Embora atualmente esteja mais associado à cadeia produtiva, o conceito de bioeconomia surgiu, originalmente, ligado a uma atuação econômica que respeita os ciclos da natureza, baseada na biodiversidade e nos limites do planeta, priorizando o uso sustentável dos recursos naturais para a geração de renda e bem-estar, em oposição a modelos puramente comerciais ou industriais.
No caso do RS, os biomas Pampa e Mata Atlântica, assim como outros recursos naturais, podem ser importantes aliados para o desenvolvimento econômico sustentável com protagonismo, envolvendo comunidades e valorizando a biodiversidade local.
Iniciativa cristalina de bioeconomia em seu conceito clássico, a Rota dos Butiazais tem mobilizado atores em todo o Estado e, inclusive, em Santa Catarina, no Uruguai e na Argentina. O butiazeiro, que dá origem ao tradicional butiá, tem como principal habitat o Pampa. Além disso, interage com uma gama de espécies da fauna e da flora, vinculadas a esse importante e único ecossistema.
A rota é uma iniciativa para conciliar a conservação ambiental dos remanescentes de butiazais com o uso sustentável da biodiversidade local, alinhada à perspectiva de fortalecimento da cadeia produtiva. O projeto de pesquisa, desenvolvimento e inovação é coordenado pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) desde 2015 e busca recursos em editais — como o de bioeconomia da Finep, no qual foi contemplado.
São plantas nativas subutilizadas e que têm um potencial enorme. Tudo o que a gente busca é sensibilizar a sociedade a respeito do valor da nossa biodiversidade nativa, e buscar a geração de renda com base nessa biodiversidade, com inclusão social.
ROSA LÍA BARBIERI
Pesquisadora da Embrapa Clima Temperado e coordenadora do projeto Rota dos Butiazais
No século passado, os butiazeiros eram de suma importância no RS: suas folhas forneciam a crina vegetal, matéria-prima utilizada, por exemplo, em colchões. Com o avanço tecnológico e a impulsão de outros setores econômicos, as extensas áreas de butiazais foram substituídas por outros usos da terra — e a espécie tornou-se ameaçada de extinção.
A região de Tapes, no Sul, abriga um dos remanescentes de butiazais mais bem conservados do Estado e integra a rota. No município fica a Fazenda São Miguel, que evidencia que é possível aliar sustento econômico (a pecuária) com biodiversidade (a propriedade de 300 hectares tem 70 mil butiazeiros, alguns com mais de 200 anos).
Uma das dificuldades de conservação dos butiazeiros no campo estava relacionada ao gado, que pisoteia ou devora as palmeiras pequenas. Com a ajuda da Embrapa e da Universidade da República, do Uruguai, foi desenvolvido e testado um método que permite o desenvolvimento de novos butiazeiros ao retirar o gado no inverno e retornar apenas com terneiros na primavera e, depois, integralmente nas outras estações.
Assim, o gado tornou-se aliado na conservação, pois ajuda a eliminar a competição de outras plantas com o butiá. Na fazenda, onde a ciência foi bem recebida, mais de 6 mil pés já nasceram.
A mobilização para a conservação dos butiazais partiu dos familiares da socióloga Carmen Heller Barros, 70 anos, que são proprietários da fazenda e passaram a observar que não havia mais regeneração. Ainda que pudesse gerar mais proventos, a substituição dos butiás nunca interessou a família, conta. Quando sua mãe era criança, na década de 1920, uma nuvem de gafanhotos dizimou a fazenda — restaram somente os butiás. O seu avô, então, considerou a árvore como sagrada.
— Nós nunca vamos destruir isso aqui. É um compromisso de alma que a gente tem. Eu sou feliz quando venho para cá. Eu tenho um amor profundo — relata Carmen.

Aproveitamento do butiazeiro
Posteriormente, a Rota dos Butiazais foi criada pela Embrapa. Apostando na biodiversidade, busca valorizar e aproveitar o maior número possível de recursos provenientes do butiazeiro: o butiá, como fruta e na produção de alimentos, cosméticos e essências; as folhas, para artesanato, o que viabiliza sustento para artesãs locais; e a palmeira, para conservação e continuidade da espécie.
