Na natureza, nada se perde: tudo se transforma, se recicla, se renova — seguindo uma lógica que espelha os princípios da economia circular. Esse modelo sustentável é o que se busca alcançar por meio da bioeconomia, que consiste no uso de recursos biológicos para produzir alimentos, energia, produtos industriais e outros bens — inclusive fármacos e medicamentos. Por isso, especialistas defendem que um dos grandes potenciais da bioeconomia está na saúde, que tem obtido avanços com a utilização de biotecnologia.
Conceito complementar ao de bioeconomia, a biotecnologia abrange um conjunto de técnicas e tecnologias que utilizam organismos vivos, ou partes deles, para criar ou transformar produtos e processos.
Desenvolvimento de tratamentos, remédios e alternativas para doenças são algumas das soluções possibilitadas pela ciência a partir da exploração da diversidade biológica, em um contexto de disseminação de uma consciência ambiental que torna imperativa a adoção de práticas sustentáveis no campo científico.
Segundo a cientista gaúcha Cristina Bonorino, pesquisadora nível 1A do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), ilustra por que a bioeconomia e a biotecnologia andam lado a lado.
A biotecnologia utiliza conhecimento científico e tecnológico para desenvolver novos insumos e processos. Isso também é estratégico no sentido da independência econômica, porque desenvolvemos tecnologias de alto valor, por conta da propriedade intelectual.
CRISTINA BONORINO
Pesquisadora do CNPq
Os biofármacos movimentam uma parcela expressiva da economia mundial, mas boa parte dos utilizados no Brasil é produzida fora do país. Segundo o Fórum Econômico Mundial, o mercado global da biotecnologia pode chegar a cerca de US$ 700 bilhões neste ano.
A pesquisadora do CNPq destaca que o Brasil tem alto potencial de desenvolver tecnologias e conhecimentos que contribuam para a bioeconomia mundial, utilizando recursos de base biológica para a geração de bioprodutos e bioinsumos próprios, agregando impacto econômico e social:
— Como vamos ficar de fora desse mercado? Vamos nos render a simplesmente importar isso para o resto da vida? Temos que aproveitar a expertise das universidades brasileiras. Podemos entregar a tecnologia e os produtos patenteados. Então, precisamos de parcerias com empresas, muitas estão se equipando para isso.

Conforme a pesquisadora Elizandra Braganhol, professora titular do Programa de Pós-Graduação em Biociências da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA), a biotecnologia carece de investimentos e de valorização no país.
Nós desenvolvemos uma série de estudos e produtos dentro das universidades, mas temos dificuldade de colocar isso no mercado, porque falta investimento. A área de deep biotechnology requer investimento pesado, pessoas qualificadas e tempo. Não temos como fazer um produto novo do dia para a noite.
ELIZANDRA BRAGANHOL
Professora titular do Programa de Pós-Graduação em Biociências da UFCSPA
Avanços no tratamento do câncer
Um dos principais desafios da saúde é o câncer. O Rio Grande do Sul conta com centros de pesquisa que são referência nessa área e contribuem para encontrar alternativas aos tratamentos mais agressivos, como quimioterapia e radioterapia.
Um exemplo é o Laboratório de Imunoterapia da UFCSPA (Lait), que vem desenvolvendo tecnologias nacionais para diagnóstico e tratamento em oncologia de precisão.
— Nos últimos cinco anos, focamos em desenvolver uma forma acessível para fazer o teste genômico, que determina se o paciente precisa de imunoterapia ou terapia-alvo. Também começamos a desenvolver moléculas brasileiras para fazer a imunoterapia — explica Cristina Bonorino, que coordena o Lait e é professora titular de imunologia na UFCSPA.
Com o valor elevado das terapias avançadas que não podem ser realizadas via Sistema Único de Saúde (SUS), a série de alternativas nacionais desenvolvida no Lait abre espaço para tratamentos mais acessíveis e eficazes.
Um exemplo é a imunoterapia de checkpoints — única capaz de reverter metástases, podendo alcançar taxas de até 65% de controle de doença. A expectativa da equipe do Lait é desenvolver biossimilares brasileiros para aplicar esses tratamentos com menor custo. Ou seja, medicamentos biológicos semelhantes a outros já existentes e aprovados, com a mesma eficácia e segurança, mas produzidos a partir de organismos vivos, como células.
— Neste ano, várias patentes biológicas vão cair. Com isso, poderemos produzir no Brasil esses biossimilares. Levantamos fundos junto ao governo para montar uma estrutura aqui que nos permita desenvolver tanto drogas novas, que são patenteáveis, como biossimilares, que podem ser produzidas aqui. Vamos implantar um laboratório-piloto para isso. O que estamos fazendo aqui é bem pioneiro, hoje somos referência nessa área — ressalta Cristina.
Outros estudos importantes sobre câncer vêm sendo conduzidos na UFCSPA, como avanços no tratamento do glioblastoma, a forma mais comum e letal de tumor cerebral. Atualmente, no Brasil, o tratamento se restringe à neurocirurgia seguida de radioterapia e quimioterapia. Mas é apenas paliativo, uma vez que o paciente não resiste a mais de um ano após o diagnóstico.
Esse cenário pode mudar, com o desenvolvimento de um tratamento inédito no Rio Grande do Sul, com o uso de nanotecnologia, ainda experimental. A terapia gênica avançada é objeto de estudo da pesquisadora Elizandra Braganhol há 12 anos. Na UFCSPA, ela coordena o Laboratório de Imunobiologia do Câncer.
