
No fim de maio, a Azul anunciou que estava entrando com um pedido de recuperação judicial, protocolado nos Estados Unidos. Nos últimos anos, as outras duas principais companhias aéreas brasileiras também passaram pelo mesmo processo — a Latam em 2020 e a Gol em 2024. Os motivos que levaram a isso são vários, segundo especialistas no setor, com agravamento principalmente a partir da pandemia de Covid-19.
O anúncio do pedido de recuperação judicial da Azul já era aguardo pelo mercado, dadas as dificuldades que a empresa vinha apresentando para levantar capital e renegociar dívidas. A recuperação da Azul contempla aproximadamente US$ 1,6 bilhão em financiamento durante o processo, eliminação de mais de US$ 2 bilhões em dívidas (cerca de R$ 11 bilhões) e previsão de até US$ 950 milhões em novos aportes de capital no momento da saída, segundo fato relevante divulgado pela empresa ao mercado.
A companhia também informou que celebrou "acordos de apoio à reestruturação" com suas principais partes interessadas. Isso inclui detentores de títulos da companhia, sua maior arrendadora, a AerCap — que representa a maior parte das obrigações da companhia com leasing de aeronaves — e os parceiros estratégicos nos Estados Unidos, como United Airlines e American Airlines.
"Esses acordos marcam um passo significativo na transformação do nosso negócio, pois nos permitirá emergir como líderes do setor nos principais aspectos da nossa atividade", afirmou o CEO da Azul, John Rodgerson, em comunicado oficial comentando o pedido de recuperação judicial nos Estados Unidos.
Entre as três principais companhias que operam no Brasil, a Azul era a única que ainda não tinha recorrido ao pedido de recuperação judicial nos Estados Unidos. A Latam ingressou com o pedido ainda durante a pandemia e encerrou a recuperação judicial em 2022. Já a Gol entrou com o pedido em 2024 e no último dia 6 comunicou sua conclusão.
Gol e Azul, inclusive, vinham negociando uma possível fusão. A Azul, contudo, deve agora focar suas atenções prioritariamente ao processo de reestruturação.
Razões para a crise
O pedido de recuperação judicial da Azul, precedido pelos processos da Latam e da Gol, se insere em um contexto pós-pandemia, quando a demanda da aviação civil foi drasticamente atingida. Além disso, nos últimos anos, a desvalorização do real diante do dólar agravou a crise das companhias aéreas brasileiras, que têm grande parte dos seus custos na moeda norte-americana.
O próprio CEO da Azul, no comunicado do pedido de recuperação judicial da empresa, destaca que sua operação "foi sobrecarregada pela pandemia da Covid-19, turbulências macroeconômicas e por problemas na cadeia de suprimentos da aviação".
— Historicamente, as companhias aéreas já operam com uma margem de lucro mais apertada, mas com a quebra da demanda causada pela pandemia, esse cenário ficou ainda mais apertado. Soma-se a isso a alta dos juros no Brasil, a desvalorização do real em comparação ao dólar, a dificuldade no fornecimento internacional de aeronaves e o alto custo que as companhias enfrentam no país em razão das demandas judiciais, e se cria uma situação praticamente insustentável — argumenta o economista Enrico Cozzolino, sócio e head de análises da Levante Investimentos e especialista no setor aéreo.
Para as companhias brasileiras, o câmbio é especialmente relevante. O gasto com combustível, por exemplo, que pode chegar a 40% dos custos de operação, é pago em dólar.
O mesmo ocorre com outra grande fatia dos custos operacionais das aéreas, que são os pagamentos relacionados ao leasing dos aviões — arrendamento que as companhias aéreas utilizam para dispor das aeronaves sem necessariamente investir em sua aquisição.
Por outro lado, as companhias brasileiras têm grande parte da sua receita absorvida em real, por operarem basicamente no Brasil e com clientes brasileiros.
— Por isso, a defasagem do real frente ao dólar impacta tão fortemente a operação das aéreas nacionais. Somando os gastos com combustível, leasing, manutenção de aeronaves, temos aí grande parte dos custos operacionais das empresas em dólar. Como a receita vem em real, o déficit do caixa das companhias só aumenta nesse cenário de maior disparidade das moedas — explica Marcus Quintella, diretor da FGV Transportes.