— As pessoas começaram a se conhecer e se reconhecer, porque tinham uma receita, faziam uma coisa, faziam artesanato. Hoje todo mundo tem mais orgulho, muitas pessoas estão tendo mais renda, mas sobretudo tem essa identidade de fazer parte de um grupo que tem coisas novas, sempre acontecendo, descobertas. Isso mudou a vida das pessoas. Fazer parte da rota é uma alegria. Quanto crescimento eu tive — relata Carmen.
Há também outros usos em estudo, como o aproveitamento do resíduo do processamento da fibra do fruto, que pode ser transformado em farinha para o desenvolvimento de barras de proteína, cookies ou até mesmo embalagens biodegradáveis; e do coquinho, que tem grande potencial de uso em cosméticos e na indústria farmacêutica.
O propósito é aproveitar ao máximo os recursos, por meio da economia circular, com inovação científica e tecnológica.
A rota também trabalha com povos originários, além de agricultores e pecuaristas, no enriquecimento de áreas de campo nativo com mudas de butiá. Já houve grande avanço no conhecimento científico relacionado ao butiá, e a demanda vem crescendo, aponta Rosa Lía Barbieri, pesquisadora da Embrapa Clima Temperado e coordenadora do projeto.
A rede também está integrada à iniciativa da Cadeia Produtiva Solidária de Frutas Nativas, que atua na lógica da economia solidária, com produtos da sociobiodiversidade local. O objetivo é gerar renda para famílias agricultoras e estabelecer elo com empreendimentos urbanos.
A rota impacta a vida de pessoas como a gestora ambiental Fernanda Trescastro Pacheco, 46, que, além de oferecer passeios turísticos por butiazais, produz geleia, mostarda e cachaça com butiá — com polpas provenientes da cadeia.
— É uma troca gostosa de informações, de amizade, de saberes, sociocultural. É um alimento para a alma estar dentro do butiazal — compartilha.

Espaço para crescimento
As iniciativas no Pampa, entretanto, ainda são tímidas. No South Summit Brazil deste ano, em Porto Alegre, o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) lançou o projeto Inova Pampa, com o objetivo de fomentar negócios inovadores de valorização da região ligados à bioeconomia, sustentabilidade e resiliência climática. O projeto ainda está na etapa de sensibilização de estudantes, pesquisadores e potenciais empreendedores para que participem da fase de ideação e validação. O objetivo é trabalhar com 60 ideias de negócios, com a criação de CNPJs e evolução para as fases de tração e escala.
Há, ainda, pesquisas em desenvolvimento em diversas universidades gaúchas, como Uergs, UFSM e UFPel, que envolvem bioinsumos, biomoléculas, bioprodutos, biomassa, biopolímeros, biodiesel, biocarvão, entre outros. No início de junho, o Ministério do Meio Ambiente (MMA) lançou uma consulta pública para debater a sociobioeconomia no plano de desenvolvimento da bioeconomia.
Biocombustíveis
Além das oportunidades de aproveitamento da biodiversidade, a bioeconomia, em conceito mais amplo, está relacionada ao desenvolvimento e uso de produtos a partir de recursos biológicos renováveis — como os biocombustíveis. Produzidos a partir de biomassa (como óleos vegetais, incluindo soja, e gordura animal), os biocombustíveis são menos poluentes do que os de origem fóssil (petróleo e derivados).
A empresa gaúcha Be8 aposta no produto para gerar energia renovável. Os principais produtos do portfólio são biodiesel, Be8 BeVant e etanol, feitos com matérias-primas produzidas ou recicladas.
A companhia defende a preservação dos biomas e adquire insumos provenientes somente de áreas autorizadas, ressalta Erasmo Carlos Battistella, presidente da Be8. Nas unidades industriais, há programas voltados à proteção da biodiversidade local, nas áreas preservadas ou recuperadas pela empresa.
A Be8 também busca fortalecer as comunidades locais e adquiriu mais de 43% de sua matéria-prima da agricultura familiar em 2024. Além disso, incentiva uma cadeia de suprimentos sustentável, beneficiando fornecedores de gordura animal, óleo de cozinha usado e soja com o pagamento de créditos de descarbonização.