Por meio de pesquisas, foi identificada a proteína CD73 como uma das responsáveis pela progressão do tumor cerebral. Com isso, a equipe que conta com cientistas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e Universidade Federal do Pampa (Unipampa) propôs uma terapia-alvo utilizando um spray nasal que mitiga os efeitos da proteína.
O medicamento é baseado em nanotecnologia e RNA de interferência, mecanismo produzido a partir de células e capaz de silenciar genes específicos para tratar doenças.
Até o momento, foram feitos testes com ratos. Os pesquisadores encontraram resultados surpreendentes, com maior eficácia do que a quimioterapia. O spray possibilita redução de até 80% no tumor.
Os dados levaram à concessão de patente para o medicamento no Brasil e nos Estados Unidos. Caso seja comprovada a segurança e eficácia para humanos, a solução pode ser um divisor de águas no tratamento do câncer cerebral e até de outras doenças neurológicas, como Alzheimer e Parkinson, conforme a professora Elizandra:
— Nosso grupo é muito pioneiro dessa pesquisa, porque nós identificamos um novo alvo, desenvolvemos o medicamento e conseguimos a patente. Agora, estamos indo para a etapa de estudo clínico. Precisamos disso para conseguir aprovação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária e alcançar a sociedade.
Impacto no meio ambiente
Conforme a pesquisadora gaúcha Bárbara Clasen, bolsista de produtividade em pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), com relação à bioeconomia, a busca por soluções baseadas na natureza é fundamental, inclusive, para reduzir custos e garantir maior eficiência. Ela realiza esse trabalho na Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (Uergs), conduzindo pesquisas sobre tratamento de água.
Os melhores tratamentos que temos hoje geram um custo muito alto. Buscamos, através de soluções baseadas na natureza, tratamentos que sejam eficientes e com um custo mais baixo para reduzir as contaminações dos nossos ambientes aquáticos.
BÁRBARA CLASEN
Pesquisadora na Uergs
Na Uergs, a professora lidera o Grupo de Pesquisa em Toxicologia Ambiental, que trabalha há anos realizando biomonitoramento em diversas regiões do Estado e analisando a qualidade da água. Há pesquisas em andamento envolvendo o Rio Uruguai, o Rio Potiribu, o Arroio Dilúvio e a bacia do Guarda Mor.
Foram encontradas substâncias contaminantes em todas essas bacias, gerando problemas tanto para o meio ambiente quanto para a saúde humana.
— As concentrações desses contaminantes, como agrotóxicos, medicamentos, microplásticos, metais e até hormônios, são baixas, em microgramas ou nanogramas. Isso faz com que as estações de tratamento, com a estrutura que têm, não consigam fazer a eliminação completa dessas substâncias — explica Bárbara.
Embora haja uma concentração pequena dessas substâncias no meio ambiente como um todo, alimentos e água contaminados e consumidos provocam prejuízos maiores à saúde.
— A gente encontra doses pequenas, mas os efeitos são grandes. Em termos bioquímicos, isso não é pouco, porque o organismo fica em contato com esses contaminantes durante muito tempo, e isso vai causando danos — afirma a pesquisadora.
Além de identificar os poluentes, o grupo avalia seus efeitos nos organismos, como peixes e minhocas, e busca alternativas de tratamentos para a melhoria desses ambientes. Uma das soluções sendo desenvolvidas no momento é o uso de briófitas — plantas terrestres como musgos e hepáticas — para biossorção dos contaminantes.
Trata-se de processo biotecnológico que aproveita materiais biológicos, como plantas, para a remoção de poluentes da água.
— O estudo está sendo desenvolvido no Arroio Dilúvio e também no litoral, envolvendo os municípios de Xangri-lá, Osório e Torres. Já temos estudos que comprovam a eficiência do uso de briófitas na remoção de contaminantes de águas poluídas em nível de laboratório. Agora, estamos testando em águas reais, com mistura de diferentes classes de contaminantes a eficiência do uso dessa tecnologia — diz Barbara.
Uso de células-tronco
Outra aplicação que vem ganhando força, quando se trata de inovação na biotecnologia, é o uso de células-tronco. Elas têm o potencial de renovar tecidos danificados e podem auxiliar no tratamento de doenças como câncer, lesão da medula espinhal, doenças genéticas e degenerativas de músculos e cartilagens.
Na Universidade do Vale do Taquari (Univates), pesquisadores vêm empregando essa estratégia em diferentes estudos, buscando tratamentos alternativos em diversas áreas. A professora Fernanda Majolo, do Programa de Pós-Graduação em Ciências Médicas, conduz pesquisas sobre neurologia, por exemplo, bem como ortopedia.
Orientado por Fernanda, o mestre e médico ortopedista André Kruel desenvolveu pesquisa sobre o uso do plasma e fibrina ricos em plaquetas para o tratamento da artrose e doenças nos tendões:
— Trata-se de um conceito que faz parte da medicina regenerativa. Esse tratamento está disponível há anos em países como Espanha, Inglaterra, França e Japão, mas ainda está sendo regulamentado no Brasil.
A técnica, considerada experimental pelo Conselho Federal de Medicina, é mpregada em diferentes áreas e utiliza uma concentração de plaquetas do próprio sangue do paciente para promover a cicatrização e regeneração dos tecidos.