Por que recuperação judicial nos Estados Unidos?
Chama a atenção também o fato de as companhias aéreas brasileiras recorrerem à recuperação judicial nos Estados Unidos, e não no Brasil. As empresas se utilização do chamado "chapter 11" da lei de falências do país, pois a legislação norte-americana é mais favorável às suas operações do que seria o sistema judiciário brasileiro.
— As empresas brasileiras têm recorrido ao chapter 11 nos Estados Unidos não apenas pela estrutura jurídica mais robusta, mas também por razões culturais e estratégicas. No contexto americano, a utilização de regimes concursais é socialmente aceita e até valorizada, como demonstração de responsabilidade empresarial e de compromisso com a reestruturação. Diferentemente do Brasil, onde a insolvência ainda carrega um estigma associado ao fracasso, nos EUA é vista como parte legítima do risco inerente à atividade econômica — destaca o advogado Luis Felipe Spinelli, sócio da área de reestruturação e insolvência do escritório Souto Correa Advogados.
Spinelli observa também que, embora em ambos os sistemas a empresa possa continuar operando, o processo nos Estados Unidos oferece uma proteção jurídica mais ampla e internacionalmente reconhecida, o que é especialmente relevante para companhias com dívidas em dólar e contratos de arrendamento com credores estrangeiros, como é o caso das aéreas brasileiras.
No chapter 11, ainda segundo Spinelli, é possível suspender execuções e renegociar praticamente todas as obrigações, inclusive aquelas decorrentes de arrendamentos de aeronaves. Já no ordenamento jurídico brasileiro, os contratos de arrendamento mercantil de aeronaves não se submetem aos efeitos da recuperação judicial, o que pode prejudicar a continuidade das operações.
— Além disso, o processo de recuperação judicial nos Estados Unidos tende a ser mais célere do que no Brasil, com estimativa de que entre um ano e dois anos se consiga finalizar o processo de reestruturação lá, enquanto aqui, as recuperações judiciais não raro chegam a cinco anos ou mais. Por fim, o mercado de crédito para empresas em crise também é muito mais ativo nos EUA, sendo muito mais fácil conseguir dinheiro novo lá do que aqui — reforça o advogado.
Pacote bilionário pode atenuar crise
O governo federal vem preparando um pacote de apoio às companhias aéreas brasileiras, com um valor projetado de R$ 4 bilhões. A proposta visa a criação de linhas de crédito em condições especiais para as empresas, com o BNDES realizando as operações.
O valor a ser disponibilizado às empresas deverá vir do Fundo Nacional da Aviação Civil (Fnac) — cuja principal fonte são os valores pagos a título de outorga pelas concessionárias de aeroportos.
As regras e condições do programa ainda estão sendo finalizadas e precisam de posterior aprovação do Conselho Monetário Nacional. A expectativa é que os primeiros contratos já possam ser assinados a partir do segundo semestre deste ano, entre agosto e setembro.
— Essa é uma ajuda que já poderia ter chegado. Esse tipo de apoio é fundamental para que as empresas aéreas brasileiras consigam se recuperar de suas crises, pois acrescenta recursos aos seus fluxos de caixa, que são hoje uma de suas maiores necessidades para manter uma operação sustentável — reforça Quintella.
Há ainda outras dificuldades que as companhias aéreas brasileiras enfrentam. Especialistas também apontam que a demanda por voos no Brasil ainda é muito sazonal, ligada principalmente aos períodos tradicionais de férias e maiores feriados.
Além disso, a malha aérea brasileira também não é tão robusta como nos Estados Unidos ou em países europeus, o que limita opções de viagem e pode gerar aumento nos preços das passagens para viabilizar as rotas.
— No Brasil tem muito ainda também a cultura de viajar de carro ou de ônibus, pois o preço normalmente é muito mais barato do que o deslocamento aéreo. Para fomentar a aviação civil no território brasileiro, são necessárias políticas públicas específicas para o setor, que melhorem a infraestrutura aeroportuária, que simplifiquem o sistema tributário para as empresas e que incentivem cada vez mais o turismo no país — complementa Quintella.