileira. Mais empregos estariam ameaçados, e a economia sofreria ainda maior pressão para desacelerar. Da mesma forma como o tarifaço, a meu ver, também terá efeitos negativos na economia norte-americana.
O momento é de baixar a temperatura e evitar perdas ainda maiores para ambos os lados. Apesar de a "retaliação cruzada" ter sido eficaz no contencioso do algodão há 15 anos, o momento geopolítico atual e das relações bilaterais são bem distintos. Além disso, os parâmetros comerciais, técnicos e jurídicos também mudaram, sobretudo se estivermos falando de quebra de patentes.
O governo brasileiro desde o início sinalizou que pretende acionar a OMC contra o tarifaço imposto pelos Estados Unidos. Acredita que esse tipo de ação ainda tem força? Como avalia a atual capacidade da OMC de se posicionar como a principal arena de resolução de conflitos comerciais internacionais?
O governo brasileiro pode e deve atuar na OMC contra o tarifaço imposto pelos Estados Unidos, mas é crucial entender as limitações atuais dessa ação.
Como plataforma para solução de controvérsias de natureza litigiosa, a OMC está inoperante. O Órgão de Apelação, essencial para o funcionamento do sistema de solução de disputas, está paralisado devido ao bloqueio de nomeações de juízes por parte dos Estados Unidos.
Portanto, acionar a OMC nesse contexto não terá consequências práticas como resultado de um processo litigioso. A Organização serviria mais como um palco para discussões, uma forma de chamar a atenção dos demais membros para as práticas que o Brasil considera ilegais dos Estados Unidos, mostrando que o outro lado está violando os acordos contratados. No entanto, não servirá para muito mais do que isso no cenário atual.
Essa política tarifária agressiva praticada pelo governo Trump não pode acabar se voltando contra o país, prejudicando principalmente as empresas locais e o consumidor norte-americano? Também não pode acelerar ainda mais a conclusão de acordos comerciais entre outros blocos, como o próprio acordo do Mercosul com a União Europeia, ou o recentemente aprovado acordo do Mercosul com a EFTA?
Sim, pode e deve ter efeitos negativos na estrutura econômica dos Estados Unidos, prejudicando empresas e consumidores com custos domésticos mais altos e acesso reduzido a bens de maior qualidade. Pode ainda afetar negativamente a inovação e o desenvolvimento tecnológico.
As formas como a economia norte-americana será impactada são numerosas e, francamente, imprevisíveis. Não penso que a estratégia de "reindustrialização" perseguida por Trump, moldada na economia do século passado, será bem-sucedida.
Além disso, essa política tarifária aplicada pelos Estados Unidos estimula a busca dos outros países por outros parceiros comerciais, mais confiáveis e estáveis, tanto como consumidores quanto supridores. Ainda, fomenta a conclusão de acordos comerciais entre outros blocos, como Mercosul-UE, Mercosul-EFTA e em outras regiões, à medida que países buscam alternativas e diversificam suas relações.
Mais que impactos econômicos, essa postura afeta a credibilidade dos Estados Unidos como aliado, parceiro comercial e fonte de inspiração. A forma beligerante e agressiva adotada, mesmo que superada mais adiante, deixará marcas duradouras na percepção global.