Além disso, a Be8 firmou parceria com a Cemvita para desenvolver matéria-prima de baixo carbono para combustível sustentável de aviação (SAF) a partir da glicerina, um resíduo da produção do etanol, estimulando a bioeconomia circular.
O grande desafio ainda está em criar efetivamente um consumo consciente, que valorize a energia renovável e os produtos certificados e comprometidos com a preservação ambiental e dos biomas, avalia Battistella, destacando que a empresa tem empregado esforços na promoção da educação ambiental.
Isso tudo está relacionado à educação. Esse é o grande desafio da bioeconomia e da transição energética. A grande maioria das pessoas fala, mas na hora que tem de investir algum recurso para comprar um produto que traz esse conceito, diz: 'Não, melhor comprar o outro e esperar um pouco para ver se isso vai ficar mais barato'.
ERASMO CARLOS BATTISTELLA
Presidente da B8
Bioplásticos
O bioplástico é outra aplicação possível dos recursos biológicos para reduzir a dependência dos derivados de petróleo. No RS, é produzido por empresas como a Braskem, que possui uma planta para a fabricação de eteno verde em Triunfo. A matéria-prima é utilizada em três produtos de fonte renovável: o polietileno “I’m green bio-based”, usado em embalagens como frascos, sacolas, sacos; o EVA, no solado de calçados; e a cera de polietileno, em adesivos.
Os produtos de polietileno são feitos a partir da cana-de-açúcar. Além de ser transformada em etanol para uso — que é posteriormente convertido em eteno —, a planta absorve o CO2 do ambiente durante o crescimento. O material é reciclável: com o fim de sua vida útil, volta para a cadeia no descarte, contribuindo para a economia circular.
Líder comercial de “I’m green bio-based” para a América do Sul, Alex Duarte observa que ainda há bastante espaço para o crescimento da bioeconomia:
— Vejo que estamos com um ambiente muito propício para as marcas começarem a procurar soluções para os produtos delas, seja embalagens, seja automotivo.
A Braskem tem investido em projetos para aumentar a linha de resinas de fontes renováveis, bem como de conversão de ativos petroquímicos para renováveis.
Tem bastante coisa acontecendo, então a demanda tem aumentado. Está se gerando no Brasil um ambiente de conexão com a sustentabilidade mais forte, e aí, as marcas ficam mais interessadas em discutir soluções que tragam a sustentabilidade junto.
ALEX DUARTE
Líder comercial de “I’m green bio-based” para a América do Sul
Indústria florestal
A produção de papel e celulose também se enquadra na bioeconomia, especialmente quando desenvolvida de forma sustentável — o cultivo de árvores se baseia em uma fonte renovável. Há um crescente esforço para que a indústria seja cada vez mais limpa, afirma Antonio Lacerda, diretor-geral da unidade de Guaíba da CMPC, empresa chilena que atua no RS.
A companhia já não utiliza mais carvão mineral na fábrica, promove cerca de 30% do transporte de madeira e celulose por barcaça, transforma o resíduo do processo em adubo para a própria plantação e para comercialização — resultando em resíduo zero —, além de gerar e vender energia e de buscar a eficiência energética.

A empresa também busca contribuir com a conservação da biodiversidade local: dos mais de 500 mil hectares pertencentes à companhia, 220 mil são de áreas nativas preservadas no Estado.
A indústria de papel e celulose, de modo geral, e nós não somos uma exceção, é uma indústria extremamente sustentável.
ANTONIO LACERDA
Diretor-geral da unidade de Guaíba da CMPC
A CMPC planeja investimentos para os próximos anos para converter o vapor resultante das atividades em energia. Há, ainda, estudos em andamento para o desenvolvimento de biomassa a partir dos restos vegetais que chegam com as cascas de madeira, de modo a criar uma caldeira de geração de vapor e energia.
— É incrível como ainda temos oportunidade na indústria florestal para trabalhar a questão da bioeconomia — aponta o diretor-geral da unidade.